Este pequeno ensaio foi escrito como forma de resgatar algo do início da carreira de um escritor, daquele momento de profundas hesitações e incertezas, em que os sonhos, por serem sonhos, ainda são possíveis, e a realidade é só uma coisa a ser inventada. Talvez seja o momento mais verdadeiro de um escritor, quando a obra ainda não existe, ou melhor, ela existe apenas no vazio, no nada inaugural que prepara o que virá depois. E o que virá depois bem pode ser esta obra tornada visível ou uma eloquente afirmação da invisibilidade do artífice — o que não basta, porém, para anular a obra, mas apenas para torná-la rarefeita, difusa e, por isto mesmo, presente em todos os seus movimentos, físicos ou mentais, nas ações concretas ou ideias abstratas, na vida, enfim, deste que a cria, enquanto vive.
O “livro”, vá lá, sobre o qual irei discorrer nas próximas linhas é a materialização desta hesitação antes referida. Ele não está publicado, de forma que editorialmente não existe, o que na prática a qual a indústria cultural nos acostumou, equivale dizer simplesmente que não há livro, mesmo que haja páginas, um texto, e por trás deste texto alguém que o escreveu. As razões pelas quais hoje temos acesso a este material serão esclarecidas mais adiante. Por enquanto, o que é importante dizer é que esta não-existência é, ou pode ser, a maior força deste texto, na medida em que reitera, pelo inequívoco não, justamente aquilo que ele nega. E ao negar o livro, cria o seu criador: a obra faz o escritor, a obra é o escritor. Ela o afirma, mesmo se depois, em sua vida visível, o escritor em questão venha a ser um encanador ou consultor financeiro de ricos investidores. No nosso caso, a parte visível coincide com aquela que não se vê. O escritor existe para os outros além de existir em seu livro, que neste caso não existe.
Aos objetos da reflexão, sem mais. O (não) livro e seu autor: Meu trabalho, de Emmanuel Bove.
Apesar de conhecido pelos frequentadores dos (sempre minúsculos) circuitos literários, Emmanuel Bove está longe de ser aquele escritor que todo mundo sabe quem é e de quem se fala com relativa segurança mesmo sem se ter lido uma só linha do que o dito escreveu. Assim, para situar quem por acaso não conhece Emmanuel Bove, uma muito breve apresentação:
Nascido em Paris, em 1898, filho de um imigrante russo e de uma empregada doméstica luxemburguesa, Emmanuel Bobovnikoff (este nome, entre piada e marca de vodka ruim, foi a única herança deixada pelo pai) teve infância e adolescência miseráveis ao lado da mãe e do irmão Léon, entrecortadas por períodos bem mais faustos junto à amante rica do Bobovnikoff pai, uma pintora inglesa de gosto refinado, culta, com quem o menino Emmanuel manteve uma forte relação de afinidade.
Já adulto, ele vai viver de empregos precários, em quartos de pensão de quinta categoria — de onde é sistematicamente mandado embora por falta de pagamento —, experimentando, assim, na prática, a vida da maioria dos personagens que mais tarde vai criar em seus livros. Em 1921, casa-se com Suzanne Vallois, com quem vai ter dois filhos, Dora e Michel. Pouco tempo depois, Bove começa a redigir os textos que vão constituir Meu trabalho.
O livro é composto por uma série de fragmentos, quase todos de um só parágrafo que vai de meia até três ou quatro páginas. Mesmo não havendo datas marcando cada trecho, que são apenas separados por um asterisco, a recorrência de expressões como “hoje”, “esta manhã”, “à tarde”, “nesta noite”, na abertura dos fragmentos, aponta para a estrutura de um diário. Fora disto fica difícil a aproximação a qualquer outro gênero literário. Não há intriga, não há ação, apenas o registro morno da existência cotidiana do narrador e da sua família, as tarefas domésticas, as desavenças do casal, seu mal-estar no convívio familiar e social — e a menção a determinadas “condições de trabalho”, sem que no início saibamos muito bem o que isto significa.
Para termos mais presente o texto, eis as linhas que abrem Meu trabalho.
Um dia bom, não acordei nem muito cedo nem muito tarde. Comi pão com manteiga e tomei café com leite. No banheiro, os intestinos funcionaram a contento. Sentia-me disposto para o trabalho. Fui à janela para ver o céu. Quando me sentei à mesa, percebi que a cadeira estava bamba. Assoalho desnivelado, pensei, pois pareceu-me impossível que o pé da cadeira tivesse diminuído de tamanho durante a noite. Tentei ajeitar colocando uma folha de jornal dobrada embaixo do pé bambo. Não resolveu. Tentei com um papelão que encontrei na cozinha. Ficou alto demais. Sentei-me assim mesmo, mas a cadeira balançava cada vez que eu botava o peso do corpo mais para um lado ou mais para outro. Saí para ver se arranjava um pedaço de feltro para pôr embaixo do pé bambo da cadeira. Comprei um chapéu. Quando voltei já era meio-dia. Hora de preparar o almoço. Vi que não tinha nada na geladeira e tive que sair de novo.
Este mesmo tipo de registro, o mesmo tom, mudando um pouco o teor dos acontecimentos, em si mesmos sem grande importância, e trazendo à cena a mulher e a filha do narrador, vai se manter até o fim do texto. Na página 63, por exemplo, podemos ler:
Hoje comi pão com manteiga e tomei café com leite. Sentia-me um pouco pesado, mas deve ser o tempo. Minhas costas também doíam mais do que o normal. Preciso ir à piscina, mas tenho medo de apanhar uma otite como da última vez. Estou mais acostumado às dores nas costas do que à dor de ouvido. Fui comprar arroz. Discussão com Suzanne por causa de dinheiro. Depois fui ao Gordo comprar uns legumes para o almoço. Espinafre e cenoura. Qualquer dia ele não vende mais fiado. Botei junto na panela, eu sabia que a cenoura demora para cozer e o espinafre cozinha rápido. Mesmo assim botei junto. Dora comeu um pouco porque tinha muita fome, depois começou a cuspir na toalha. Eu gritei com ela, depois gritei com Suzanne, que gritou comigo. Não suporto gritos. Discussão de novo.
À tarde, compra de batatas, conserto da torneira da cozinha, renovação da carteira da piscina municipal.
Aos poucos, e através de uma insistente recorrência, vai-se cristalizando esse sentimento de incômodo e de impotência diante de uma situação que não se altera, como fica explícito nesta frase da página 196:
E dizer que cada dia é igual ao outro, e que eu estou aqui, e que talvez já seja tarde, e que talvez eu esteja aqui amanhã, e depois também, e sempre aqui.
Esta consciência da imobilidade de uma situação, que mais do que insatisfatória, é estreita e medíocre, faz em contrapartida aumentar a idealização de uma vida ótima e, claro, cada vez mais afastada da realidade. Mas à medida que o texto avança, além de descrever o que faz da manhã à noite, o narrador passa a dispensar um bom número de linhas para discorrer sobre aquilo que ele só vai nomear lá perto da metade do livro como sendo as “condições propícias ao labor criativo”.
Tais condições, por exemplo, vão desde a relação entre a altura da mesa de trabalho e a sua própria estatura, a orientação desta mesa na peça de forma a receber a melhor luz até o nível de ruído máximo (e mínimo) permitido para o “bom cumprimento do exercício poético”.
Além das condições materiais, a saúde física do narrador também entra em causa: índices ideais de pressão, colesterol e a quantidade de plaquetas no sangue são estabelecidos e relacionados diretamente à boa ou má performance literária. Até o exame visual de suas fezes, no que diz respeito à cor e textura, serve para prever o desempenho criativo do dia.
Pois é a lista dessas “condições ideais”, somadas a uma e outra reflexão de fundo literário, distribuídas com extrema parcimônia ao longo do texto, que finalmente vão nos indicar uma atividade de escrita por parte do narrador — atividade esta que, logo constatamos, nunca se realiza.
Todo o texto é, portanto, o relato de uma preparação, da ideia — mais do que a busca efetiva de realização — do banimento dos entraves do dia a dia para, enfim, chegar-se às melhores condições para a escrita, sem jamais mencionar uma linha sequer sobre o que ele pretende escrever. Uma tentativa, diríamos, mesmo sem perspectiva de sucesso, de encontrar um espaço e um tempo a partir de onde, e somente aí, a escrita pudesse se realizar.
Evidentemente estas disposições tornam a escrita impossível, mas o que surpreende no texto de Bove é que o resultado do trabalho literário, ou seja, a obra propriamente dita, e mesmo a sua impossibilidade de realização perdem importância (se é que a tiveram um dia) diante desse discurso que enfatiza as condições que permitiriam a obra de ser escrita. E tanto mais idealizadas são essas condições, mais perfeitas elas se tornam, porque vedam toda a possibilidade de realização, deixando a “obra” para sempre em suspenso.
Em alguns momentos, a coisa se assemelha a um coito prorrogado ad infinitum, sempre às portas do gozo, mas sem nunca chegar lá. Apenas para ilustrar, eu cito uma passagem da página 134:
Suzanne saiu com Dora e devem ficar o dia inteiro longe de casa. Sentei-me à mesa, apanhei o meu caderno mas não o abri. Fiquei admirando o silêncio. Eu estava lá, sozinho, calmo, com uma sensação boa no corpo e sentindo os pensamentos se formarem na minha cabeça. Como por um milagre, de repente quase tudo pareceu perfeito, a luz enchia a sala, a temperatura era agradável, minhas costas não doíam e eu tinha um tempo que me pareceu infinito pela frente. No fundo era como se aquele dia tivesse se separado do tempo, esvaziando-se e deixando lá, no velho tempo, todas as imperfeições cotidianas para criar este momento feliz, inteiro, incontável. Eu via um mundo, um incrível mundo ali, à espera, e eu era o único que podia chegar até ele. E ter consciência disto era como flanar no meio de uma vertigem eterna.
Ora, essas “imperfeições cotidianas” de que fala Bove neste trecho são precisamente o tema e material a partir do qual Meu trabalho é escrito — e para afirmar, justamente, que ele não foi escrito. Em outras palavras: o que ali está escrito serve apenas para impedir o que deveria, ou poderia, ter sido escrito em seu lugar. No fundo, Meu trabalho é um livro do desvio, um diário — se quisermos firmar melhor o pé e nos situarmos dentro de um gênero –, mas uma espécie de “diário do não”, ou de um “antidiário”, que dá conta do que o autor não faz no dia a dia, de como ele não escreve a obra que está fadado a escrever e que o mobiliza inteiramente, todos os dias, como o centro de sua vida.
Por outro lado, não se trata de uma justificativa ou da confissão de um fracasso. No livro de Emmanuel Bove a “obra” está por trás da fachada plana de um texto burocrático, monótono, frio, repetitivo, ela está ali em estado de potência, e absurdamente viva, justo porque não realizada.
Porém, o que não fica muito claro no início — e provavelmente não ficaria se a obra (visível, e prolixa) e a vida (reclusa) de Bove não tivessem tido uma continuação —, é que na “escrita” do seu primeiro trabalho, esse Meu trabalho, o que está em jogo não é, como pode parecer à primeira vista, a impossibilidade de escrever diante da falta das tais “condições ideais”, mas a recusa, ainda que não assumida abertamente, em compor a dita obra, em materializá-la — recusa em deixar um rastro.
Escrito quando ainda não tinha publicado nada, Meu trabalho é uma espécie de livro zero do autor, e que contém não só uma poética boveana a qual ele permanecerá fiel até o fim, mas uma espécie de tomada de posição, uma militância latente do escritor que, voltado única e exclusivamente para o seu trabalho, recusa qualquer tipo de publicidade, inclusive aquela que pode representar a publicação de um livro. Para não publicar, portanto, ele não escreve.
Esta afirmação não é contraditória ao fato de Bove ter sido um autor, como já foi dito, bastante prolixo. Deixando de lado os inúmeros romances populares escritos pela subsistência sob o pseudônimo de Emmanuel Valois, foram mais de trinta títulos assinados por Bove em pouco mais de vinte anos de escrita. Mas quase tudo o que escreveu é a afirmação obsessiva de um aniquilamento, de um apagamento desse homem sufocado pela existência, que de repente toma consciência da vida como armadilha e fica imobilizado, afásico, um homem cujo único desejo e a aspiração mais nobre possível é a invisibilidade.
Meu trabalho foi escrito, ao que tudo indica, entre 1922 e 1923, pouco antes da publicação de Mes amis, obra central na literatura de Emmanuel Bove, ou melhor, na literatura com a qual Emmanuel Bove se mostra ao público. É seu primeiro livro publicado, o mais lido e apreciado, seu maior e talvez único sucesso de público, e que lhe rendeu certa notoriedade nos círculos literários da época (Colette é a responsável pela publicação do livro e entusiasmada defensora do autor). Mes amis — ou Meus amigos em português — é, na falta de melhor palavra, um “romance” que, através de quadros independentes, vai dando conta das errâncias por uma Paris sem nenhum glamour de um anti-herói abúlico e espécie de matriz de todos os personagens de Bove: um solitário que vive às custas de uma pensão de guerra miserável, na mais extrema penúria, material e moralmente falando.
Não há uma trama, não há evolução romanesca, o que se lê é o lento desnudamento da condição humana, sem revolta, sem denúncia, uma espécie de resignação triste, onde tudo se acomoda na fatalidade de uma tranquila desgraça.
Meus amigos foi traduzido e publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 1987 — e aqui eu abro um parêntese para dizer que quando preparava este texto, precisamente quando escrevia a frase anterior, eu entrei no site da Companhia das Letras para verificar os dados referentes à edição, tradução, etc., e constatei que o título Meus amigos, assim como o seu autor, simplesmente desapareceram do catálogo da editora. Não constam. Não é que o livro apareça como esgotado, simplesmente ele não está lá, sumiu, não há rastros nem de Bove nem de Meus amigos. Convenhamos, não há nada mais boveano do que este desaparecimento, e nem violência maior: um título e um autor que de repente se evaporam do catálogo de uma editora, tornam-se invisíveis, inexistentes, apagados. Ainda que pela via da anedota, esta pequena curiosidade chama a atenção para a tendência à volatilização, que da personalidade do autor se estende a seus livros, e que afirma a vocação para fantasma que assombra Emmanuel Bove e sua discrição doentia, sua escrita introvertida, sua arte do nada.
E Meu trabalho, o livro zero de Emmanuel Bove, parece anunciar esta arte. Ele é um não-livro em mais de um aspecto. Primeiro porque, apesar de Bove tê-lo mencionado algumas vezes em conversas, ninguém pode afirmar com certeza que ele tenha sido pensado pelo autor para ser algo que mais tarde ganhasse o formato de livro, pelo menos não naquele concebido e imposto pela indústria cultural. E em segundo, porque de fato não virou um livro, comercialmente falando, já que um único exemplar da “obra” repousa nas prateleiras da Biblioteca Brautigan, em Burlington, no estado de Vermont, nos EUA — e foi lá que pudemos tomar conhecimento deste texto —, uma biblioteca que por si só valeria um outro ensaio, e para a qual eu abro um segundo e último parêntese, porque de alguma forma ela está ligada à reiteração da recusa que Meu trabalho parece trazer em seu cerne.
Na verdade, a Biblioteca Brautigan é uma ficção. Ou melhor, ela nasce na ficção de Richard Brautigan (1935–1984), mais precisamente no romance intitulado The Abortion: an Historical Romance 1966 (Simon & Schuster, 1971), que conta a história de um bibliotecário que habita uma biblioteca de livros recusados pelas editoras e, por isto, não publicados. Da ficção, essa biblioteca passa à realidade em 1990, quando Todd Lockwood, um obcecado leitor do romance de Brautigan, consegue verba e a cessão, por parte da municipalidade de Burlington, de um prédio desativado pertencente à administração local, e inaugura ali a dita biblioteca, na época com sete títulos em seu fundo, entre eles o relato de uma viagem ao Québec escrito por um vereador local (provavelmente o responsável direto pelo trâmite feliz da cessão do prédio), uma coletânea de receitas de cozinha compiladas pela mãe do próprio Lockwood e um romance policial de autoria do síndico do seu condomínio.
Constituída, como disse, exclusivamente por livros recusados pelas editoras, ou pelos próprios autores que, uma vez tendo finalizado seus manuscritos, desistiram, ou por medo ou desinteresse ou preguiça, de buscar um editor, a Biblioteca Brautigan, essa coleção de livros inexistentes, ou livros possíveis mas abortados, era de fato o lugar ideal para o primeiro livro de Emmanuel Bove — a bem da verdade, para todos os seus livros.
Contar como Meu trabalho, um manuscrito dos anos 1920 na França, foi parar na Biblioteca Brautigan setenta anos mais tarde, daria tema para um conto de Borges. Porém, a realidade é muito mais simples — aliás, o que digo aqui está muito próximo de uma frase de Bove que podemos ler na página 194 de Meu trabalho”: “A realidade é uma permanente decepção”.
Ocorre que quando Emmanuel Bove morreu, em 1945, aos quarenta e sete anos de idade, seus livros já não eram mais publicados e seu nome caía rapidamente num ostracismo incompreensível, a ponto de o poeta Christian Dotremont, em 1971, mandar imprimir e fazer circular um curioso panfleto onde dizia ser necessária a leitura das obras de Bove porque seus livros tornavam-se artigos em extinção, e finalizava conclamando, a sério, “todas as pessoas de bom senso do mundo” a assediar editores e livreiros, se necessário usando “da força e do poder de convencimento das armas”, para disponibilizarem a obra de Emmanuel Bove ao público.
Alguns anos depois, já na década de 80, o biógrafo de Bove, Jean-Luc Bitton, descobre o manuscrito de Meu trabalho nos papéis póstumos do autor, então em posse de sua neta que, precisando de dinheiro, concede de imediato a autorização para publicação. Bitton põe o manuscrito embaixo do braço e faz a tradicional e quase sempre constrangedora via crucis de porta em porta de editores que lhe respondem sempre — às vezes mais às vezes menos polidamente — não.
Dez anos mais tarde, num encontro com Peter Handke, grande entusiasta da obra de Bove e seu tradutor para o alemão, este lhe fala da Biblioteca Brautigan e os dois decidem que ali está o destino para aquele manuscrito — não exatamente por razões estéticas, mas sobretudo porque, em função da notoriedade que nos últimos tempos vinha ganhando a insólita biblioteca, editoras importantes voltavam os olhos para o fundo da Brautigan, e corria nos bastidores a notícia que um grande editor iria propor a publicação, apoiada em uma forte campanha publicitária, de uma coletânea com textos do catálogo do fundo da Brautigan.
Não é preciso dizer que o interesse repentino das editoras pelos livros recusados da Brautigan revelam um despudor quase obsceno do mercado editorial. Ironicamente, a máquina da edição agora conferia “valor literário” àquilo que ela própria decretara não possuí-lo suficientemente para entrar no clube. Mas analisando bem as coisas, aquilo era só mais uma variável de uma estratégia antiga e eficaz: criar uma margem, colocar à margem e depois reabilitar o marginalizado para lucrar em cima.
Porém, sem entrar em questões éticas, Handke e Bitton enxergam ali, simples e compreensivelmente, a possibilidade de ver a obra de Bove ganhar uma sobrevida a partir da publicação de um inédito.
Quando a possibilidade esquentou, Bitton viajou aos Estados Unidos e estava na sala do diretor da Biblioteca Brautigan quando o grande editor veio em pessoa para a assinatura do contrato e para discutir a seleção das obras.
Bitton não pôde evitar um calafrio quando estendeu-lhe o manuscrito de Meu trabalho.
O grande editor começou a ler as primeiras páginas de maneira concentrada.
Fazia movimentos com a cabeça, e murmurava para si:
Muito bem, muito bem… sim, senhor…
Ergueu os olhos para Bitton, voltou-se outra vez para o manuscrito, leu mais algumas páginas, saltou várias, leu outros trechos e terminou por perguntar:
O que é isto?
Chama-se Meu trabalho, é o primeiro texto de Emmanuel Bove, apressou-se a dizer um todo entusiasmado Bitton.
O grande editor olhou para o manuscrito, virou-o, pareceu analisar a sua espessura. Coçou o queixo enquanto franzia os cantos da boca para baixo:
Sim, senhor…
Bitton olhava para o diretor da biblioteca no outro lado da mesa, que também parecia na expectativa da reação do editor.
Emmanuel Dove?
Bove, corrigiu Bitton.
Sim, senhor…, repetiu, balançando de leve a cabeça e com aquela postura da boca que deixava o queixo proeminente.
Sim?, grunhiu um já muito ansioso Bitton.
O grande editor folheou novamente o volume, parece ter repetido baixinho “sim, senhor…”, e terminou por dizer:
Isto aqui, meu caro… Mas este… livro… isto…
Sim?, Bitton inclinava o tronco para o lado do editor.
Isto… meu senhor, isto é pura merda.
Bitton baixou os olhos, refletiu alguns segundos e em seguida começou a recolher o manuscrito. Já ia à porta quando o grande editor perguntou:
Quem é Emmanuel Bove?
Bitton suspirou e, antes de sair e fechar a porta atrás de si, disse — embora tivesse vontade de dizer outra coisa — essa frase com a qual concluo este breve ensaio sobre a (não) escrita (de Bove e de tantos escritores que não escrevem):
Emmanuel Bove é um escritor, disse Bitton. Nada mais. E que procurou com tanto empenho passar despercebido quanto todo esse exército de enchedores de páginas buscam ser reconhecidos. Alguém que optou por não deixar provas do seu caráter de artista, mas de vivê-lo intensa e interiormente, preferiu criar sem produzir, e deixar à posteridade, muito bem disfarçado em meio a uma bibliografia destinada a servir de pasto a críticos e acadêmicos e editores e a todo este rebanho que já não sabe por que nem para onde se move, toda a sua exuberante não produção, uma arte finalmente livre do sistema, imune à qualificação, que é apenas uma via para a quantificação em termos monetários. No fundo, ele não é deste mundo. Ou, pelo menos, neste mundo ele não é ninguém.