Martelos, alicates e coisas assim

Conto inédito de Marco Polo Guimarães
Ilustração: Theo Szczepanski
29/01/2015

Os homens têm cabelos curtos grudados ao crânio. Andam sob a terra, nos túneis e galerias que coagulam o sangue sujo da cidade. São três e usam a mesma indumentária: camisetas cor de papel, bermudas cor de areia, botas longas de borracha cor de asfalto. Não falam não falam não falam. Formam uma santíssima trindade sinistra pois em suas mãos levam objetos de metal que não pressagiam boa coisa para quem eles vão encontrar.

Andam como casualmente andam manequins maneiristas numa passarela iluminada por Caravaggio. Lidam todos os três com questões em última análise parecidas. Seus cérebros podem computar o que está rolando por conta da estereovisão e do poder de processamento trabalhando em tempo real. Eles não se perdem de seu objetivo e não precisam trocar impressões ou informações. Não falam não falam não falam.

Boa parte do seu trabalho trata do relacionamento entre homem e máquina, ou melhor, entre homem e objeto. Eles não usam capas. Sua ação é direta sobre a carne do outro e pode produzir muita sujeira. Certamente seu envolvimento com os detritos faz parte de sua natureza, sendo aqui natureza entendida como o que há de implacável num animal voraz. Eles gostam de deixar para trás uma imagem que é como uma assinatura.

Os homens são ao mesmo tempo magros e musculosos, seus olhos têm cor de ouro fosco embora esta seja uma comparação certamente imprecisa. Seus lábios são fendas sem lábios e suas expressões na verdade são inconclusivas oscilando entre a indiferença e um prazer secreto. São como quadros de avisos num hospital. Há alguma coisa de imediatismo mas também de casualidade na maneira como se movem.

Agora eles sobem por uma escada vertical até saírem no interior de uma fábrica deserta. Há um colchão no chão com um lençol branco e uma mulher jovem e nua com as pernas e braços abertos amarrados a quatro estacas metálicas fixadas no solo. Ela está amordaçada mas tem os olhos bem abertos e os cabelos bem curtos. Ali é, ou foi, uma fábrica que lidava com produtos químicos, há um cheiro acre no ar. Não está calor demais ou frio demais e aquela vasta sala poderia ser o estúdio de um artista.

Obviamente não sou responsável por isso, mas existe aquele senso de que uma peça de roupa caída no chão tem algum significado. A um canto da sala está largada uma lata de tinta cor de sangue. Os homens já não estão mais ali e de um lugar cor de noite bem adiantada pequenos focinhos farejam. É certamente uma fábrica abandonada pois há muita poeira nas máquinas. Não há sequer uma sombra cor de grama e o odor do uso prolongado de produtos químicos se mistura ao de restos orgânicos.

Marco Polo Guimarães

Jornalista, poeta e compositor. Nasceu em Recife (PE), em 1948. Foi hippie, artesão, tradutor de livros de bang-bang, cantor de banda de rock, gerente de supermercado e diretor de museu. Publicou os livros Voo subterrâneoNarrativasMemorialBrilhoPalavra claraA superfície do silêncio e Caligrafias.

Rascunho