Tradução e apresentação: Patrícia Lavelle
Michel Deguy faleceu em fevereiro de 2022, aos 91 anos, deixando uma das obras poéticas mais importantes do século 20 na França. Sua poesia, reconhecida com os prêmios Goncourt, em 2020, e Balzac da Academia Francesa de Letras, em 2021, inclui dezenas de coletâneas. Entretanto, apenas dois volumes foram publicados no Brasil: A rosa das línguas e Reabertura após obras, ambos com tradução de Marcos Siscar e Paula Glenadel.
Deguy deixou também quase duzentas edições da revista Po&sie, que fundou em 1977 e dirigiu até o fim, publicando tanto ensaios filosóficos e textos críticos, quanto traduções de poesia e poemas inéditos. Ele participou ainda dos comitês editoriais de outros dois importantes periódicos literários franceses, Critique e Les temps modernes, além de ter sido professor de filosofia, editor na Gallimard, ensaísta, exímio tradutor de Safo e de Góngora, e um grande leitor de Baudelaire.
Nos poemas aqui traduzidos — publicados entre 2018 e 2022 nas revistas Po&sie e Critique —, a voz lírica é atravessada por inúmeras outras. Como um trapeiro baudelairiano, Deguy coleciona citações e referências que remetem, por exemplo, a versos de Mallarmé ou ao Angelus Novus, de Paul Klee. Ele também relê com olhar estrangeiro certas passagens de seus próprios poemas.
L’Ordonnance
La mort acouphène siffle son train à l’oreille
L’ankylose me passe la menotte des fourmis
Les organes murmurent la sentence de Leriche
Juin reverdit mais la licorne fouille
L’intestin s’extravase et pend à la ceinture
Comme dans la fable de Poe les prothèses redressent
L’alité
Et la chimique est remboursée
Loxen Hypertium Tahor e Zopiclone
L’asexuation de l’âge abonde le cauchemar
Les riches heures de la vie antérieure
Prennent possession des neurones nocturnes
L’anamnèse infinie somnolente reparle
L’annonciation de l’Ange inverse à droite
Et tournant le dos à la nuit des temps à venir
Qui retourne ses ailes prophétise
Que le messie est au présent
Receita médica
O zumbido da morte apita seu trem no ouvido
Anquilose me põe algemas de formigas
Os órgãos murmuram a sentença de Leriche
Junho renova mas o unicórnio cava
O intestino se extravasa e pende à cintura
Como na fábula de Poe próteses levantam
o aleitado
E a química é reembolsada
Loxen Hyperium Tahor e Zopiclone
Assexuação da idade enche o pesadelo
As ricas horas da vida anterior
Tomam possessão dos neurônios noturnos
A anamnese infinita sonolenta refala
A anunciação do Anjo inversa à direita
E virando as costas à noite dos tempos porvir
Que revira suas asas profetisa
Que o messias está no presente
…
La belle cuillère
Il y a dans la cuisine une belle cuillère
En doux argent flexible mince
Bien profilé comme les grâces devant Pâris
Ce matin elle me dicte:
L’imitation n’est pas reproduction
Le regard sur la belle cuillère
N’est pas une sensation mais une dilection
Ouvrage d’art un point c’est tout pensée non technophobe
Leçon de choses pour le poéticien
A bela colher
Há na cozinha uma bela colher
Em doce prata flexível magra
Bem perfilada como as graças diante de Páris
Esta manhã ela me dita:
A imitação não é reprodução
O olhar sobre a bela colher
Não é uma sensação mas uma dileção
Obra de arte e ponto final pensamento não tecnofóbico
Lição de coisas para o poeticante
…
Poème philosophique
L’âme immortelle en vie
à la mort elle rend l’âme
Ange sœur elle nous escorta comme la peinture
Le ciel n’est pas le ciel que vous croyez
Mais il est le ciel
Un rais fait la raie du cosmos
Une tige de scintillement descend la lune à ma vue
Reflétant l’être
Un ange de lumière jette l’échelle pour Jacob
chaque-un monte au ciel sur l’axe qui le regarde
si proche de l’autre en différence numérique
qu’indiscernables leibniziens comme les morts
Poema filosófico
A alma imortal em vida
na morte entrega a alma
Anjo irmã nos acompanhou como a pintura
O céu não é o céu que você crê
Mas ele é o céu
Um raio faz o risco do cosmos
Uma haste cintilante desce a lua à minha vista
refletindo o ser
Um anjo de luz joga a escada pra Jacob
cada um sobe ao céu pelo eixo que lhe concerne
tão próximo do outro em diferença numérica
quanto indiscerníveis leibnizianos como os mortos
…
Nouvelle lune
Quand on parlait tout seul, on parlait à la lune
Je la disait fardée comme une Japonaise
Ou lune de Beaubourg aussi pleine que vierge
La lune c’était les fesses pour les enfants
Et pour Leopardi la muette sur la plaine déserte
La lune de Pierrot la lune de Schönberg la lunatique
Isis Séléné Artémis ou Diane
Ils l’ont mise à trois cent trente mille quatre cents kilomètres
Parfois la nuit nous piétinons sur le tapis sa cendrée obsolète
Sans aller plus la voir à la fenêtre
La honte me saisit
Galaktos leukotera l’aimée de Sappho
La vierge la vivace et la belle emphatique
Plus blanche que la blancheur, éclipsant le soleil
La peinture ne pouvait la faire voir en peinture
Aucun Malevitch ne la montrait
Et seule la photo a pu l’imaginer
La croissante, la paupière du dieu, l’ongle de Mahomet
L’écarquillement de la nuit borgne
Nombril de l’univers éparpillé
Faux de la mort éternelle
Memento
Lua nova
Quando se falava só consigo, falava-se à lua
Eu a dizia maquiada como uma Japonesa
Ou lua de Beaubourg tão cheia quanto virgem
A lua era um bumbum para as crianças
E para Leopardi a muda sobre a planície deserta
A lua de Pierrot a lua de Schönberg a lunática
Isis Selene Artêmis ou Diana
Eles a puseram a trezentos e trinta mil e quatrocentos quilômetros
As vezes à noite pisoteamos o tapete de sua cinza obsoleta
E não vamos mais vê-la à janela
Tenho vergonha
Galaktos leukotera a amada de Safo
A virgem a viva e a bela enfática
Mais branca que a brancura, eclipsando o sol
A pintura não podia fazê-la ver em pintura
Nenhum Malevitch a mostrava
E só a foto pôde imaginá-la
A crescente, a pálpebra do deus, a unha de Maomé
O arregalar da noite caolha
Umbigo do universo espalhado
Foice da morte eterna
Memento