Folhas amarelas contra o céu violeta
o poeta dissolve
os sóis
nas folhas
a palavra filtra o espectro
recolhe
todos os ruídos da rua
como se o mundo coubesse
na partitura
do texto
há coisas entreabertas
na memória
à espera
de que uma voz as resgate
todos os tipos de cinza
acumulados
o musgo
o mofo
dos fatos dobrados dentro de malas
para viagens que não houve
um rumor
pouco a pouco rasga o álbum
de fotografias:
lição do perecível
o tempo não cicatriza
apenas se cala
os homens carregam os dias
sem pânico
a qualquer hora
um acidente suspende
o curso
linear
ou algo que o equivalha
o sol arde
submerso
nas palavras
queima a expectativa
deflagra
a última pólvora
a vida
dispara
(e se perde)
…
Van Gogh está agora a olhar na direção oposta
Van Gogh agora
olha
para a direção oposta
o espiral
da flama
se espalha
o fogo passa de pincel
em pincel
que muitos são os aprendizes
os que traficam
clandestinos
os dias que nem supomos
nas oficinas
artesãos desfazem os matizes das sombras
desfiam as teias, as tramas
da matéria escuridão
o facho
escondido entre livros
se espalha em folhas que pensam
até que um leitor
olhe com outros olhos
o mundo
e arredores
nos dedos sujos
de tinta
vésperas de
alaridos alarmes
o amarelo
que ainda não existe
o limiar da cor com
a outra que não corresponde
no espelho usado
o rosto enruga páginas
e mais páginas
o tempo, a tinta escorre
borra
o assoalho
o rasto se entranha
na memória
da dor
Van Gogh agora olha
para a direção oposta
com que desespero
pinta
não naturezas-mortas
do esquecimento
mas a vertigem
dos dias em delírio
as mãos tremem a paisagem
para que ele melhor capte
o sopro do fogo
a agonia de Van Gogh
não se presta
a um quadro bíblico
antes requer o esgar
das feições
e o áspero dos olhos
a voz
quase não se mostra
há sementes de incêndio
sobre as quais não se faz comentário
como consegue guardar segredo
a despeito da violência
do amarelo?
o que seu traço
silencia
nas pistas
dispostas sem lógica
na superfície da tela?
Van Gogh olha
na direção oposta
do quarto
dirige-se a exposições, galerias
museus
como um visitante, um turista
a cabeça arde:
o mundo de antes
onde se escondeu?
o que move tem peso
mas como pôr
movimento e peso nas tintas?
: um feixe de trigo
é mais que um feixe
quando se torna desenho
quem sabe seja a forma
de dizer de si mesmo?
quem sabe do outro lado
da porta
haja um Van Gogh à espera
ou em fuga?
quem sabe Gauguin, uma faca,
uma rua
não sejam
a natureza-morta
que o artista intuía?
este duplo de Van Gogh vagueia
no escuro
ateando febre nos pincéis
até que o mundo desapareça
na garganta de girassóis
…
A cor púrpura
a púrpura tinge
o pano
a veste
a página
a palavra púrpura
é única no léxico
nenhuma outra
traz seu peso, seu gosto
no instante de fúria
o pincel crava a palavra púrpura
na tela
muito mais tarde
o exame de perícia
do corpo delito
dirá as marcas
a cor escorre
no chão do poeta
que optou pela morte
só para ser em si
a música do vocábulo púrpura
tinta insolúvel
…
Exercício de analogias
o que se equipara
a uma pergunta
no desenho da tela?
as tintas não têm
sinais de sintaxe
e se desesperam
não seguem lineares
o discurso
o fluxo das horas
às vezes a tinta
traz uma dúvida
que em si evapora
o que se equipara
quando se usa
a linguagem outra?
um objeto nem sempre
ousa
ser o que não é
um traço por mais hábil
não é a tradução
do não dito
permanece no quadro
a expectativa
como se de um enigma
o que se equipara
a uma pergunta
eternamente sem resposta?
o homem que diante
de seu retrato
só se vê de costas