Meu pai e os outros homens da minha vida

Um conto de Simone de Souza Pereira
01/01/2003

O do primeiro beijo foi lindo. Eu, doze anos, magrela, cabeleira incontrolável. Ele três anos mais velho, alto, desengonçado, a cara escondida atrás da juba, não gostava de estudar. Famílias amigas, foram passar as férias em casa. O beijo aconteceu num ônibus para Visconde do Rio Branco: em retribuição à visita que nos fizeram, voltamos com eles para Minas, seus pais de um lado, minha mãe e irmãs do outro, eu do lado dele, que acabou no meu colo, e beijamo-nos como nunca mais. Soube mais tarde que teve que fugir, envolvido com traficantes, ameaçado de morte.

O da primeira trepada foi trágico. Quando nos conhecemos, estava completamente drogado. Namoramos dois anos e meio, separamo-nos muitas vezes, voltamos mais do que deveríamos, herdei dele uma surra, uma internação por aborto, seis anos de psicoterapia e um quase-infarto em minha mãe, quando ele invadiu minha casa para contar a todos as mentiras que inventamos no tempo em que estivemos juntos. Nunca mais nos vimos.

O da segunda trepada era virgem. Colegas de colegial, éramos dupla imbatível. Entre outras coisas, ensinei-lhe as diferentes utilidades da língua (que aprendi com um professor de educação física, conhecido numa viagem de formandos a Porto Seguro — ele 33, casado, um filho que fazia comercial de tevê, eu 15. Na volta, convidou-me algumas vezes para almoçar; íamos a lugares lindos e, um dia, em sua casa de praia, deitada num sofá velhíssimo, ele com a cabeça entre minhas pernas fez-me sentir o que até hoje acho que foi o melhor orgasmo da minha vida — muito embora até aquele momento e até muito depois eu não soubesse o que era um orgasmo). Relutei em entregar-me até que, conversando, confessou-me indiretamente que nunca tinha feito “sexo propriamente dito”. Maravilhada, na seguinte oportunidade, depois de fazer um pouco de hora, levantei a saia e falei, Vem. E ele broxou.

O da terceira era “artista plástico” — pintava quadros, mas de-tes-ta-va ser chamado de pintor. A voz meio desafinada, ligeiramente narcisista, namoramos oito, nove meses e nem quando me pedia para enfiar o dedo em seu ânus enquanto trepávamos nem quando, depois de uma briga veio desculpar-se e, pondo as duas mãos na minha cintura, gritou escandalizado, que eu tinha engordado!, que as mãos dele perceberam!, — e mandei-o para os quintos dos infernos, nem assim desconfiei de que ele era gay.

Conheci meu quarto amor durante um curso de espanhol: delicado, educadíssimo, um anjo! Pouco mais velho que eu, rosto melancólico de impressionante velhice precoce, namoramos cerca de um ano e meio. Tinha dois irmãos muito mais velhos e aos quinze anos teve o pai, um coronel da polícia militar, assassinado dentro de casa. Talvez por isso a fragilidade, a dependência emocional. Mas que bom gosto! Cozinhava, morava com a mãe num imenso apartamento em Moema, fez faculdade no exterior, conseguiu um excelente emprego, tinha salário alto, carro novo e ejaculação precoce.

O da quinta, ah, o da quinta foi meu latin lover, meu Adonis argentino. Conhecemo-nos em Londres e em exatos vinte e um dias nos apaixonamos profundamente. Recusei-me, até nosso último dia juntos, a consumar qualquer coisa e, frustrado, ele partiu. Mantivemos o romance por e-mail durante um ano — longos e desesperados tangos. No ano seguinte rumei em viagem de férias para os Andes, rever meu amado, e lá passei inesquecíveis dez dias. Fui embora de coração partido — ele era apenas um David cultíssimo e algo machista — e contando com a enorme distância, que nos separaria eternamente.

De volta, o sexto foi quem me curou daquela desilusão, à base de salsa. Nem nosso primeiro beijo foi bom, mas, com o tempo, houve tal sintonia de ações e pensamentos que dele diria: foi o melhor parceiro que tive durante muito tempo. Passei a me aceitar melhor, éramos muito sinceros. Infelizmente até sinceridade tem limites e entre nós chegamos a um nível de franqueza tão crua que minou o romantismo da relação. Viramos amigos.

Nos intervalos, uma efemeríssima paixão por um professor de literatura — casado e com filhos — que se acabou na mesma noite em que dormimos juntos. Um amor platônico aqui, outro lá. Deixei (intacto) um rapaz lindo!, mas incapaz de manter por muito tempo uma conversa inteligente. Envolvi-me com um homem, mais que o dobro da minha idade. Dispensei impiedosamente o que me disse que eu era “a única que lhe tinha dito não em toda sua vida”. Conheci garotas em boates gay. Deixei-me enganar por um pianista insensível etc.

Apesar de tudo, acredito que o primeiro homem da minha vida realmente tenha sido meu pai. Ele foi meu superman ao contrário. Bebia um pouco todos os dias, fumava, não trabalhava, mas era inteligentíssimo. Às vezes tornava-se violento, mas não durava mais de uma noite. Quando saía nu pela casa ou pela rua, dávamos risada dele, minhas irmãs e eu, e esquecíamos tudo.

Nunca lhe tive ódio, mas não o amei. Confesso que quando meus pais finalmente se separaram, há alguns anos, fiquei muito feliz. Quando ele partiu, nossa casa ficou em paz: foi o fim das gritarias, surras, incêndios, sujeira, humilhação. O silêncio que ficou não é de fato muito bom, mas estamos melhor do que antes. Às vezes penso que o que ele não suportava mesmo era o silêncio, de minha mãe, que permanece até hoje, e que herdamos todas, minhas irmãs e eu.

Simone de Souza Pereira

É estudante de Letras na Universidade de São Paulo.

Rascunho