Era noite escura quando uma claridade leitosa iluminou as sombras do palco: Pluft. Era você, meu fantasminha! Nessa noite, de névoas passadas, eu tricotava uma manta, sentada na cadeira de balanço, quando ouvi sua voz dizendo que tinha medo de gente. Mas que fantasma era esse que me aparecia?… Claro que eu sabia que estava grávida, fantasmas engravidam à toa, basta nos cruzarmos no espaço. Tudo aconteceu porque naquela época eu vivia me perdendo pelos ares, esvoaçante, vendo fantasma por todo lado. Mas eu falava do seu nascimento. Foi desse jeito, numa balançada confusa, envolta em ternura e lã, que me tornei sua mãe. Você era um fantasma tão bonitinho, Pluft… Um pequeno movimento de alegria. Passada a confusão inicial, voltei ao tricô, enquanto você esvoaçava ao redor, conhecendo o velho sótão recheado de recordações, entre elas um cobiçado tesouro. Enquanto você ia e vinha de um canto a outro, nos primeiros espantos, tio Gerúndio, um fantasma dormindo, levantou a tampa da arca, constatando a sua chegada. Em seguida, voltou a desaparecer, porque velhos fantasmas não gostam de ser importunados. E sabe que você se surpreendeu com a figura dele, se espreguiçando, todo esfiapado?… Com o tempo esfiapamos, meu filho, é bom que você se acostume; Gerúndio já deve ter uns bons séculos. Então precisei largar o tricô por instantes para contar sobre a vida cheia de sustos do seu tio.
E assim transcorria a nossa vida alada, na santa paz dos fantasmas, dentro do velho sótão, quando, numa tarde em que não esperávamos ninguém, porque não é comum recebermos visitas, surgiu um pirata caolho com uma perna de pau, trazendo com ele uma menina amordaçada: Maribel — que estava sendo raptada! E tudo por causa do maldito tesouro! Mas você não estava preocupado com nada disso, porque, instantaneamente, o mel dos olhos da menina lambuzaram os seus. Daquele dia em diante você perdeu o medo de gente, e só queria estar ao lado dela. Encantadora, por sinal. O pirata Perna-de-Pau, depois de procurar o tesouro por todos os cantos do sótão e de vociferar ameaças, foi embora deixando a menina para trás. Dias depois, numa tarde que você e Maribel conversavam, sentados no baú de tio Gerúndio, ouviu-se uma cantoria. Mais visitas? Quem seria? Você foi levitar junto à janela e, olhando lá para baixo, anunciou que três marinheiros caminhavam em direção ao nosso sótão. E assim conhecemos os amigos de Maribel: João, Julião e Sebastião, que chegaram bebendo e cantando, dizendo terem vindo para salvá-la, mas, quando lhes contei sobre o Perna-de-Pau, saíram acelerados atrás dele. A partir desse dia, embora estivesse feliz com a presença de Maribel, você começou a sofrer, meu filho, porque queria ir para o mundo na companhia dela. Era só com o que você sonhava: se casar com ela. Eu dizia que fantasmas não se casam, porque se encontram numa rapidez de raio, e a isso chamamos amor, a esse contato etéreo e fugaz, mas você não se conformava. Eu tentava argumentar dizendo que morávamos em vãos, pendurados em lustres, dentro de armários e arcas, em sótãos, sabe por quê, Pluft? Porque somos fluidos, maleáveis, dispensamos a fixidez dos lugares… Somos da natureza do vapor, portanto nossa dimensão é infinita… Por que esses olhos tão grandes, meu filho? Desculpe, acho que falei de um jeito que você pode não entender. Você ainda é jovem para certas considerações. Enfim, o fato é que não adiantava conversar, você não queria saber de explicações, escapava pelas frestas, descontrolado. Quando eu, a fantasma sua mãe, podia imaginar que ia passar pelas suas névoas querer se casar com gente, Pluft? Você que não se atrapalha, que atravessa as coisas com facilidade, não iria transpor esse obstáculo? Ora! Sabe, meu filho, o que significa ir para o mundo? Lidar com gente? Perder seu lugar no espaço? Saiba, filho meu, que, antes de mais nada, não somos vistos, ninguém se dá conta da nossa existência, e se isso por ventura vier a acontecer, as pessoas fogem aterrorizadas, querendo nos ver a distância. Já se deu conta disso? Que somos invisíveis?, quer dizer, para os bobos. E eles são muitos… Depois, pode parecer menos importante, mas não há ser humano que saiba fazer pastel de vento. Como você irá se alimentar? Pensou nisso? Pois então, ponha suas névoas pra flutuar, deixe-as vagando por um bom tempo e não se esqueça de conversar com tio Gerúndio. Como fantasma experiente, ele deve ter boas coisas pra te assustar. Aqui, Pluft, é o nosso refúgio, porque em qualquer outro lugar somos inexistentes; na verdade, moramos em nós mesmos, somos o nosso próprio esconderijo. Pertencemos ao museu das velharias da imaginação humana. Mas você ainda é muito jovem para saber que ser fantasma é melhor do que ser gente. Ah, não sei se já lhe contei que os fantasmas crescem, e como crescem, e são indestrutíveis! Além do mais, somos os donos do vazio! Temos todo ele a nosso dispor. Já pensou nisso? Logo, a primeira lição que nós, fantasmas, precisamos aprender é existirmos por conta própria, não importa se somos vistos ou não; portanto, é inútil correr atrás de visibilidade! Aceitar essa condição é sinal de que nos tornamos fantasmas adultos. É o que eu desejo a você, Pluft, do fundo do meu doloroso espectro. E isso é difícil, mesmo para uma mãe fantasma. Você pode se chatear com esta conversa toda, porque ainda é um fantaslescente, mas em breve, tenho certeza, se tornará um grande fantasma. O Fantasma da Ópera, quem sabe?… Bem, dentro em pouco tempo os marinheiros amigos de Maribel vêm buscá-la; enquanto isso, vá levitar, meu filho, flutue por aí afora. Deixe que suas névoas aflorem e lembre-se do que conversamos: você não a fará feliz, será sempre uma sombra ao lado dela. É o que somos, filho, uma visão. Uma assombrosa visão. E foi isso o que a entusiasmou. Encantou-se com sua transparência luminosa. Meninas correm atrás de ilusões. Meninos também. Depois se cansam e partem em busca de uma nova ilusão. Será que fui oculta o suficiente, Pluft? Onde você está? Já foi, não é?… E eu aqui esse tempo todo, falando sozinha com o meu fantasma…