Fui chefe desta seção durante muito tempo. Mandava e desmandava em todo mundo que trabalha neste andar. Mas aí mudou o governo, o presidente, a superintendência, a diretoria, o chefe de divisão e me tiraram do cargo.
Mandar embora, eles não podem, porque sou efetiva. Concursada há vinte anos, tenho estabilidade.
Poderiam ter me mudado de setor, mas quem disse que eles perderiam a oportunidade de me ver sentada numa mesinha de fundo, abrindo e fechando malote o dia inteiro. O novo chefe esperou muito por isso. Um meninote que tem feito uma cagada atrás da outra. Eu calo a minha boca. O que sei, aprendi sozinha, ele também tem que aprender.
O pessoal se diverte ao me ver tão sem ter o que fazer, tão sem ordem pra dar, olhando pela janela, fazendo palavras cruzadas, tirando a cutícula. Mas se pensam que eu me sinto humilhada, enganam-se. Daqui a quatro anos, o presidente muda e eu volto pro meu lugar.
Conforme a hora do almoço se aproximava, percebi o diz-que-diz-que, a troca de olhares. Todos ali sabiam que meu salário fora reduzido à metade. Eu não podia me dar ao luxo de comer fora.
Ao meio-dia, tirei a marmita de dentro da bolsa e perguntei onde era o refeitório. Altivamente. Não tenho vergonha da minha nova condição. Pelo contrário, essa marmita é a prova da minha honestidade. Se tivesse entrado em falcatruas, não precisaria passar por esse constrangimento.
Até a ascensorista virou o rosto pra esconder o risinho de satisfação quando pedi: terceiro andar. O ser humano é um bicho muito ruim.
Duas longas mesas atravessam o refeitório de ponta a ponta. Ao redor, dezenas de cadeiras de plástico. No canto esquerdo, um aquecedor com água borbulhando. Antes que eu mergulhasse ali minha marmita, alguém teve a delicadeza de me avisar:
— Se a senhora preferir, tem microondas. Pode usar.
Um minuto e meio e a comida estava quente.
Sentei ao lado de uma faxineira que espiou com o rabo de olho o que eu trazia. Na dela, um bife, arroz branco e berinjela refogada. Tudo misturado. A marmita veio balançando dentro da bolsa. Para evitar essa lambança, comprei uma com divisórias. Pode ser frescura, mas certas coisas devem ser mantidas, seja quem for o presidente. A vida não precisa virar um inferno só porque se perdeu um cargo.
À minha frente, as amigas combinam:
— Amanhã você traz o arroz, eu trago mistura pra nós duas.
Alguém me avisa que a salada é comunitária.
— Toda semana, cada um dá dois reais e a gente compra salada pra todo mundo. Se quiser usar o tempero daqui é mais um real.
Topo participar da vaquinha da salada e dos temperos. Adeus azeite extra-virgem, sal marinho, aceto balsâmico.
A televisão do refeitório fica ligada o tempo todo. A imagem não é lá essas coisas, mas mexendo na antena ela melhora. Eles conversam baixinho, de olho pregado na tevê. Não há briga pela escolha dos programas. A turma das onze e meia vê o final do programa feminino, a do meio-dia, o jornal de esporte, a da uma, o telejornal. A partir de amanhã venho almoçar mais tarde.
Daqui a quatro anos, teremos eleições novamente. Sentada nessa mesa de refeitório, eu ouvirei a notícia de que mudou o presidente, o superintendente, o chefe de divisão. Até lá terei participado de não sei quantas vaquinhas pra salada e pros temperos. Faltará apenas um ano para eu me aposentar. Isso se eles não mudarem a lei da previdência. Ou não matarem o presidente. Ninguém sabe o que uma mulher obrigada a comer de marmita é capaz de fazer.