Malaque…

Conto de Rogério Manjate
Ilustraçaão: Ramon Muniz
01/01/2006

Já passeaste a Julie?

Já passeaste a Julie foi o boa-tarde como estás querido Malaque que o querido Malaque recebeu nessa tarde já torta sobre os telhados alaranjados pelo horizonte.

Já passeaste a Julie? Era a sua esposa, Malinda, ao telefone. — Pat já lanchou?

Pat, o filho deles, já tinha lanchado e estava a brincar com os seus brinquedos na alcatifa plástica castanha imitando parquet de madeira — vrumm, vrum, vruumm, pim pim, vrummm! — os carros partiam da sua boca e sulcavam estradas e estradas sem fim, numa corrida de campeões.

— Olha que vou demorar, não sei quanto tempo, quero-te encontrar em casa, Malaque.

E seguiu-se uma rajada de perguntas e de tarefas para Malaque fazer, e ele só disse duas palavras, repetidas quinze vezes, que a décima sexta foi cruelmente decapitada por um phum! tum tum tum ecoando no seu ouvido. Foram treze sins, noves fora quatro que eram autênticos não — mentiu — da mesma forma como disse sim que já tinha passeado a Julie. Malaque manteve o auscultador no ouvido por alguns segundos e os intermitentes tum tum tum embalaram-lhe os gestos que se preparavam para serem bruscos, e o n que ficou sem o ão por sua vez aldrabou os nervos. Pousou o auscultador, lentamente, olhou para os lados, quatro, e a casa carecia de paisagem para os seus olhos; era só a brisa que insuflava a cortina e depois a voluteava para deixar a cidade invadir a sala pela janela do 11.o D.

— Vrumm vrum vruumm pim pim vrummm!

Entreolharam-se. Malaque fixou o olhar; quando o Pat deu com eles os seus também se fixaram, o carro parou. Malaque pestanejou, o carro seguiu — era o semáforo. O desdente de Malaque sorriu para os dois incisivos do Pat que espreitavam da gengiva e enchiam o motor do carro de ésses — vsrummm! Pat fazia passar o carro entre as pernas de Malaque, ponte sem nome, onde nenhum vagabundo dorme. Vsrummm!

Na varanda Julie gania baixinho como que a dizer as horas, mas sem abafar o tum tum tum em Malaque.

Malaque deixou-se cair no sofá e ouviu-se o som do ar que era expulso da esponja. Derramou os olhos na janela sem perceber que a cidade intermitente que entrava o chamava sem dizer quero-te encontrar em casa Malaque, e ele estava em casa sentado no sofá com a esponja sem ar. Pat, habituado às suas ausências, não lhe ligava nenhuma, brincava somente. Malaque abriu o jornal que rapidamente voltou a fechar e atirou para o chão. Os nervos em baixo da sua pele frutificavam. Levantou-se bruscamente. E o telefone no seu ouvido tum tum tum, vai cozinhar Malaque.

Na cozinha, lavou os talheres e tachos sujos na pia, girou o botão do fogão e o gás inflamou-se na ponta dos seus dedos segurando o fósforo. Enquanto esperava a água ferver na panela, escolheu e lavou o arroz, descascou o alho, cortou o tomate tum tum tum em rodelas e enquanto picava a cebola tum tum tum lacrimejava.

— Vais fazer arroz de tomate.

Pat rebolava no chão, agarrando a barriga dorida de tanto rir. Pois sempre que ele chorasse Malaque dizia-lhe que homem que é homem não chora. As suas tentativas de justificação perdiam-se, engolidas pela gargalhada do filho, que também lacrimejava de tanto rir. Malaque, então os dois não somos homens. E Pat, o pai de Dodó diz cozinhar é coisa para mulheres, então não és homem, e riu-se mais ainda. Malaque aceitou a derrota, carregou-o ao colo, e ambos se riram abraçados. Malaque limpou-lhe as lágrimas, voltaram para a sala à espera que o arroz cozesse e sentaram-se no sofá que voltou a perder o ar.

— Papá, nós choramos porque temos um rio atrás dos olhos?

Malaque despertou da viagem à vida e esbugalhou os olhos para entrar em si outra vez. — O quê? Sim, sim, temos… — ganhava tempo para improvisar a resposta. — Temos um pequeno rio mas não muito grande, por isso, às vezes… choramos quando ficamos tristes. Mas eu não estava triste era da cebola.

— E então temos peixinhos lá dentro dos olhos.

— Peixinhos? — Pat meneava a cabeça, afirmativo. — Não, não… não tem peixinhos o rio dos olhos

— Sem peixinhos então isso não é rio. É piscina.

Malaque explodiu de riso. Pat ficou perplexo. — Então, papá, é por isso que temos tristezas, porque o rio não tem peixinhos. Os peixinhos são alegres, nunca viste eles no aquário.

Malaque derrubou-o no sofá e enterrou a sua cabeça entre as suas coxas, passando-lhe a mão pela carapinha. Depois ficaram calados. Entreolharam-se e os peixinhos de cada um olá. Malaque voltou ao jornal que afinal tinha algo de interessante e foi engolido pelas letras, e Pat voltou aos brinquedos.

Malaque levantou-se e foi à janela, correu a cortina e a cidade bem-vindo amigo! Da janela do 11.o andar, olhava para a vida de cima: carros mais carros deslizando, gente apressada quase buzinando, árvores paradas, prédios sempre iguais, varandas com roupas coloridas brincando com o vento, bolas saltitando, crianças no chão, sonhando voos dentro dos papagaios que riscam os céus, o sol entrecortado pelos guindastes do porto e que se precipitava na baía, cumprindo a sua rotina. E não ouvia Pat, atrás de si, a relatar a corrida dos carros que rodavam no tapete. O miúdo suspendeu a corrida justamente quando o carro vermelho estava quase a cortar a meta, franziu a testa e remexeu o nariz, tentando captar o cheiro.

— O quê que está a queimar, papá?

Malaque correu para a cozinha, afastou o tacho e rodou o botão para cima e a chama sumiu sem tempo para acenar o tatá. Pat de gatas e à alta velocidade sirenava, huim huim huim, guiando o seu carro bombeiro. Malaque pegou na colher, provou um bocado. Estava intragável, além de queimado estava demais salgado. E Pat, a seus pés, perguntou: — Onde é que está a queimar? Toda gente afastar, afastar, cuidado, as crianças! Cuidem das crianças, senhores!…

Malaque pôs-lhe a vista em cima e logo desviou os olhos, furioso, mas sem conseguir dissimular o sorriso que assomava. Tampou a panela movido por um nervo expressivo.

Julie na varanda latia e arranhava a porta, mas como não foi ela a atender o telefone não ouviu o Olha que vou demorar, não sei quanto tempo.

Malaque meteu a mão no bolso e só apanhou o isqueiro. Em seguida revistou os restantes bolsos da camisa e dos calções. Não apanhou o que procurava, olhou para o cinzeiro, três beatas de cigarro chupadas até as últimas consequências. Atirou o isqueiro para o chão.

Sem o cigarro, sem o arroz de tomate, sem saber a que horas Malinda chegava, e não ousava perguntar-lhe por onde andava, nem por que demoraria. E Já passeaste a Julie?

E Julie a ladrar a ladrar sem parar dando safanões tum tum tum à porta da varanda.

E agora, Malaque?

Foi ao telefone e uma voz simpática dizia que ele não tinha autorização para fazer chamadas para aqueles números. Bateu o auscultador com força, para o desespero dos números. Pat de relance seguiu o barulho e voltou ao seu mundo sem ligar muita importância, estava somente à espera de ver o fim. Já se habituara às suas crises. Malaque evitava olhar para o filho naquela situação pois se sabia ignorado, mas policiado.

Malaque andava às voltas, nervoso, cada vez mais célere, se bem que Pat tentava detê-lo mas o controle remoto avariado. Meteu as mãos tremidas nos bolsos outra vez e deitou-os para fora e nada de nada caiu. Foi três vezes para a cozinha, para a janela, para o quarto não valia a pena; vasculhou as gavetas, na sala, e nada. Olhou para Pat, seus olhares cruzaram-se e os dele fugiram, cabisbaixaram, mas o miúdo continuava com os olhos cravados sobre si. Sabia que ele iria voltar a olhá-lo, e nisto largou os brinquedos, ficou de pé e emboscou a mão no bolso dos calções. Malaque sentia-se olhado até para dentro da vergonha, virou-se como um robot e dirigiu-se ao quarto; como última hipótese revirou os bolsos de algumas roupas como se fosse a primeira vez que o fazia, e ainda teve a coragem de olhar para o que fora seu fato, calças e casaco gordos, olhando para si com pena, porque lhe sobravam no corpo. Depois passou para as poucas coisas de Malinda, abrindo e fechando-as. Não havia uma quinhenta. Todos os objectos valiosos e vendáveis estavam trancados. Contudo, tentou forçar todas as gavetas e os guarda-fatos. E o merda! amaldiçoava aquela casa que não tem moedas soltas. Não ousava desviar o olhar porque sabia que os olhos do filho estavam em todo lado, Puta merda! Mas ao sair do quarto não tinha como evitá-los, porque Pat estava parado à porta, estiloso, com as mãos enterradas nos bolsos dos calções e só lhe faltava um cigarro no canto da boca. Malaque ficou paralisado, o puta merda também, teve de engoli-lo.

Duelo:

Pat, lentamente, sacou a mão esquerda do bolso e, num gesto destro de cowboy, apontou-lhe com uma moeda de mil Meticais e phum!

Acertou-lhe no coração.

Encabulado, o sorriso recusava-se; decidido e com um olhar severo, desfez os quatro passos que os separavam e arrebatou-lha compulsivamente quase arrancando-lhe também os dedinhos. Até parecia que a moeda era sua e que lha roubara Pat. Mas fê-lo automaticamente como sempre o fez na rua quando interpelava os transeuntes, porque sempre lhe faltavam mil Meticais para apanhar o chapa

e com aquela cara ele realmente saía do hospital com cinco cruzes de malária, pobre coitado!

e pedia dinheiro para comprar os medicamentos para a malária que nunca curava

e precisava de mais dinheiro para voltar ao hospital

mais o chapa, mais os medicamentos, mais o chapa

mas o seu chapa nunca mais veio

e a sua doença ficou vulgar que já ninguém dava para os medicamentos

Malaque…

Meneou a cabeça e convidou o filho para saírem. Atirou a moeda para o ar como se esta ao cair fosse fabricar outras a regarem a sua mão.

Julie, ao ouvir o ranger dos gonzos da porta, ladrou mais forte e embateu na porta como que raivosa.

Desceram as escadas a correr, competindo para ver o mais rápido. Pat, enquanto o pai fechava e metia os três cadeados da grade, disparou a correr e ao chegar lá em baixo primeiro, gritou repetidas vezes Lurdes Mutola! batendo no peito gabando-se e o pai mimou meter-lhe a medalha de ouro no pescoço.

Atravessaram a rua e no prédio oposto, o guarda, um velhote magro, vendia cigarros e guloseimas. Malaque entregou a moeda e recebeu dois cigarros e acendeu um com os fósforos que lá estavam disponíveis. De costas para a pequena banca improvisada na entrada do prédio, olhava para os carros vaziamente. Dava pitadas intensas e deixava o fumo enovelar-se na sua cara. Ele tornou-se mais leve como o fumo que lançava e parecia competir com os carros, a ver quem deitava mais fumo. Acabou o cigarro e pisou a beata com a ponta do chinelo, virou-se para os vendedores à procura do Pat.

— Eh, quem te deu isso?

— Ê, ê, ninguém, eu é que quero.

— O quê?

— Comprei — ripostou Pat.

— Tu tens dinheiro para pagar? — perguntou-lhe inocentemente e esperando que ele dissesse que sim.

— Não. Afinal quem é papá? — como quem diz e o dinheiro que eu te dei?

— Mas eu não te disse para levares nada — disse à queima-roupa.

— E papá que está a fumar?

Malaque deu-se por vencido. Olhou para si. Olhou para o guarda que já sorria esperando pelo dinheiro do chocolate. Pat continuava a comer o chocolate despreocupado. Malaque puxou do segundo cigarro que certamente guardava para a noite.

Abrindo os braços, o guarda mostrava que não havia outra solução senão pagar. Dinheiro. Malaque nem tentou negociar, sabia que seria inútil. Malaque era mal visto. Tinha dívidas com todos os vendedores de cigarros. Malinda, para apagar a má imagem, pagara as dívidas todas e deixou a recomendação: pronto pagamento. O velho dos cigarros não queria saber.

— Mas eu não tenho dinheiro, argumentava Malaque. E isso não era novidade para ninguém.

— Chocolate é quinze conto — sublinhou o velho.

Malaque olhou para si, não tinha como resolver a questão. Contudo queria resolver a questão o mais depressa possível. Os chinelos que trazia eram gastos, além da camisa e calções não trazia mais nada. E sabia que eles não aceitariam artigos, como sempre fora fazendo ao longo dos últimos 3 anos, em que tinha sempre algo para vender. Malinda não mais comprou bens valiosos desde que descobrira que tudo desaparecia em casa. E o que restara mantinha sempre trancado a sete chaves, deixando o essencial.

Malaque tinha de resolver o assunto. Falou com o vendedor em como ia procurar o dinheiro em casa. Chamou o filho para irem. — Nada, gritou o vendedor, deixa o miúdo como garantia que vais voltar.

Pat Garantia ficou ali, até porque era divertido, ficava a contar os carros, numa competição entre marcas diferentes.

Chegado ao 11.o D, Julie ladrava, diabólica.

Olhou mais uma vez pela janela, mas desta, os seus olhos não conseguiram dar a volta à cidade, o seu filho estava lá em baixo, como garantia. Sentia-se vencido. E a vida que lhe fugia pelas veias rotas dos braços, reflectia-se no espelho à sua frente. Olhou outra vez para as gavetas trancadas. Julie ladrando acirrava-lhe a fúria. Foi ao quarto, depois para a cozinha. Voltou à sala… A cidade piscando-lhe os olhinhos, entrava pela janela com mais força, envolvida por uma penumbra: eram carros mais carros fazendo-lhe sinais de luzes, prédios sempre iguais, já sem roupas coloridas esvoaçando nas varandas, mas com luzes acesas. Malaque sentia os milhares de olhos sobre si, com milhares de peixinhos dentro. Arrebatavam-lhe. Chamavam-lhe.

Malinda desceu de um carro vermelho que parecia fugir do beijo que ela lançava com a mão. E Pat, mercedes vinte e doze, toyota vinte vinte vinte. Malinda apanhou um susto ao ser chocada nas pernas por um corpo quente, que lhe puxava a saia. Pat acorreu assim que a viu. A mãe quis saber o que fazia ele ali, sozinho. Tudo ficou esclarecido. Pagou o chocolate, atravessaram a rua e entraram no prédio.

Malaque, louco, procurava quinze contos com que pagar o chocolate de seu filho. Achou-os tarde, logo que saiu da varanda: estavam na janela. A mesma janela de onde a cidade e suas luzes o chamavam. Um dos poucos objectos de sua casa que abre e fecha e que não estava trancado.

Pelas escadas, Pat contava à mãe que se tinham sentado no sofá a conversar, ele a brincar com os carrinhos e o pai lendo o jornal. Já no 3.o andar, falava do incêndio na cozinha e o pronto socorro do seu carro bombeiro. No 7.o era sobre as lágrimas, o rio atrás dos olhos. No 9.o, ofegando, pararam para descansar e contou que não passearam a Julie, e das gavetas reviradas, e da tentativa de telefonar, e dos mil Meticais que tinha dado ao pai. Quando Malinda rodou a chave na porta do 11.o D, Pat contou o derradeiro episódio do Malaque, por causa do chocolate que ele comera. Abriram a porta e na sala estava tudo deitado abaixo, gavetas abertas. Estava um silêncio gelado.

Julie estava calada. Não deu pelo ranger dos gonzos e nem pelo cheiro de Malinda.

— Já passeaste a Julie?

Silêncio. E não se ouvia nenhum Malaque revirando as gavetas à procura de quinze contos para pagar o chocolate do filho. O coração de Malinda batia desordenadamente, com força. Seus nervos moviam-lhe os lábios. Acorreu ao quarto, pronta para zangar com Malaque, por quem chamava baixinho e com Pat aplaudindo e seguindo-a. O colchão fora da cama, as roupas fora dos guarda-fatos escancarados, jóias no chão, estojos de maquilhagem no chão, fotografias e revistas no chão…

Malinda, doida, estacou no meio da sala e seguiu o indicador de Pat: por baixo da porta da varanda entrava um silencioso rio, vermelho, que guardava o silêncio da Julie, que já não ladrava, nem arranhava a porta.

Malaqueeeee!

Pela janela escancarada entrava a brisa que batia na cara de Malinda, esvoaçando a cortina e apagando os rastos de Malaque, louco, que foi à cidade procurar quinze contos com que pagar o chocolate do filho.

Rogério Manjate

Nasceu em abril de 1972, em Maputo, Moçambique. É escritor, ator e contador de histórias infantis. Organizou a Colectânea breve de literatura moçambicana. Lançou o livro de contos Amor silvestre. É o editor da revista Maderazinco (www.maderazinco.tropical.co.mz). Publicou poemas e contos em jornais e revistas.

Rascunho