Medéia

Conto de Cristhiano Aguiar
Ilustração: Osvalter
01/02/2008

I
Antes de pisar no palco, lembrei de um sonho.

Dezenas de pés descalços pisavam em uvas, colocadas dentro de um grande tonel; eu podia sentir o cheiro das milhares de uvas se abrindo e perfumando os calcanhares. As pessoas que pisavam nelas — será que queriam fabricar vinho? Será que essa é uma lembrança antiga da fazenda? Como se faz vinho? — pareciam dançar. Eu não conseguia ver seus rostos. Quem eram?

De repente, alguém se aproximou. Vinha de lugar algum. A presença segurava um candeeiro — luz manchada e balançante, cerração. Seus pés estavam descalços, assim como os meus. À medida que se aproximava, eu podia ver melhor… Meu Deus!

Sei que o reconheci…

(A personagem Ama entra no palco onde se vai encenar a peça Medéia, escrita por Eurípides. Tudo escuro, exceto por uma luz que agora se acende sobre a atriz. É como na criação do mundo: uma escuridão, uma única luz repentina e uma mulher. Ama explica que a estrangeira Medéia abandonou a sua família e matou o irmão para casar com o grego Jasão que, ingrato, a trocou por outra mulher, filha do rei da cidade em que moram. Por causa disso, Medéia jura vingança e seu ódio é tamanho que poderia até matar os filhos para magoar Jasão. Uma segunda luz se acende e surge um homem, o personagem Preceptor. Depois, ouvimos as vozes do coro, sobre o qual não incide luz alguma. Daí, Medéia dá o seu primeiro passo e entra em cena: diversas luzes se acendem, giram e piscam e revelam um palco extremamente elaborado, com formas retorcidas, rostos de deuses, máscaras, falos e uvas):

MEDÉIA: O meu marido, que era tudo para mim — isso eu sei bem demais — tornou-se um homem péssimo. Das criaturas todas que têm vida e pensam, somos nós, as mulheres, as mais sofredoras. De início, temos de comprar por alto preço o esposo e dar, assim, um dono a nosso corpo. Mas o maior dilema é se ele será mau ou bom, pois é vergonha, para nós, mulheres, deixar o esposo. Por isso, se eu descobrir um meio, um modo de fazer com que Jasão pague o resgate de seus males! Vezes sem número a mulher é temerosa. Se, todavia, vê lesados os direitos conjugais, ela se torna, então, de todas as criaturas a mais sanguinária!

Hipólito Lins, o encenador de Medéia, não era ainda um nome consagrado, embora já fosse conhecido. Nos conhecemos numa festa de um amigo em comum e logo viramos amantes. Vendi meu apartamento e fui morar com ele.

“Essa é a grande chance, Celina”, ele me disse, numa das primeiras noites em que dormimos juntos, “Eu sou algo como um cult, mas esse é o caminho da minha consagração. Já te mostrei o projeto de iluminação e de cenografia? Eu quero causar um curto-circuito de sensações”.

Ele tinha quase cinqüenta anos, era tão bonito quanto um pai bonito. Sua família fora muito rica, mas caíra em desgraça financeira um pouco depois do seu nascimento. Seu apartamento, num bairro nobre do Rio, era mantido com muita dificuldade. Freqüentemente, Hipólito pedia dinheiro emprestado aos amigos. Eu mesma paguei várias de suas dívidas e contas, seja com o dinheiro da venda do meu apartamento, ou com o dinheiro que eu pedia emprestado aos meus pais, que moravam no interior de São Paulo.

Fiquei impressionada quando entrei pela primeira vez no apartamento. Por todos os lados, fotos dos seus antepassados, não apenas tios e seus pais, mas de avós, avôs, bisavós, bisavôs; homens com portes orgulhosos e bigodes pontudos, alguns posando com pistolas nas mãos; mulheres bonitas, mulheres distantes. Ele ressuscitava aquelas memórias numa afetação de aristocrata embriagado: baixelas, pratarias, louças, móveis antigos. Quase cômodos, quase mausoléus. Ninguém podia tocar naquelas coisas. Era ele mesmo quem limpava as relíquias, todos os dias, de forma obsessiva.

“Em outra encarnação, fui uma rainha pagã, com as unhas compridas e forte maquiagem por cima dos olhos! Eu te amo, Celina, e quero que você seja meu rei no meio desses ossos, dessa memória.”

Maldito.

II
(Medéia recebe a visita de Creonte, rei da cidade. Creonte, pai da nova mulher de Jasão, avisa que ela e os dois filhos que ela teve com Jasão deverão partir imediatamente, sob pena de morte. O ator que faz Creonte calça um longo coturno; linhas de tinta fosforescente cobrem seus braços e pernas; próteses aumentam a ponta dos pés, os cotovelos e os dedos. Ele se move como uma árvore velha. Ele range. Medéia implora a piedade de Creonte e ele lhe concede mais um dia. Assim que ele se afasta, ela diz:)

MEDÉIA: Lisonjeei Creonte para o meu proveito… Deixou-me ficar mais um dia. E neste dia serão cadáveres três inimigos meus: o pai, a filha e seu marido! Incendiarei o lar dos noivos, ou lhes mergulharei no fígado um punhal bem afiado?

Iam juntos para todo lugar, desde que se conheceram. “É um ator talentoso, fantástico, não é mesmo, Celina?”. Talentoso e bonito, Jasão — não quero chamá-lo pelo nome verdadeiro — tinha impressionado Hipólito. Viraram melhores amigos. Faziam feira juntos. Iam todas as noites ao boliche. Liam um pro outro. Procuravam juntos financiamentos. Várias vezes nos reunimos, nós três, na nossa casa — minha e de Hipólito, casa de ninguém mais! — para beber vinho, ver filmes, fumar um baseado.

Eu e Jasão nos olhávamos de alto a baixo, nós nos medíamos, num embate de forças que eu ainda não compreendia; ele era educado e culto, me tratava muito bem, mas se inclinava todo na direção de Hipólito como o verde se inclina na direção do sol… Hipólito te convidava a entrar e você se enredava, orgulhoso de ser presa.

Pensei que a alta consideração que ele tinha por Jasão estava relacionada à fascinação canina do seu ator favorito; pensei isto até flagrá-los — tenho certeza de que esta foi uma cena cuidadosamente planejada por Hipólito — agarrados sobre a nossa cama, cama que eu paguei. Jasão me olhou com surpresa e vergonha, mas não o soltou; uma sutil camada de batom preto cobria os lábios de Hipólito.

Gritei, louca, mas não me movi. Gritei, gritei. Pensei em bater neles. Pensei em quebrar a porra das louças. Não: gritei até esgotar minha voz. Em seguida, parada, apenas. Rosto contorcido. Atravessada.

As mãos deles não se soltaram, não até o final… Meu batom vermelho, manchado por causa das lágrimas, me transformava num palhaço apavorante.

III
MEDÉIA: No auge da tormenta em que me debatia apareceu esse homem, porto seguro. Mas… Mudo o meu modo de falar, pois tremo só de pensar em algo que farei depois: devo matar minhas crianças e ninguém pode livrá-las desse fim. Matando-os, firo mais o coração… Do pai. Jamais voltará ele a ver vivos os filhos que me fez conceber, e nunca terá outros de sua nova esposa que — ah! Miserável! — deverá perecer indescritivelmente graças aos meus venenos!

(disse Medéia, após convencer Egeu, rei de Atenas, a dar-lhe abrigo na cidade dele).

Descobri a gravidez no final dos ensaios, pouco tempo depois de saber do caso dos dois. Eu não lhe disse. Porque ele não merecia, porque tive medo de que me expulsasse de casa, ou da peça. Como fazer uma Medéia grávida?

Ele me expulsaria de casa? Como poderia? Aquela cama era minha cama, não deles! Se eu saísse, eu levaria várias daquelas coisas, quebraria suas malditas memórias, que só se mantinham em pé porque eu o ajudava a pagar! Ele, no seu orgulho, no seu fumo importado, nos seus perfumes chiques e com seus amigos tolos; os jantares nos restaurantes, as noitadas nas boates dos famosos… Eu amando esse mundo através do meu amor por ele, ele, ele!

Jasão continuou nos visitando. Hipólito mal falava comigo. Caía a máscara. Ele mal me tolerava! Há quanto tempo?

Há quanto tempo queria me falar? Esperava que eu, chocada, saísse de casa e o deixasse com o outro? Não. Eu fiquei. Com um filho dele, sobre o qual pendia uma sombra.

Não nos falávamos. Dormíamos juntos na mesma cama — nenhum de nós abria mão do quarto — mas não nos tocávamos. Jasão vinha. Eu ficava na sala. Para que soubessem de mim. Eu ouvia. Os ruídos deles, ou os silêncios; triturava com os dentes os meus ódios: esperando. Esperando.

Meu filho me encaminhava para veredas de morte. Hipólito com sangue nas mãos e coberto com sombra e pó… E se eu matasse por dentro para matá-lo por dentro? Ele sofreria pelo filho? Assassino de mim, me parindo uma assassina da minha própria alma e honra…

Meu corpo, um baque surdo e repentino no palco. Caí num dos ensaios, enfraquecida pelo início da gravidez — tonturas, enjôo, tristeza. Jasão me segurou e me carregou até os camarins. Limpou meu suor. Comecei a chorar, a bater nele e arranhar seu rosto, “Filho-da-puta, filho-da-puta, não me toque”; ele me segurou com mais força e pediu calma, ele me segurou com sua força de homem; eu o odiava, eu queria arrancar sua pele e jogar sal por cima, mas ele chamou meu nome e beijou minha testa, ficou me olhando e eu fiquei confusa, porque eu percebi que, ali, precisava dele…

“Não vou desistir de Hipólito”, eu disse, bem dentro dos olhos.

“Fique calma, Celina. Eu estou aqui com você. Você… Passou mal, tudo está bem agora”. Mas eu não conseguia parar de olhá-lo e sentir nojo, não conseguia deixar de… Ao mesmo tempo, seus braços eram quentes e neles eu encontrava um conforto agridoce, que me repelia, me atraía, que adoçava a ponta da língua e rasgava lá no fundo, lá na garganta.

IV
(Jasão se reencontra com Medéia, a pedido desta. Jasão tentara convencê-la de que sua decisão era a melhor coisa para os filhos, que teriam uma linhagem real com o novo casamento dele. Medéia o hostilizara, mas agora diz que quer fazer as pazes: dá um presente para a noiva de Jasão, tudo em troca da permissão para que seus filhos permaneçam em Corinto. No presente, está o veneno que lamberá com fogo as vidas de Creonte e sua filha:)

MEDÉIA: Ai de mim! Queridos filhos meus! Agora vos espera, para meu desespero, um mundo diferente, outra morada… Sofri em vão por vós, dilacerada nas dores atrozes do parto! Sinto faltar-me o ânimo, vendo a face radiante deles! Não! Não posso! Tenho que ousar! Não os entregarei à sanha dos inimigos, pois perecerão, linchados, assim que Creonte e a princezinha morrerem! Ah, minhas mui amadas mãos! Lábios mui amados! Rosto altivos dos meus filhos! Sede felizes, ambos, noutro lugar!

Jasão cuidou de mim. Me recomendou, por exemplo, uma mudança de ginecologista. Foi comigo, em segredo, olhar coisas de bebê e me comprou remédios e fez minhas primeiras vontades de grávida. Hipólito ainda não sabia.

Ele parou de visitá-lo, mas não de me visitar. Hipólito teve ciúmes. Nada falava, por orgulho. Nem sequer nos olhava, o que magoou o seu querido Jasão. Provavelmente, ele tentava entender a mudança de comportamento do amante, pois sabia que não tínhamos um caso. Me senti um pouco vingada.

Às vezes, eu não suportava Jasão. Mas garanto que ele nunca foi bondoso na medida errada. Simplesmente, de uma hora para outra eu o olhava e só sentia ódio. Mas eu dependia tanto dele… E eu acabei gostando dele, da sua humanidade! Por que não a teve antes?

Nunca quis ser íntimo — se contentava em ser prestativo — não até que eu o convidasse às confidências. Víamos muita TV juntos: eu no seu colo, ou encolhida, com a ponta da cabeça tocando o seu quadril. Outras vezes, tomávamos sorvete na praia, ou íamos à academia juntos. Conversávamos muito. Foi ele quem me convenceu, finalmente, a contar.

“Você corrói tudo o que toca”, Hipólito me gritou, quando eu contei da gravidez. Atravessou o apartamento, abriu a porta e jogou cédulas de cinqüenta reais no chão. Não acreditei: ele propunha aquilo. Fiquei escandalizada, coloquei a mão no peito e me sentei numa cadeira, porque minha vista enegrecia. Acordei não sei quantas horas depois, nua, na nossa cama. Ele estava ajoelhado ao meu lado, com a mão na minha barriga e os olhos fechados. Assim que acordei, Hipólito abriu os seus olhos e houve uma harmonia de poucos segundos, a nossa última até o fim dos tempos… Ele se afastou, embaraçado, mão no pote de mel. Me levantei, me vesti e fui embora. Antes de bater a porta, eu ouvi sua voz me seguindo, fraca, adoentada: “Onde, onde… Você vai?”.

Eu não sabia. Senti o gosto do triunfo na sua fraqueza de pai.

V
Jasão, no palco, chorava a morte dos filhos, do sogro e da noiva, todos mortos pela magia e pelo punhal de Medéia. Uma música atonal, pontuada de gritos de cães e silvos de serpentes, atormentava os ouvidos dos espectadores; uma suave neblina cobria os meus pés e os dele.

JASÃO: Monstro! Mulher, de todas, a mais odiada, por mim e pelos deuses, pela humanidade! Tens de morrer! Dana-te, pois, infame, nojenta infanticida! Resta-me somente gemer, curvado aos golpes deste meu destino.

Ascendi até o alto, elevada por uma corda; era o carro protetor do deus Apolo, meu avô, que me elevava; luzes quentes me iluminavam, como se eu fosse um anjo de fogo; minhas roupas histéricas foram recobertas por pedaços de vidro: eu suava luz.

MEDÉIA: Sofro menos se não ris… Meus filhos, matou-vos a perfídia deste pai! Volta! Vai sepultar a tua esposa! Hoje, queres afagá-los; até há pouco, nem os procuravas. Hei de enterrá-los no santuário de Hera, onde nem tu, nem mais ninguém, possa ultrajá-los violando-lhes o túmulo!

Hipólito chorava? Tenho certeza de que oscilava, feito um equilibrista sob uma corda estendida; teria que sacrificar sua peça, por causa da minha gravidez, porém manteve a estréia e agora se perguntava o quanto minhas palavras de loucura eram irmãs da desmedida de Medéia. No meio das luzes, do fogo e do punhal ensangüentado na minha mão esquerda, eu também me perguntava: “Hipólito, Hipólito, o quanto te dói este filho…?”.

Elevada acima de todos, eu podia ver as paredes e o teto do teatro, os espectadores comovidos e apagados numa só noite, numa só idéia, enredados nas palavras arcaicas de Eurípides; eu via o deus diante de mim — as lanternas balançando, os pés descalços — trazendo a espada, nunca a vitória; eu via uma boca gigante de fogo e uma máscara partida; dedos nodosos cobertos de sargaço, eu via, eu via; eu via raios dançando embaixo de barbas antigas e deusas belíssimas com rostos vincados… Eu via meu filho. Teria coragem de tomar agora o teu lugar, Medéia, e trazer-te de volta, até embaixo? Meu filho, carregado em mim, eu teria coragem — estou descendo das alturas e as luzes se apagam — de escolher a morte e não a vida?

Assim que meus pés tocaram o palco… Assim que meus pés tocaram o palco, uma vaga de palmas me afogou numa explosão de vida humana! Eu estava transformada. Eu não estava sozinha, ainda. Me virei, costas para a platéia. As palmas limpavam as manchas que os gritos deixavam nos meus ouvidos. Tudo foi escuro.

Cristhiano Aguiar

Escritor, editor e crítico literário, co-editou a antologia de contos Tempo bom e a coletânea de ensaios Intérpretes ficcionais do Brasil. Os trechos aqui publicados são fragmentos da novela inédita Lugares incertos.

Rascunho