Menos que um

Leia o trecho do novo romance de Patrícia Melo
Ilustração: Denise Gonçalves
01/04/2022

7.
Glenda, vestindo um top de lantejoulas rosa por baixo de uma jaqueta jeans, saltou do ônibus defronte à praça da Matriz e caminhou em direção ao prédio Makan pela calçada escura. A cada dez passos parava, tentando encontrar uma forma mais confortável de carregar a banheira que acabara de buscar na casa de uma prima de Rita. “Não é nova, mas é útil para recém-nascidos”, dissera a mulher. Não quisera soar mal-agradecida, mas, antes de pegar o ônibus, pensou seriamente se valia a pena cruzar a cidade com aquela cangalha no lombo. Mas não queria correr o risco de magoar Rita. A verdadeira Mulher-Maravilha. A superpoderosa Rita. Deusa do bem. Nem sabia dizer o quanto era agradecida à jornalista. Tudo o que Rita fizera por ela. A confiança. O respeito. As oportunidades. No pior momento. Jamais poderia lhe pagar, nem que sua dívida fosse parcelada em suaves prestações até o fim da vida. E agora, mais essa: Rita lhe conseguira uma consulta no hospital da Face. Para uma cirurgia que tiraria do rosto as marcas das navalhadas que Poste lhe desferira. Não via a hora. Imagina, bi? Uma pele lisinha? Macia? Por causa das cicatrizes, ela se tornara aquele “ser humano” que ficava melhor com máscara. É verdade que investira um bocado nisso, colecionando modelos de vários tipos e cores, estampadas, bordadas, listradas, sempre combinando com o vestidinho. Tinha até uma que gostava de usar para zoar, cheia de caralhinhos vermelhos. Quando azarava um bofe do milênio, como Indioney, era sempre o mesmo perrengue. Costumava avisar antes do babado: está preparado para a sessão bagaceira? Muitos respondiam que sim, mas quando ela tirava a máscara, podia ver a decepção nos olhos deles. Agora, imagina? Eu, operada? Ela se perguntava, cheia de esperança. Sem Rita, concluiu, parando novamente e virando a banheira de ponta-cabeça para facilitar a caminhada, sem Rita, não haveria cirurgia, ainda seria um zumbi, dormindo na rua. Fazendo programas embaixo de porradas do Poste-charuf. Fumando crack para ter uma alegriazinha. Gratidão. Só por isso aceitou a banheira. Se recusasse, vai saber, a prima de Rita — uma crocodila que acreditava que, se a doação era para pobre, valia qualquer tranqueira — ainda poderia soltar veneno. Fazer futrica. Onde já se viu, pensou. Uma banheira toda arranhada. Só se foi usada para lavar o filho do arame-farpado, concluiu. Ainda daria uma kenfa na milionária quando ela própria fosse super-rica. Compraria para ela um lenço francês, para a baranga entender o que é dar um presente. De verdade. Uma bolsa. De marca.

Antes de chegar à esquina, retirou os tamancos cor de laranja e esparramou os pés com as unhas esmaltadas no chão, com alívio. Segundos depois, com menos dificuldade para rebolar, até seu humor melhorou. Nem era assim tão mequetrefe a tal da banheira, apesar daqueles desenhos de sapos idiotas, ponderou. E depois, a crocodila tinha razão: seria útil. Quando Jéssica chegasse da maternidade, trazendo no colo a fofíssima princesa Lorraine Cristal, já teria como dar banho na sua afilhada, pensou satisfeita consigo mesmo.

Nesse momento, viu Dido, mais à frente, sentado na calçada, sem camisa, pedindo esmolas para os transeuntes, ao lado do cão Afonsinho, que dormia com a cabeça apoiada na perna do garoto.

— Uó! Larga de ser inútil e me ajuda levar isto ali — gritou, apontando para o edifício Makan.

Dido virou o rosto, fingindo não escutar. Ela se aproximou, apoiou a banheira no chão.

— O mundrungo perdeu a língua?

Dido a encarou com desprezo.

— Cai fora.

— Escute aqui, ô, sem-terra. Nenhum otário vai dar grana para você. Todo mundo sabe para que você quer dinheiro. Carregue este trem até a minha casa. Pago uma salsicha pela ajuda!

— Dois merréis.

— É gororoba ou nada.

Dido se levantou com má vontade. Colocou a banheira sobre a cabeça e entrou na praça, com Afonsinho no seu encalço. Glenda os seguiu, com as sandálias numa das mãos e um guarda-chuva que retirou da bolsa na outra.

Coisa que ela detestava era andar por ali depois que toda aquela palhaçada da construção do condomínio Central Park do Brasil — com não sei quantas suítes e um montão de vagas na garagem e mais rooftop e a coisa toda — foi para o bebeléu. Com o calote que receberam, os pedreiros contratados e trazidos do “Brasil profundo” para erguer as três torres de prédios multifuncionais do ambicioso projeto, sem ter como voltar às cidades de origem, agora estavam ali junto aos catadores e desempregados, praticando o esporte preferido deles: dar porrada em trans e putas.

Dido e Afonsinho avançavam em ziguezague, desviando dos carrinhos, pulando colchões e viciados que dormiam no chão, contornando iglus ou tambores imensos com fogo ardendo no seu interior, e Glenda os seguia segurando seu guarda-chuva como quem carrega um porrete. Para quem se atrevesse. No trajeto, tudo lhes era oferecido: cachimbo, droga, telefone, tênis, rádio, cadeira, raquete de tênis, pão de azeitona, sexo, doces e mais uma porção de objetos usados e roubados; do mesmo modo, os pedidos vinham de toda parte: uma moeda, por favor, um real, por favor, um lanche, pelo amor de Deus, essa sandália aí na sua mão, essa banheira, um boquete, qualquer coisa, vá se foder, ela ia dizendo para os engraçadinhos.

Embora a praça fervilhasse àquele horário, cheia de espetáculos grotescos, com gente martelando estacas, discursando para o nada, dançando sem música nenhuma, esticando lonas ou pedaços de papelão para montagem de tendas, vomitando, dormindo, fritando porcarias, fornicando ou defecando, ninguém parecia ver nada. Mesmo assim, alguns rapazes jogavam capoeira ao som de um rap, à espera de esmolas. Perto do chafariz, uma criança vestida pelo pai pastor como um anjo, lia trechos da Bíblia em cima de uma lata velha de Suvinil.

Conforme o trio se aproximava do bar improvisado no declive da plataforma de concreto, de onde saía uma imensa lona azul amarrada a um poste de luz do lado oposto para formar uma tenda para os clientes, a balbúrdia da praça era encoberta pelo som das imensas caixas colocadas junto à bancada: ora funk, ora samba ou música sertaneja.

Havia fila naquele horário. Dido apoiou a banheira no chão e se postou atrás de uma mulher que mantinha duas mamadeiras nas mãos, na esperança de que o dono do bar fosse generoso e as aquecesse para as suas crianças.

Glenda logo se juntou a ele. Vendo-o ali, de costas, um fiapo de menino, quase conseguia enxergar o futuro que o aguardava: dali para casa do menor, da casa do menor para prisão, da cadeia para rua, e vice-versa. Não seria nada, não seria estudante, não seria homem, não teria casa, não teria profissão e morreria cedo se não tivesse a sorte que ela teve de encontrar uma Rita na vida. E era fato: não gostava do garoto. O que sentia era “uma peninha” desde a madrugada em que, dividindo uma bebida com Chilves e Jéssica, junto à fogueira, viu o moleque adormecer ao lado deles, todo encolhido ao lado do cachorro, murmurando algo. Quando os três, por diversão, se aproximaram para escutar o que ele dizia, o ouviram balbuciar entre soluços: “Mãe… Mainha…”. Foi o que bastou para que aquele pequeno ladrão de celular, craqueiro em tempo integral, voltasse a ser uma criança desamparada. A cena amoleceu seu coração. Não que quisesse salvá-lo. Procurava nem pensar nele, na verdade. Mas se o visse jogado na rua, como naquela noite, era difícil ignorar.

— Posso pedir miojo? Não gosto de salsicha — disse ele, quando chegou sua vez. Glenda concordou. Para ela, uma garrafa de catuaba.

Sentaram-se nos caixotes que serviam de banquinhos, embaixo de uma árvore cujo tronco, a sentir pelo odor, servia de urinol para os clientes. Glenda apoiava os pés sobre a banheira, para evitar que a roubassem.

— Onde mora sua mãe? — perguntou, depois de dar um gole na bebida.

— Não fode — respondeu o garoto.

— Finja que está no sofá do programa da Fátima, moleque enquizilado. Você não sente falta dela, não? Da sua mãe?

Dido odiava essas conversas. Preferia nem responder. Mantinha uma expressão carrancuda no rosto, mas, ao se dirigir a Afonsinho — cujo aspecto não tinha mais nenhum vestígio da desnutrição da época em que fora adotado —, seu semblante imediatamente perdia a dureza e sua voz se tornava carinhosa e infantil.

O fato de Dido não olhar para ela e de não responder direito às suas perguntas a exasperava. Aprendiz de escroto, pensou Glenda. Não tem nem tamanho e já está todo entupido de preconceito.

Jamais conseguiria ser a Rita de uma alma sebosa como Dido, se deu conta, ao vê-lo deitar todo o resto da comida no chão para Afonsinho. Bastava um minuto ao lado daquele machinho de merda, que só conseguia conversar com cachorro e pronto, toda sua compaixão ia para a casa do caralho. E depois, a história dele não era especial nem diferente de ninguém ao redor, se deu conta. Nem da sua. A família de cada uma daquelas pessoas naquela praça era uma ferida aberta na vida delas. Dido que se virasse. Que aprendesse. Que se safasse. Se não quisesse morrer cedo.

— Bora? — disse ela, se levantando.

O moleque ainda estava ajeitando a banheira sobre a cabeleira suja, quando a confusão se armou.

De súbito, o policial Marreco apareceu diante deles, gritando. Diziam que ele gostava de pegar cracudo, no fluxo, para rodar com eles pela cidade, ameaçando matá-los. Era sua política antidroga. Diziam também que os viciados eram obrigados a comer excrementos nessas sessões de tortura. Na época em que Glenda fazia programas, conheceu uma prostituta que teve o pé baleado pelo policial. Chilves ficara quatro meses detido ilegalmente por causa de Marreco. Ao vê-lo, já se precavendo, Glenda imediatamente sacou o celular da sua bolsa.

Junto de outro policial, com uma arma na mão, Marreco acusou Dido de roubar a bolsa da mulher de óculos que os acompanhava.

— Foi ele! — confirmou ela, de modo discreto. — Tenho certeza.

Afonsinho não parou de latir até receber no focinho alguns borrifos do spray de pimenta que Marreco trazia na cintura.

Ao ver o cão ganindo e girando desesperado, Dido se jogou sobre o animal.

— Devolve a bolsa da senhora! — gritou Marreco, chutando as pernas do menino no chão. Glenda tentava explicar que o garoto estava com ela na última meia hora e, portanto, era impossível que estivesse envolvido no roubo. Marreco a ignorava.

— Verme. Piolho — berrava, ao golpear Dido. — Devolva logo essa porra antes que eu coma você de porrada.

Glenda levantou o telefone e começou a registrar a agressão.

— Não faz isso, não faz isso… — alguém soprou em seu ouvido.

— Sua bicha nojenta — esbravejou Marreco ao perceber que ela o filmava. — Saia da minha frente se não quiser ser presa também.

Glenda deu um passo para trás, mas continuou a gravar, aproveitando o tumulto que se criou com a chegada de um terceiro policial. O homem trazia um moleque franzino como Dido, algemado. Na outra mão, ele segurava uma grande bolsa vermelha, de couro.

— É essa, senhora? — perguntou o policial, mostrando a bolsa.

A mulher de óculos, constrangida, confirmou. Reconheceu também que aquele rapaz, e não Dido, era o que a havia assaltado minutos antes.

O resto se deu muito rapidamente. Enquanto os policiais e a mulher deixavam a praça, Marreco, franzindo a cara, se aproximou de Glenda, fazendo o sinal para que ela lhe passasse o telefone.

— Não gravei — mentiu ela.

Num gesto brusco, o policial tomou o celular das mãos dela.

— Vou apagar, criatura — disse ela. — Não deu tempo.

E, nesse instante, ela cometeu seu maior erro: olhou-o nos olhos. Qualquer pessoa que vive nas ruas sabe que os policiais tomam isso como afronta.

— Você está preso! — disse Marreco.

Glenda foi algemada. Antes de ser levada, ainda gritou para Dido:

— Deixe a banheira na ocupação — e seguiu rebolando, rumo à viatura.

A banheirinha de Lorraine Cristal, estampada com uma família de sapos sorridentes, meia hora depois estava à venda na feira do escambo por trinta reais.

Patrícia Melo

Nasceu em Assis (SP), em 1962. Vive na Suíça. Entre romances e um livro de contos, publicou 12 títulos. Mulheres empilhadas (2019), Gog magog (2017), O matador (1995), adaptado para o cinema com roteiro de Rubem Fonseca, e Inferno (2000), vencedor do Prêmio Jabuti, são alguns de seus trabalhos de fôlego. Na narrativa breve, lançou Escrevendo no escuro (2011). Sua obra está publicada, entre outros países, nos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e França. Recebeu os prêmios internacionais Deutscher Krimi-Preis, LIBeraturpreis e Deux Océans. O romance Menos que um será lançado em breve pela LeYa.

Rascunho