Manual prático de lapidação

Conto de João Peçanha
Ilustração: Osvalter
01/03/2007

O cigarro queimava no cinzeiro sobre a pia, bordas amareladas, quando ele passa a mão no cabelo naquele gesto típico de desespero e vê que está vermelha de sangue, os dedos dele, unhas, para que servem minhas unhas, roía-as compulsivamente, o que eu faço, o que eu faço, ele perguntava, pela esquadria de alumínio a noite quieta lá fora, nunca tinha se sentido em sinuca tão grande, o corpo de Bruno esfriava no chão da cozinha, uma poça escura de sangue se alastrava, parecia o mapa de Minas Gerais, por que a porra do revólver disparou, se perguntava, e, unhas, unhas com gosto de sangue, roía, sangue no chão, meu sabugo sangra, Minas Gerais, abriu o armário embaixo da pia para pegar a garrafa de conhaque que usava para temperar carnes, não estava ali, lembrou-se que a tinha deixado na sala, ao lado do porta-incenso, encheu um copo, o conhaque ardeu passando pela garganta, esquentou tudo, fez cara ardida, outro copo, pensou voltando para a cozinha, desviou-se da poça, que merda, Bruno, por que você inventou de morrer, pensou, olhando de esguelha para o corpo na cozinha, balançou o braço esquerdo e expulsou o relógio para fora da manga do casaco: quatro da manhã, era para Bruno estar pegando a porra de um avião de volta para São Paulo ou dormindo ou fodendo qualquer garota de boate, o que fazer, o que fazer, calma Giba, calma, você precisa de outro trago, unhas, roeu a do dedo médio, brotou um sangue vermelho do sabugo, o terceiro trago passou redondo pela goela, olhou para a poça de sangue, agora estava mais se parecendo com o Piauí, compriiiida, riu da bobagem, o Piauí ainda existe, se perguntou, caralho, o sangue está escorrendo para a sala, o carpete vai manchar, um pano, rápido, Giba, onde você tem um pano de chão, perguntou-se sussurrando, na área de serviço, esbaforido, fez cara de nojo, o pano de chão estava cheio de vômito no fundo do balde desde três horas atrás, quando a Camila chegou, ele fechou os olhos suspirando, eles tinham saído de uma festa e ela tinha bebido além da conta, ele se aproveitou da situação e a trouxe para o apartamento, depois de anos vou comer a Camilinha, chegaram, ele quase carregando a moça de tão trôpega, ela pediu um drinque, ele achou engraçado porque só ator americano em dublagem classe B pede um drinque, mas mesmo assim foi no armário embaixo da pia e pegou aquela garrafa de conhaque que usava para temperar carnes, encheu um copo grande de uísque, altos, o copo e eles dois, a Camilinha estava com um vestido de alcinha, ela bebeu a dose de uma golada só, arregalou os olhos, mundo suspenso, e vomitou no carpete, deixa que eu limpo, ele disse acalmando a moça e pensando que aquela mancha não sairia nunca mais, troféu, ai que vergonha, não liga Camilinha eu já volto, foi na área de serviço e pegou um pano de chão, esfregou rápido, fotografando as panturrilhas de Camila para futuras referências, correu para a área, jogou o pano vomitado no balde e voltou apressado, ele sempre teve preferência por vestidos de alcinha, vencida a alcinha, tudo poderia acontecer, me dá outra dose, você já passou mal, é pra tirar o bafo, ele encheu meio copo e ela tomou de uma talagada só, aproveitou a boca ainda ardida de conhaque dela e a beijou, coloca Diana Krall, ela pediu, e ele se entusiasmou porque, além de gostosa, a Camilinha tinha bom gosto, acendeu um incenso de canela, alguém já tinha dito a ele que incensos de canela eram afrodisíacos, sem perceber a aproximação dela, que chegou por trás dele enquanto ele acendia o incenso afrodisíaco e o abraçou, as duas mãos dela trançadas no peito dele, beliscou o mamilo dele, ele não gostava que beliscassem o mamilo, mas Camilinha podia tudo, pegou a mão esquerda dela e desceu, passou as duas mãos dele por trás dela e espalmou aquela bunda redonda, suspiros, virou-se, ficaram de frente, peitos duros encostando-se no peito dele, olhos no decote, ela desafivelando o cinto dele, alcinhas, ah as alcinhas, puxou uma para cada lado e o vestido deslizou para o chão feito anúncio de depilador feminino, que tesão a Camilinha, ela sorriu suspeitando seus pensamentos e estreitou os braços para espremer e arredondar mais os seios para ele, abraçou-a pela cintura, ela disse, espera, afastou-se para dar espaço para abrir a braguilha dele, a calça caiu no chão feito anúncio de alguma coisa de que ele não se lembrava qual, devia ser uma péssima propaganda, língua na orelha dele era outro item que o desagradava, mas Camila, ele repetiu arfante, pode tudo, tudo não que eu não deixo, ela respondeu, ele se sentou no móvel da sala sem entender o que a moça havia dito, encostou no incenso aceso, ai, o que foi, nada, diz, nada, você sabe como se faz para lapidar um diamante bruto, ela perguntou, para quê você quer lapidar um diamante, ele respondeu perguntando, ela disse, só queria saber como se faz, sempre quis aprender, e se abaixou para tirar a cueca dele e não se levantou mais, ele fechou os olhos e no meio do primeiro gemido ouve alguém dizer, que porra é essa Giba, abre os olhos, a luz da luminária da sala como flash, aperta os olhos e olha na direção da voz, Bruno, diz surpreso, ai meu deus, sussurrou Camila, se ajeitando, que porra é essa Giba, berrou Bruno, cadê a minha bolsa, perguntou uma Camila assustada, ele percorre o ambiente e acha a bolsinha também de alcinha jogada perto da porta da cozinha, vai até lá e a joga para Camila, como assim, ele respondeu para Giba, ainda meio tonto, enquanto Camila se vestia e zunia descalça mesmo pelo corredor, você sabia que a gente estava junto, gritou Bruno embolando as palavras, dando-lhe um tranco no peito e jogando-o quase em cima da pia da cozinha, confusão e conhaque, a gente quem, eu e a Camila porra, a cozinha potencializava os gritos de Bruno, eu não sabia eu juro, ele disse e percebeu que sua voz também ecoava nos ladrilhos, eu preciso de um cigarro, pensou ao mesmo tempo, sempre fumava quando não sabia o que fazer, e Bruno gritou mais ainda, não sabia é o caralho, e ele viu o revólver na mão de Bruno, você não vai, não vou é o caralho traidor filho-da-puta, pára de apontar esse revólver, Bruno, alguém pode se machucar, filho-da-puta, cara a gente se conhece desde a quarta série, já entramos numas frias juntos, comemos, namoramos e trocamos um monte de meninas, mas a Camila não podia, por que cara, porque eu tô parado na da Camila, disse Bruno, você tá gostando da Camila, ele perguntou sem acreditar, tô, cabeça baixa e um tanto melancólico, você não podia ter feito isso com o seu parceiro, disse Bruno, apontando o polegar para o peito, ao mesmo tempo em que puxava o cão da arma para trás, pára com isso, Bruno!, ele disse, e pegou o mixer que usava para bater panquecas e acertou a testa de Bruno, a partir deste momento as coisas aconteceram como flashes, ele se sentiu num filme policial, os dois engalfinhados, a arma entre os dois, na cabeça dele de agora, se lembrando, entrava até uma trilha sonora com uma guitarra nervosa, o cheiro de bebida no hálito de Bruno, o disparo, Bruno cai, a arma cai junto e escorrega para debaixo do freezer, ele volta a abrir os olhos e vê que o pano de chão no fundo do balde está com cheiro do vômito de Camila, abre a torneira do tanque, lava, cheiro ruim, joga sabão em pó, esfrega, preciso de outro cigarro, onde estão os meus cigarros, fecha a torneira e cheira o pano, está passável, vai até a cozinha e se encosta no batente da porta roendo o sabugo do indicador, pela esquadria a madrugada vai virando dia, ele desconsolado, lamentando que nunca mais teria outra oportunidade de comer a Camilinha e vendo a poça de sangue que agora mais se parecia com o Amazonas e pensa, será que isso nunca vai ter um ponto final.

João Peçanha

É formado em Letras. Seu livro de contos Cantata para 16 vozes e orquestra obteve Menção Honrosa no Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, da revista Cult.

Rascunho