as mãos calejadas dizem
do corte da cana
carregam entulhos
cinco litros d’água
para sustentar a fome
nas depressões inundadas
os passos afundam
como se afundasse
um navio negreiro
com ele
muitas vidas viraram
obras de museu:
um homem sem rosto
um rosto sem nome
um nome sem gente
e sua terra incinerada
minha família veio num desses
que não afundou
com a tempestade
dispersa
nossa história enterrou-se
difícil encontrar os ossos
e as pedras que dirão de nós
memória tem águas espessas
herdeira de boia-fria
nasci com as mãos ásperas e o destino solto
era o que se dizia de gente assim
seja o que deus quiser
não contava
importante considerar
deus poderia não querer nada
o jeito cavar o caminho
até o chão morre de sede
não tem medo do que come
mas do quanto jejua
ensina paciência
paciênciapaciênciapaciênciapaciência
paciênciapaciênciapaciência
paciênciapaciênciapa
ciência
ci
ên
cia
nem tudo é pra hoje
sei pelas terras do passado
guardadas
debaixo das unhas
não tem banho demorado que tire
é de família
as vidas se repetem
uma pessoa
se multiplica
pra dentro da vida da outra
que vai nascendo para frente
como fossem partes
de um mesmo e único
espírito
só que mudando de nome
os mesmo vícios
as mesmas quedas
o mesmo erro
as mesmas sinas
os mesmos karmas
a mesma trilha
de mãe para filho
de pai para filha
o ciclo quando não se rompe
represa
repele
reprisa
dizem
a gente tem hora de morrer
para se encontrar de novo
obatalá
ajalá
ori odu
com os pés enraizados na terra
suporto na pele de onde vim
por isso voltei
não temo insistir pisar no mesmo lugar
não temo
refazer
redizer
recomeçar
andar para trás é um jeito de chegar mais longe
o futuro é ancestral
a estrada nunca pareceu longa
irresoluta
apertada
quente
de arder
nas costas
o real nunca pareceu
inerte
morredouro
caduco
de dar câimbra
na língua
o passado
fio que se rompe e se remenda
alinhava retalhos
de órgãos vitais acidentados de sanidade
rede
parabólica
ou de pesca
recolhendo do umbigo
o laço que so
bra
meu rito de passagem
minha fé
na revolta
há séculos moramos na raiva
pelos que atravessaram tantas estradas de água e cana
há séculos morro vendo o corpo escanzelado de nossa genealogia
cantando um grito seco no porão das embarcações
há séculos nasço qual bicho de carga
arrancado de um ventre marcado a ferro
de um vagina cortada
à faca
conheço a sepultura dos descorados
onde está escondida a vergonha
a cara lavada do escravocrata
seus contos de violação
dessangram
aprendi com as plantas que o povo renasce da memória
não há lamento
nem obediência
o relógio circadiano mede o tempo
coordena as respostas de cada hora
e a minha vó é a voz que pede para voltar