B869.301 R896c, Marlene digitou o código, imprimiu em um papel branco, recortou em um formato retangular, levou até a lombada, centralizou a tira e pôs uma fita adesiva transparente por cima. Depois abriu a última página do livro e nela colou um envelope branco, dentro, enfiou dois cartões ainda não preenchidos. No de cima, lia-se nome do usuário, e no outro, data de empréstimos. Os cartões não estavam preenchidos, mas ela sabia que nessas fichas estaria registrada a vida daquela doação que acabara de receber da cozinheira da escola, “Estava lá em casa há anos, meu pai gostava muito de ler, fomos doando quase todos, as crianças destruíram alguns, este foi ficando, está autografado, deve ter algum valor”.
Enquanto a cozinheira ia falando frases soltas, denotando, no fundo, que via o livro como parte do pai que falecera, Marlene pensava em tantas outras situações como aquela, vividas desde que fora trabalhar ali. Assim como a cozinheira doou o livro querendo tê-lo por perto, para que fosse cuidado por alguém que entendesse o seu valor e até para manter de alguma forma o pai vivo, outros chegavam à biblioteca com algumas obras que apenas eram raras para si, parte de acervos pessoais de algum familiar que tivera maior apreço pela leitura.
Depois que esse familiar falecia, com o tempo, os livros deixavam de ter sua função decorativa nas estantes das casas daquelas pessoas pobres e, embora lembrassem os que partiram — por isso não conseguiam jogá-los no lixo —, se tornavam algum tipo de objeto fora de lugar, uma lembrança de vida aprisionada nas páginas impressas, fechada em papel mais duro, que trazia saudade, às vezes culpa e, em outras, acusações — pensava Marlene, que, para se distrair, resolveu elaborar divagações sobre aquele livro doado, já que estando disposto por anos na estante da casa da cozinheira, quando a família se sentava no sofá para ver televisão, o livro estava lá, na estante, olhando para eles.
A cozinheira não entendeu o pensamento da bibliotecária, na verdade achava a mulher um pouco estranha, uma estranheza no olhar como a que muitas vezes percebeu no olhar do seu finado pai. Se sentiu incomodada, invadida, estava fazendo um bem, doando um livro que os meninos da escola poderiam quem sabe gostar de ler. Então, sorriu. Agiu como fazia quando não compreendia muitas coisas ditas pelo pai, fingia, com um sorriso silencioso, para que ele não a chamasse de burra, de inculta, irritado com as escolhas que a filha fizera na vida, e se ele insistisse mirando dentro dos seus olhos, era com um “hurrum” que Neide se desvencilhava, mas entender, não entendia.
Entregue a última lembrança do pai, Neide retornou para o refeitório. Marlene ainda teria que preparar a leitura para o grupo de alunos que receberia no fim da tarde. Foi até as estantes guardar o novo título. A biblioteca era uma sala pequena pintada de verde, o piso formado por quadrados preto e branco lembravam um jogo de xadrez. Marlene sentava-se à mesa que se localizava logo na entrada do espaço, ali atendia aos usuários, fazendo empréstimos e devoluções, tirava dúvidas, informando sobre o acervo, auxiliando na pesquisa dos estudantes, conversava sobre os livros que lera. Entre essa recepção e o local em que as estantes estavam fixadas, havia um espaço com algumas mesas redondas de compensado e frágeis cadeiras plásticas, coloridas, quase sempre todas ocupadas pelos alunos. Mais à frente, estantes de aço, algumas bastante enferrujadas e tortas, abrigavam o reduzido e diversificado acervo — alguns títulos doados por professores e outros que Marlene comprava, lia e incorporava à coleção. A bibliotecária estava animada, naquela tarde leria João Cabral de Melo Neto, Uma faca só lâmina, “entregue inteiramente a fome das coisas”, o verso não lhe saía da cabeça.
Passou o resto da manhã e início da tarde organizando os livros na estante de acordo com a classificação, parava em alguns, lia um pouco e arquivava. Em outros, se atentava na imagem da capa, no cheiro, no tamanho das orelhas, gostava demais da classe sete, dos livros sobre pintores e escultores, mas estes preferia levar para casa, preparava chá de camomila e passava as horas antes de dormir se aconchegando entre obras de arte.
Dar conta sozinha daquele espaço ajudava a colocar as coisas dentro de si no lugar. Quando apareceu na escola e ofereceu seus serviços como bibliotecária, não sabia exatamente o que estava fazendo, um redemoinho ocupava a sua cabeça, lembrava-se de poucos fatos daquele período. A diretora, reticente, disse enérgica, “atualmente as crianças leem no celular, está tudo no celular, minha filha!”. Marlene argumentou que a vida não cabia no celular, mas cabia dentro de uma biblioteca, e ficou séria, parada, olhando por uns instantes dentro do espanto no centro dos olhos da diretora.
Por fim, vendo-a irredutível diante da sua oferta de trabalho voluntário, tentou apresentar um motivo, “preciso muito trabalhar, aceito inicialmente não receber, moro há duas ruas daqui, ficar em casa vem sendo um martírio”. A diretora não se convenceu da importância de se criar uma biblioteca, mas o desamparo de Marlene tocou em alguma imagem sensível perdida no coração da sua memória. Então, conduziu a bibliotecária até um salão vazio que tinha servido como lanchonete da escola. Paredes mofadas, algumas mesas redondas de compensado empilhadas pelos cantos, estantes de ferro, que serviram ao estoque, deitadas no chão. “Temos esse espaço!”, a diretora imaginou que Marlene sairia correndo, ela nunca conhecera uma bibliotecária.
Em poucos dias, com o apoio de alunos, familiares e professores, a biblioteca estava montada e na inauguração Marlene leu Tecendo a manhã, “para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo”. Foi aplaudida e por pouco não desmanchou a maquiagem.
***
Naquele início de tarde, após arrumar as estantes, pela primeira vez Marlene receberia aquela turma para os encontros de leitura, isso a deixava sempre tensa, nem todos gostavam de ler, era sempre uma conquista, um empenho de energia, uma sedução com o grupo.
Embora fosse particular, a escola ficava em uma região pobre e periférica da cidade. Marlene vivia naquele sub-bairro por não conseguir se desprender da casa em que fora criada, da rua de sua infância e de um passado que tanto a feria quanto sustentava. Os alunos chegaram, sentaram-se em uma roda formada de cadeiras organizadas pela bibliotecária. Alguns riam, um trazia um livro nas mãos, outros pareciam aborrecidos. Do grupo, poucos frequentavam a biblioteca, apareciam apenas em aulas dirigidas lecionadas por professores naquele espaço. Marlene distribuiu as cópias dos poemas. Risinhos, euforia, curiosidade e desinteresse nos rostos da turma. A bibliotecária explicou que cada um leria um trecho. O jovem que chegou à biblioteca com um livro nas mãos começou “assim como uma bala, enterrada no corpo…”.
Terminada a leitura, alguns alunos começaram a fazer comentários, em alguns, Marlene já sabia, o texto parecia colidir em uma crosta impenetrável. Para a bibliotecária, estes alunos pareciam vazios por dentro, sem a bagagem. Estes, e os outros que comentaram sobre violência policial e sobre a fragilidade da vida que se avizinhava da realidade deles, no instante exato do fim do tempo do encontro na biblioteca, se levantaram e saíram animados.
No círculo de cadeiras, apenas um aluno, cabisbaixo, ficou, eu. “Você não tem que voltar para a sala?” — perguntou, Marlene, preocupada. “Não” — respondi. “Eu percebi que esse livro com você não é aqui da biblioteca” — disse a bibliotecária. Olhei para aquela senhora que parecia meio viva, meio morta e respondi, “Era da minha mãe” — percebi que ela entendeu que eu queria conversar, mas parecia insegura na minha frente. E quando ela disse, “eu gosto muito daquele conto…”, — a interrompi, “a gente combinamos de não morrer”.
***
A rua estava escura, Ícaro corria assustado, a respiração ofegante, o coração disparado, não sabia para onde ir, apenas que precisava se afastar de casa. Os chinelos atrapalhavam a corrida, quase caía, as pessoas na rua olhavam assustadas, tinha medo de ser parado por algum policial. Não ter para onde ir lhe dava uma sensação de total fragilidade, uma fragilidade que nunca pode transbordar para algum tipo de explosão, uma fragilidade enjaulada. Na memória do jovem, uma cena recente, o irmão mais velho, bêbado, jogando o seu corpo contra a parede, batendo sua cabeça no chapisco, a pele não rompia, não sangrava, e ele apenas sentia a dor. “Para, Samuel! Eu não tenho culpa!” — gritava. Samuel, sete anos mais velho, desde que a mãe fugiu dos maus-tratos do pai, ficou cuidando do menor. O pai ficava dias sem aparecer e quando aparecia estava bêbado, agredia os dois meninos. Foi Samuel que conseguiu a bolsa de estudos para Ícaro na simples escola particular do bairro. A criação de Ícaro se dava nas oscilações da personalidade do irmão mais velho, que começou a sentir o peso de se responsabilizar pelos dois, tonando-se violento, perdido em uma vida que não planejou para si.
Depois de muito correr, Ícaro parou em uma marquise de ponto de ônibus e, na confusão de pensamentos, lembrou do livro deixado sobre o sofá da sala, agora teria como passar a noite lendo em alguma praça, sabia que Samuel não sairia em busca dele, que talvez até gostasse caso não voltasse mais. Apesar das surras e das agressões verbais, gostava do irmão, talvez até porque só tinha a ele, queria mesmo é que tudo voltasse ao tempo em que brincavam juntos e a mãe estava com eles.
***
Eu estava deitado no banco do ponto de ônibus com fome, o sono foi batendo e dormi. Quando acordei ela estava me sacudindo, não sei como a bibliotecária foi parar ali. Ela não fez muitas perguntas, as pessoas aqui no bairro já sabem da minha história, acho que não me fazem perguntas para não me perturbar. Achei melhor não tentar saber como ela me encontrou ali, fingi que não sabia onde ela morava e deixei que pensasse que estava me mostrando um caminho novo.
A casa era de um modelo bem antigo e, como poucas no bairro, era emboçada por fora, uma parte pintada de verde, com uns arabescos perto do telhado, “são bonitos”. “O quê?” — ela me perguntou desinteressada. “Os arabescos, são bonitos”. — Achei que ela se surpreenderia com a palavra saída de mim, mas não, ela continuou indiferente. Abriu a porta de madeira, entendi que era para eu entrar. Ligou a televisão. “Se quiser, pode desligar.” “O que, menino?”, “A televisão, se quiser pode desligar”. — nem assim ela me olhou com interesse. Como eu queria que ela me enxergasse e me perguntasse sobre os livros que eu li. A bibliotecária foi até a cozinha e trouxe um lanche farto, então começou a falar que quando era adolescente, lia todos os livros que passavam pela sua frente, disse não entender como pessoas poderiam não gostar de ler. Contou sobre a história muito louca do Teleco, um coelho que se metamorfoseava em outros seres. Eu a olhava admirado e foi então que aconteceu.
Ela passou a perceber e isso a animava, a luz nos meus olhos enquanto ela me contava sobre os livros que lera, ela percebia. A bibliotecária passou a me enxergar e isso aquecia o nosso coração. Depois, meio distraída, ela contou que adorava ler a história do pequeno príncipe para o filho quando ele era criança, e ele pedia insistentemente para ela ler novamente, o garoto cresceu adorando ler. Neste momento a bibliotecária fez um silêncio, notei que a luz dos meus olhos não surtiu mais efeito nos seus, ela voltou a parecer meio morta, meio viva.
Disse que eu poderia dormir na sala, que amanhã veríamos o que poderia ser feito por mim. Enquanto ela ia para o quarto, percebi que no caminho olhou para uma foto em um porta-retrato sobre um dos móveis da sala, era a foto de um jovem, um jovem bonito, que em muito se parecia comigo.