17:02
Chamem-me Mário. Tenho quarenta e três anos, sou casado, pai de dois filhos, um rapaz e uma moça. Moro em casa própria, financiada. Tenho um carro usado e um plano de saúde com cobertura total para exames e internações.
Eu sou um cara bom, bacana. Eu sou uma pessoa confiável, competente. Eu auxilio os outros. Auxilio os vizinhos, os colegas de trabalho, os parentes. Nunca fui engraçado, mas sou simpático. Enfim, eu sou o que se pode chamar de “um cara legal”. Mas eu cansei, isto tudo é coisa do passado. Daqui pra frente eu vou ser uma pessoa detestável, arrogante e acima de tudo, mau.
17:12
Depois das cinco da tarde, não se produz nada que preste neste antro. Depois das cinco, o que se deseja é que as horas passem e que os relógios, por decreto da presidência, marquem seis horas.
17:31
A maior parte dos funcionários mantém os olhos nas telas planas de quinze polegadas digitando um memorando interno, um despacho de última hora ou um pedido extra de material. Estes filhos de uma puta, até parece que eu não os conheço… Todos ladrões, cachorros, canalhas. Os que têm seus monitores voltados para a parede, pela expressão de seriedade e retidão, jogam paciência ou se deliciam com a boa pornografia oferecida pela evolução tecnológica, mas sempre com uma outra tela qualquer preparada para o caso da chegada do chefe, outro canalha.
17:50
Onde foram parar todas aquelas máquinas de escrever? Elas batiam e rebatiam os formulários em branco durante todo o dia com uma raiva sobrenatural. Imensas pilhas de papel eram consumidas por hora. A atenção tinha que ser extrema, o menor dos erros exigia a substituição dos formulários e o recomeço do zero.
Aqueles eram dias difíceis para fingir que se trabalhava durante a hora final. Todos se deixavam ralentar até o silêncio completo das cinco para as seis, onde os desejos se resumiam a uma só vontade: irem bora, alcançar a rua e, para alguns, a liberdade. Talvez isto não ocorra em outros escalões da nossa hierarquia administrativa, mas é por certo o que melhor define os anseios das pessoas que habitam o andar da contabilidade. Um poeta, certa vez escreveu na porta do banheiro masculino: “Além das seis, um lugar ao sol.Até as seis, o barco ainda está afundando”.
18:14
Já havia muito tempo tudo estava engatilhado. O caso é que, de um modo geral, sempre me faltou colhão. Talvez por dúvidas morais ou por medo protelei portanto tempo o que desejava, mas hoje é o dia, o dia da virada. Esta história me surgiu naturalmente quando percebi que as pessoas se dividem em os que agem e os que resumem suas vidas a idealizações. Eu que resumia minha vida a idealizações resolvi mudar para a ação. A idéia foi parar de apanhar e começar a bater. Hoje é o dia.
18:33
Mostrei-me irritado por ter de fazer um serão que planejei há tempos, ninguém desconfiou de nada. Afinal, eu sou “Caxias”, “CDF” e “FDP”. Além de bom ator, sou grande estrategista. Deixei a papelada atrasar e meu chefe, aquele bosta, prontamente me cobrou resultados. Então,cá estou eu esperando minha vítima.
18:52
Um estagiário esqueceu o cartão de transporte. Não dei papo e ele se mandou. A nota de vinte está valendo, o porteiro me avisou a tempo e eu não fui surpreendido.
19:07
Os últimos rastros do dia desaparecem do céu. O trânsito se avoluma e os bares já estão cheios. O calor dá uma trégua e o mar convida para um passeio na orla. Se não fossem os seqüestros… Dá gosto olhar a cidade do décimo terceiro andar, principalmente quando a noite chega.
Fecho as persianas, preparo o ambiente, apago a luz e espero. A coisa toda já está acontecendo, eu me sinto bastante calmo, apesar de saber que não há como voltar atrás. Quando se decide caminhar por estas trilhas é preciso estar disposto a tudo, e eu não estou de brincadeira. A coisa não vai parar aqui, vai continuar, crescer, se tornar um vício. A coisa não vai parar. A coisa não vai parar.
19:53
A hora marcada. O prédio está vazio, todas as luzes estão apagadas. O telefone toca, é da portaria:
— A encomenda está subindo.
— Ok, continue de olho!
— Deixe comigo, patrão! — responde o comparsa. Sempre há um comparsa.
19:54
Escuto passos no corredor. A porta se abre. Ela olha em volta e parece entediada. É feia, como pedi. Aproxima-se.
— É você? — pergunta.
— Por quê, esperava o príncipe encantado?
— Não, é que… Nada! Aqui mesmo?
— É! Em cima daquela mesa?
— Qual?
— Aquela grande em que está escrito “Superintendente”.
— Tud obem. Trouxe camisinha?
Dei de ombros. Ela ficou irrequieta por um instante. Andou de um lado para outro passando a mão na cabeça. Disse:
— Ele te contou? Quer dizer… Ele te falou do meu caso?
— O que é que tem?
— Eu tenho AIDS, cara!
— Foda-se… Eu paguei, não paguei? Então, fecha a boca e deita aí, sua vagabunda!