Madame Jouvet

Conto de José Marins
Ilustração: Osvalter
01/06/2007

Ninguém venha me dizer da existência de personagens que tomam conta do inconsciente ou consciente, ou seja lá o quê, do escritor. Tomam conta e fazem o que bem entendem. Comigo não. Eu escrevo com a mais absoluta clareza do que quero, desde a intenção pura e simples até aos meandros do sentir, pensar e agir de meus personagens. Se escrevo um conto, já sei que o essencial estará ali, nada de grandes descrições, evoluções, digressões, e muito menos a réminiscence (não direi flashback; ah, não direi). Sou um narrador seco, conciso, econômico. A frase certeira, no alvo do tema, no cerne da trama. Minha busca deve ficar clara: busco o que buscou e encontrou mestre Graciliano, la écriture! Quem vai me dizer que monsieur Ramos não tinha total domínio da cena, do cenário, da fala e dos pensares das almas que colocava em seus escritos? Quem? Ah, sim, posso muito bem ser tão objetivo quanto o foi Hemingway em “O velho e o mar”. E só ali, tão somente, e nem uma página a mais.

E digo que sou um narrador seco porque não permito nem mesmo o luxo do narrador em primeira pessoa, esse pédantisme das eras modernas. Sempre que escrevo meus contos, novelas e romances, faço um narrador onisciente, senhor absoluto da narrativa, e fim da argumentação. À mocinha jornalista da página cultural — de que jornal mesmo? —, quando me perguntou como faço para evitar os diálogos e descrever com tão poucas palavras uma personagem, respondi: “personagem não tem nada que se meter na história. Deve funcionar como funciona a descrição do cenário, o arranjo da trama, um argumento qualquer. O que me vale é o ‘efeito de conjunto’”. E, se me lembro, dissera que “personagem que se destaca mais do que a própria história tenta substituir o narrador, deve ser cortado ou a narrativa desanda. Voilà, ‘desanda’, expressão aprendida com monsieur Ramos”. Pela cara da moça, vi não ter entendido nada. Voilà, que fazer?

Em meu “O drama d’Elise”, madame Jouvet, Marie Laurie Jouvet, é bela, elegante, rica e decidida. Ah, sim e tem a voz grave como convém a uma francesa típica. E o que mais ela queria? Pois passou o romance inteiro atropelando-me as falas, as descrições dramáticas e, o pior, metendo-se na vida do marido e da filha, uns quase subordinados dela, e eu tive de aplicar-lhe um corretivo literário: deixei-a doente e tão rouca a não poder mais falar. Então, madame Jouvet passou a atormentar-me com seus pensamentos, negativos no início, terríveis depois, e finalmente vingativos. Esqueci-a, deixei-a de lado, páginas e mais páginas, enquanto fortalecia os outros personagens, especialmente Elise. Esta, sim, deveria reinar em relações de inquebrantáveis vínculos. Reinar absoluta com seus olhos verdes, a tez levemente morena, o colo arfante, pressionando os seios, erguidos pela respiração ansiosa, no limite do medo. Eu sabia que madame Jouvet tentaria prejudicar Elise por todos os meios ao seu alcance. (Oh, como odeio este lugar-comum “por todos os meios ao seu alcance” — que já li mil vezes nos romances dos melhores e dos piores. Mas, saiba, se eu apontar isso na próxima entrevista, dirão que é problema com os tradutores e que sou exigente, crítico por demais).

O que era para ser um romance, de tantos cortes, acabei deixando uma novela. Novela enxuta, como cabe nos tempos de hoje. E se Marie Laurie Jouvet não se emendar, corto tudo e faço um conto. Mostro-lhe o seu lugar, chega dessa mania de protagonismo. Vai ser uma novela mesmo… digo, se evitar a interferência de madame Jouvet, que agora deu para me dizer diálogos na boca dos outros personagens, fazer-me sonhar com Elise morrendo à míngua, perseguida pela acusação, pela culpa do homicídio que não cometeu, ela que não pode provar nem mesmo seu amor pelo marido. Ou como entender o tamanho do ciúme de Jouvet à Elise, se ambas são lindas, ricas e elegantes? É bem verdade que nunca compreendi o que leva uma mulher a desejar o homem de outra. Jouvet não podia ouvir Elise falar tão bem do marido, ou, para piorar as coisas, contar intimidades, mostrar os lábios molhados… Jouvet também não abre mão da fidelidade do marido, o recatado introspectivo, Jean Pierre. Apegado à filha anoréxica, imprestável, salvo para o mundo da moda, no qual mostra os ossos na passarela das ilusões, do glamour. Elise nutre por ele apenas admiração, ela também tem a pintura como passe-temps. E pela filha deles, se sentiu penalizada, na cena do internamento, tão somente isso. Talvez fosse pelo fato inevitável de Elise não ligar para nada, em realidade, rir quando tem que rir, chorar quando… Mas que droga! Quem aperta a campainha assim!? Que impaciência!

— Senhor, há uma senhora que deseja muito lhe falar! — disse a empregada.

— E essa senhora tem nome?

— Sim, senhor, Madame Jouvet. Marie Laurie Jouvet. Faço-a entrar?

José Marins

Escritor e poeta. Autor de Poezen (haicais), O dia do porco (romance, inédito), entre outros. Mora em Curitiba (PR).

Rascunho