Madame Ivanova dá aula ou Literatura na guerra da Ucrânia

Conto inédito de Álvaro Marins
Ilustração: Fabiano Vianna
01/10/2023

Monsieur Le Grand era o tipo do professor bastante assustado com os tempos modernos. Qualquer novo assunto o pegava de surpresa e sempre o deixava sobressaltado por algumas horas até que encontrasse alguém para conversar e o aliviar de seu espanto com a novidade.

Por vezes, suas vítimas eram seus próprios alunos que recebiam o esbaforido professor entrando atabalhoadamente em sala de aula já despejando suas últimas inquietações sobre os estudantes que, via de regra, demoravam um pouco a entender do que exatamente ele estava falando e o que tudo aquilo tinha a ver com a mecânica dos fluidos.

Apavorava o professor o turbilhão de acontecimentos que o rodeava e o fluxo vertiginoso dos eventos deixava o seu pensamento em polvorosa, quando não o colocava sob o risco de uma apoplexia. Podia ser a invasão do Afeganistão, a nova taxação sobre o trigo, as fotos inéditas do Hubble, a eclosão da guerra civil na Síria, a revolta dos gilets jaunes, ou mesmo os novos horários de suas aulas no semestre seguinte, completamente diferentes dos atuais, ou ainda o surgimento de uma epidemia em algum país da África. Tudo sempre lhe parecia muito assustador. Cada pequena ou grande mudança na ordem das coisas podia levá-lo a um estado temporário de catatonia, que só seria amenizado no momento em que encontrasse alguém que apresentasse aquele fenômeno de modo absolutamente racional, demonstrando por a + b que tudo que o afligia poderia ser explicado pela mais simples das equações matemáticas. Só aí monsieur Le Grand era capaz de se tranquilizar, uma vez que apenas o conforto das fórmulas estáveis trazia a paz de volta para o seu espírito angustiado. Só então podia retornar ao mundo das ciências exatas, pegar um livro um pouco gasto de sua pequena biblioteca no minúsculo apartamento em que morava na Rue Pascal e, tomando uma xícara fumegante de café, preparar pela milionésima vez a sua aula do dia seguinte.

O mundo poderia acabar no dia seguinte, mas isto ocorreria dentro da previsibilidade salvadora e inquestionável de uma simples fórmula matemática.

E assim passavam-se os dias e algumas semanas de tranquilidade até que o noticiário, que ouvia religiosamente na tv enquanto se preparava para ir para a universidade, o lançasse novamente no mundo das incertezas existenciais.

Seus colegas já conheciam o temperamento do professor Le Grand e estavam bastante acostumados com os seus sobressaltos. Divertiam-se discretamente com sua personalidade e sabiam perfeitamente o caminho a ser tomado para que tais alternâncias de humor fossem amenizadas e não perturbassem em demasia a bonomia de suas vidas acadêmicas. Quando o encontravam em seus momentos exaltados, ouviam-no com paciência e, em seguida, o acalmavam propondo-lhe uma solução adequada que criativamente elaboravam para lhe informar que nada poderia perturbar a quase monotonia daqueles que viviam na paz universitária dos campi, sobretudo se estes localizavam-se em Paris.

Posteriormente, nos intervalos entre as aulas, comentavam com a graça peculiar aos scholars o modo como lidavam com os recorrentes momentos de instabilidade do divertido colega de magistério, antes de voltarem seus pensamentos para as realmente grandes questões que os afligiam intelectualmente, sobre as quais refletiam com indisfarçável tédio, niilismo e um sorriso inteligente de canto de boca.

Por isso, não foi nenhuma novidade que, no dia em que explodiu a guerra na Ucrânia, o professor entrasse em polvorosa, tão logo ouviu a notícia enquanto se barbeava. A situação se agravou pelo fato de que, percorrendo os corredores do instituto de engenharia, não encontrava ninguém para esclarecê-lo acerca daquilo que, para todos os efeitos, prenunciava de forma inequívoca o fim do mundo como o conhecemos.

Mal conseguiu terminar suas aulas no turno da manhã. Por precaução, preferiu não falar nada com os alunos sobre o apocalipse que se avizinhava, mas em sua confusão mental vinham repetidamente imagens de explosões de mísseis atingindo o Arco do Triunfo, com os temíveis soldados russos invadindo a sua sala de aula, antes de conduzi-lo para os cruéis e inapeláveis interrogatórios e pelotões de fuzilamento.

Quando soou a sirene anunciando o intervalo para o almoço, por pouco não entrou em pânico ao ver a natural correria de estudantes e mestres em busca de algo para correr.

Tampouco pôde entender por que o professor Etienne se recusou a parar um minutinho sequer para uma imprescindível conversa sobre os últimos acontecimentos que o afligiam.

— Agora não, Legrand. Mais tarde nos falamos. Agora não, mais tarde — respondeu o colega apressado apesar das suas súplicas de que era um assunto de enorme gravidade.

Seria possível que Etienne não percebesse que era uma questão de vida ou morte, que dizia respeito a todos, a toda a humanidade?

Definitivamente não. Etienne deixava às pressas o instituto porque iria acompanhar sua esposa grávida, que tinha hora marcada para um exame de ultrassonografia. Não podia se atrasar.

O professor Legrand nunca soube o real motivo da pressa de seu colega, mas concluiu naquele dia, um tanto precipitadamente, diga-se de passagem, que o mais provável era que Etienne corria para o supermercado para fazer compras, estocar alimentos e esperar o pior.

Perambulava desolado pelo campus, quando teve uma visão que surgiu como um verdadeiro bálsamo para o seu iminente desespero.

Tratava-se aquela visão, nada mais, nada menos, do que a professora Tatiana Ivanova, catedrática do Instituto de Letras (merecida honraria justamente por seu notório conhecimento da língua e da literatura russa), tomando um chá verde com torradas, antes de voltar para suas aulas no turno da tarde.

Vê-la calmamente tomando seu chá pareceu-lhe um refúgio naquele momento de angústia. Sua figura esguia e elegante, levemente agasalhada sob o sol do final de inverno, serena, o atraiu em um primeiro momento. Entretanto, hesitou, por lembrar-se de que ela era russa, ou pelo menos filha de russos. Porém, sua hesitação terminou por conta de uma voz interior a dizer-lhe que, por ela ser russa, talvez pudesse esclarecê-lo sobre o que estava efetivamente acontecendo.

Por fim, abraçado à sua inseparável pasta com anotações, fichamentos e planos de aula, decidiu aproximar-se ainda sem saber exatamente como abordar a distinta senhora.

— Bom dia, Madame Ivanova.

A catedrática ergueu a cabeça e, com seu olhar ligeiramente estrábico sob os óculos, cumprimentou amável o colega.

— Como vai, Legrand?

Conheciam-se vagamente porque na pequena universidade em que trabalhavam os professores de Engenharia dividiam a mesma sala de professores com os do curso de Letras. Havia a promessa da reitoria, tantas vezes adiada, de providenciar melhores acomodações para os dois cursos, mas os recursos andavam escassos para a vida universitária desde as últimas décadas da onda neoliberal que varria o mundo ocidental.

Legrand deu um sorriso amarelo e esboçou um pedido para sentar-se. A catedrática apontou uma cadeira vaga na mesa em que estava sentada e o professor acomodou-se, ainda agarrado com sua pasta. A especialista perguntou-lhe se aceitaria uma xícara de chá, o que deixou Legrand um pouco confuso, sem saber o que responder de imediato.

Ficaram em silêncio por alguns segundos.

A russa sugeriu, então, que Legrand colocasse sua pasta sobre uma outra cadeira desocupada, próxima à mesa em que estavam. O professor deu outro sorriso amarelo e colocou sua pasta na cadeira vaga. Em seguida, cruzou as mãos sobre as coxas e, rodando os polegares, fingiu contemplar o horizonte a sua frente, olhando de soslaio para Madame Ivanova de vez em quando.

— Você parece preocupado, Legrand.

— Eu? Não… Não, nem um pouco…

Os olhos estrábicos da professora se aproximaram do rosto de Legrand, que o afastou discretamente daquele olhar penetrante.

— Na verdade, sim. Estou um pouco preocupado, sim. — cedeu. — É essa guerra…

— Ah!

A professora continuou seu exame da fisionomia de Legrand.

— Essa guerra… não sei aonde isso pode chegar… É tudo tão… repentino… tão… tão… — as palavras não lhe vinham com facilidade.

— Você acha mesmo… repentino? — perguntou firme sua colega, enfatizando a palavra “repentino”.

— Bem, não… quer dizer, sim… Na realidade, confesso que estou um pouco preocupado…

— “Um pouco preocupado” — repetiu a catedrática, erguendo sua xícara de chá, mas sem deixar de observar seu colega.

— Na verdade… bastante preocupado. Estão dizendo…

— O que estão dizendo, Legrand? — interrompeu um pouco bruscamente a professora.

Um pouco intimidado pela interrupção de seu já difícil raciocínio, Legrand arriscou:

— Estão dizendo que pode ser o início da terceira guerra mundial… que pode…

— Para a Rússia seria a quarta — interrompeu novamente Madame Ivanova, desta vez com um tom um pouco ácido.

— A quarta? Como a quarta…?

— A quarta tentativa de invasão. Só que dessa vez, os russos se anteciparam e parecem estar decididos a querer cortar o mal pela raiz.

— Como? Não entendi. Quarta?

— Veja, Legrand: a primeira foi repelida por Kutuzov. Você certamente leu Guerra e paz — afirmou a professora, dando uma mordida na sua torrada.

— Kuto o quê?

Madame Ivanova fez um gesto para Legrand esperar. Sua educação refinada não permitia que respondesse com a boca cheia. Depois de engolir, continuou.

— Kutuzov foi o general que expulsou as tropas napoleônicas do território russo depois que elas chegaram a Moscou. Você não leu Guerra e paz? — inquiriu a professora quase incrédula.

Diante de uma pergunta tão direta, Legrand procurou disfarçar.

— Todo não…

— O que você leu exatamente? Há boas traduções francesas desse livro monumental — afirmou com certo orgulho eslavo.

— Quer dizer, já faz algum tempo…

— Perdoe a franqueza, Legrand, mas tenho a impressão de que você nunca leu Guerra e paz. Não é um livro que possa ser esquecido.

Diante de tão peremptória afirmativa de sua interlocutora, Legrand admitiu:

— Na verdade, não… Falta de tempo…

— Não precisa se justificar, Legrand. Atualmente vocês franceses se interessam muito pouco pelos clássicos da literatura, menos ainda pelos da literatura russa — lamentou com alguma tristeza a especialista. — Veja, Legrand — continuou. — Na primeira tentativa de invasão, Napoleão montou o maior exército que a Europa tinha visto até então. De suas fileiras, faziam parte tropas alemãs, austríacas, italianas, polonesas, além de francesas, é claro. E você sabe quem o jovem imperador Alexandre I nomeou para resistir a essa primeira invasão? Eu vou lhe dizer, Legrand. Foi o velho general Kutuzov. E você sabe como Tolstói o descreve em Guerra e paz? Eu vou lhe contar. Tolstói o descreve com um homem velho, gordo, quase cego, comilão, mulherengo incorrigível, sentimental e leitor de romances franceses populares de quinta categoria, do tipo Les chevaliers du Cygne, de Madame Genlis. Então, Legrand, como você acha que tal nomeação seria recebida pelo alto generalato russo?

— Eu acho que…

— Acharam um absurdo, Legrand! Você acha que uma figura como essa seria capaz de deter o exército mais poderoso da Terra de entrar na Ucrânia e seguir marchando em linha reta até Moscou? Você realmente acha isso, Legrand?

— Eu… eu…

— Claro que não, Legrand! Ninguém em sã consciência acharia isso. Mas foi exatamente isso que aconteceu, meu caro. A despeito de todas as considerações em contrário, de todas as desconfianças, de todas as intrigas palacianas, de todas as sabotagens, de todas as derrotas em pleno território russo, foi justamente a estratégia montada pela figura caricata de Kutuzov que derrotou Napoleão após sua chegada a Moscou. Sabe por quê, Legrand? Você sabe por quê? Eu vou lhe dizer, Legrand? Porque aquele general que mal podia aguentar-se sobre as pernas tinha uma enorme experiência da guerra e conhecia profundamente a alma russa.

Após uma pausa, a professora tomou um gole de chá, respirou, e prosseguiu como em um movimento de tropas em direção ao ataque final e definitivo.

— Primeiro Kutuzov retirou suas tropas de Vilna. Depois recuou mais. Napoleão atravessou toda a Ucrânia sem a menor resistência. Às portas de Moscou, Kutuzov provocou o combate em Borondino. Mas por pouco tempo. Depois de sangrentos combates, que deixaram enormes perdas de parte a parte, retirou novamente suas tropas, deixando o caminho livre para Napoleão entrar na capital russa. O seu imperador — Madame Ivanova cutucou o peito de Legrand com o dedo indicador — entrou finalmente em Moscou. E você tem ideia de como foi a entrada de Napoleão em Moscou, Legrand? Hein, você tem ideia? — Madame Ivanova não esperou pela resposta. — Você acha que Napoleão entrou triunfante em Moscou como entrou em Milão, em Viena, em Berlim, com todas essas cortes e exércitos recebendo-o com todas as honrarias de grande vencedor, aceitando submissamente seu poderio incontestável? Não, Legrand. Definitivamente, não, Legrand. Quando Napoleão chegou a Moscou ele não foi recebido por ninguém.

— Nin-guém — repetiu. — A cidade estava completamente vazia. Não havia uma corte para lhe prestar vassalagem. Não havia um exército obediente ao seu novo comandante. As grandes avenidas estavam desertas. Apenas o povo miúdo escondia-se em seus casebres de madeira. Napoleão estava só. Nenhum russo estava presente para testemunhar o seu triunfo. O imperador francês logo percebeu que havia algo de estranho no ar. Mas não se deu por achado diante de seu estado-maior, que também sentiu o impacto da inusitada situação. Ordenou que as tropas descansassem da longa jornada e tomou as providências corriqueiras para a ocupação definitiva. Afinal, a guerra parecia ter chegado ao seu final.

Aqui a professora Tatiana fez uma pequena pausa depois de tão densa narrativa.

Ela passou um pouco de geleia em um pedaço de torrada, mordeu-a, mastigou-a com calma e engoliu o bocado com evidente satisfação. Ato contínuo, sorveu mais um gole de chá e pousou a xícara no pires. Pegou então um guardanapo de papel para limpar os lábios que, por sua vez, deixaram algumas marcas de batom na sua superfície. Ela dobrou cuidadosamente o guardanapo, colocou-o ao lado do pires que estava apoiando a sua xícara de chá, pousou as duas mãos sobre a mesa e continuou sem pressa.

— No meio da noite, durante o repouso dos guerreiros, aconteceu algo que ninguém podia imaginar. Você sabe o que foi, Legrand?

Legrand balançou negativamente a cabeça.

— Toda a Moscou começou a arder em chamas. Um incêndio gigantesco, incontrolável. A cidade inteira queimava. Durante toda a noite a cidade queimou. De início, as tropas napoleônicas, atônitas, tentarem conter as chamas, mas logo desistiram por concluírem inúteis seus esforços. Tiveram que assistir impotentes o incêndio consumir a capital russa inteira ao longo daquela noite.

Nova pausa. Legrand escutava aquela história estranha, como um menino ansioso pelo término de um filme de suspense. Dessa vez foi Madame Ivanova quem mirou o horizonte. Sem voltar seu olhar para Legrand, concluiu:

— Essa foi a recepção que o povo russo ofereceu ao grande imperador dos franceses.

Depois de nova pausa, a especialista encarou novamente seu colega e prosseguiu:

— Entretanto, Napoleão, apesar de homem experiente em inúmeras batalhas, demorou mais de um mês para entender completamente o recado. Depois de concluir que havia tomado uma cidade fantasma e reduzida a cinzas, reuniu o alto-comando do seu exército e tomou a única decisão que podia tomar diante das circunstâncias. Você sabe qual foi, Legrand?

Legrand não fazia a menor ideia.

— Napoleão ordenou que suas tropas se reunissem, organizassem a imediata retirada do território russo e retornassem o mais rápido possível a Paris. E foi dito e feito. Só que durante tão longo percurso a viagem se transformou em um verdadeiro inferno. As tropas napoleônicas foram acossadas durante toda a retirada pelo exército russo, engrossado por batalhões de mujiques e cossacos que não lhes permitiam parar sequer para procurar comida. Foi um verdadeiro flagelo. A maior parte dos invasores morreu pelo caminho, de fome, sede, frio ou atingidos pelos tiros impiedosos disparados pelo inimigo. Poucos chegaram a Paris, e nas piores condições possíveis. A estratégia daquele velho general, quase decrépito, mostrou-se acertada. É preciso muito sangue frio e muita paciência para vencer uma guerra. O povo russo é muito paciente e sangue frio é o que não nos falta quando se trata de guerra. Vocês certamente devem ter estudado esse episódio na escola — concluiu a professora. — Faz parte da história francesa! — observou sem esconder uma certa ironia.

Legrand não lembrava de nada disso em seus estudos de adolescência e juventude.

— Mas essa foi apenas a primeira vez que a Europa tentou invadir o território russo — retomou Madame Ivanova, já entusiasmada com o seu próprio relato. — A segunda tentativa foi logo depois da Revolução Soviética. Aproveitando a enorme confusão do período pós-revolucionário, a França, a Grã-Bretanha, a Polônia, a Holanda, os Estados Unidos e o Japão decidiram apoiar com suas tropas o exército contrarrevolucionário branco formado por czaristas e liberais, que não se conformavam com a nova ordem política imposta pelos bolcheviques. A guerra civil com todas as suas mazelas, incluindo a fome, provocou a morte de milhões de pessoas. Mesmo assim, todos os estrangeiros foram mais uma vez mortos ou expulsos do território russo por volta de 1921.

A professora fez nova pausa. Ela tinha deixado escapar um pouco de emoção em seu relato. Talvez precisasse refletir antes de continuar. Legrand continuava calado. Também precisava respirar um pouco. Eram muitas informações, não entendia a metade delas, mas em alguma medida, ouvir Madame Ivanova o tranquilizava de uma forma que ele mesmo não saberia explicar. De uma forma ou de outra tudo que ouvira da colega russa não deixava de ser uma explicação para suas angústias daquela manhã, pelo menos o distraía. A longa narrativa no meio do dia, naquele recanto quase bucólico do campus estava tendo um efeito relaxante para ele. Súbito, lembrou-se de que ela era russa e uma certa desconfiança ameaçou tomar conta de seu espírito. Por um instante pensou em levantar para ir embora. Esse pensamento, porém, foi interrompido pelo atendente que se aproximou para recolher a xícara da catedrática e perguntar se ela iria querer sua fatia de torta de maçã. Ela respondeu que sim.

— Você gostaria de pedir alguma coisa, Legrand? — perguntou afável a professora. — Se você quiser, posso lhe contar como foi a Grande Guerra Patriótica.

Legrand não conseguia decidir-se entre levantar-se e ir embora, pedir um café ou escutar um novo relato sobre aquele estranho e terrível país. Madame Ivanova percebeu a hesitação do colega.

— E traga um café também para o professor Legrand — pediu ao atendente que já ia saindo com o serviço utilizado pela cliente costumeira.

Legrand sorriu entre resignado e aliviado por uma decisão ter sido tomada por ele.

— A Grande Guerra Patriótica — suspirou sua interlocutora. Em seguida, emendou. — Foi a terceira tentativa do Ocidente de entrar na Rússia. E dessa vez a invasão foi muito bem preparada. A Alemanha foi armada pelas grandes potências até os dentes e tinha um líder carismático para levar adiante a empreitada. Não lhes faltaram armas nem tampouco recursos. Evidentemente estamos falando de Hitler.

— Hitler? Mas a senhora disse que ele foi armado pelas grandes potências…

— Sim.

— Que grandes potências?

— Ora, Legrand. Quais eram as grandes potências em 1930? Inglaterra, França e Estados Unidos. Quem mais poderia ser?

— Mas eles não foram contra Hitler?

— Depois, Legrand. O plano inicial, como sempre, era invadir a Rússia.

— Mas…

— O plano de invasão e a estratégia não foram muito diferentes dos de seu Napoleão. Num piscar de olhos, conquistou a Áustria, a Tchecoslováquia, a Hungria, a Dinamarca. Depois, descobriu que teria grande apoio para conquistar a França com o apoio dos próprios franceses. Ou você já se esqueceu da República de Vichy?

— Vagamente, vagamente…

— Entrou em Paris e cruzou o Arco do Triunfo sob aplausos de uma multidão de franceses eufóricos, sabe-se lá por quê. Você sabe, Legrand?

— Não exatamente…

— A leitura do terceiro volume de Em busca do tempo perdido talvez lhe traga algumas luzes. Conhece Proust?

— De nome — disfarçou o professor de exatas.

— Amo Proust! ­— suspirou. — Mas voltemos à entrada triunfal de Hitler em Paris — recompôs-se a professora. — Nesse momento, Hitler calculou que era suficientemente forte para lutar em duas frentes e atacou a Inglaterra. Talvez tenha sido seu grande erro. Se tivesse se contentado com a França e concentrasse seus esforços apenas na frente russa é possível que tivesse melhor sorte, pelo menos temporariamente. O fato é que depois de passear pelos campos da Ucrânia e da União Soviética, tal como Napoleão, os alemães chegaram às portas de Stalingrado. E daí não conseguiram avançar mais. O Exército Vermelho resistiu porta a porta e a partir de determinado momento foi empurrando os nazistas de volta para Berlim da mesma maneira que Kutuzov fez com os exércitos napoleônicos. A diferença foi que dessa vez, decidiram ocupar metade da Alemanha. Veio então a Guerra Fria. Dessa você já ouviu falar, né, Legrand? — perguntou com ironia a professora.

— Dessa já — afirmou Legrand, sem perceber a intenção maliciosa da pergunta.

— A Guerra Fria durou décadas, mais de quatro décadas. Aí, veio o colapso da União Soviética. A essa altura, apenas os Estados Unidos sobreviveram como grande potência. Mas a obsessão por destruir a Rússia permanecia na mentalidade ocidental. Gradualmente, a Otan foi incorporando os antigos países comunistas do Leste Europeu. Os governantes russos, praticamente de joelhos, eram incapazes de reagir. Pacientemente, fomos obrigados a assistir ao rearmamento europeu se voltando contra nós mais uma vez. Mesmo Putin nada pôde fazer; não havia nada a fazer, a não ser erguer o país mais uma vez e se preparar para a nova ofensiva. Os ocidentais são muito previsíveis. Você não acha, Legrand, que os ocidentais são muito previsíveis?

O professor não soube o que responder. A russa, então continuou.

— Você não leu Almas mortas, é claro. Nele, o personagem Thitchikov revela por outro ângulo essa característica tão própria do caráter russo: a infinita paciência para esperar o momento certo para agir. Foi o que aconteceu ao longo desse início de milênio; a Otan incorporando novos países em torno da Rússia e ela quieta. Ainda não era o momento de reagir. A Otan combatendo o Talibã no Afeganistão e ela quieta; os Estados Unidos promovendo revoluções coloridas no norte da África, destruindo a Líbia, e ela quieta. Ainda não era o momento. A luz amarela acendeu justamente quando essas interferências chegaram justamente na Ucrânia, sempre na Ucrânia, que o Ocidente considera o seu trampolim para a invasão de Moscou. Os russos, então, passaram a acompanhar minuciosamente os movimentos do Ocidente por lá. 2014, golpe de estado e a ameaça de a Ucrânia integrar a Otan. Foi o máximo da provocação. A paciência russa foi atingida no seu limite.

Legrand ouvia a narrativa meio entorpecido pela arenga da especialista.

— Não durma, Legrand. Estamos chegando na parte crucial de nossa história.

O francês se recompôs e procurou prestar atenção.

— Imediatamente ao golpe ucraniano, a Rússia respondeu incorporando a Crimeia e esperou a reação ocidental. Só que ela não veio, Legrand. Pelo menos, não na forma militar usual. Foi um movimento ousado que mostrou os limites da Otan naquele momento. Ao contrário, o império ocidental dobrou a aposta, financiando os nazistas ucranianos que passaram a ter cada vez mais influência no governo ucraniano. A essa altura, porém, a Rússia já havia organizado sua economia em torno do gás que fornecia em quantidades cada vez maiores para a Europa.

Nesse momento, a professora olhou o relógio, viu que o horário do intervalo estava prestes a terminar e resolveu acelerar o final da narrativa.

— A essa altura Putin também já acompanhava de perto a intervenção americana na Síria e concluía que ela estava fadada ao fracasso. Resolveu, então mobilizar sua força aérea lá e viu que não houve resposta. Os EUA tinham perdido completamente a iniciativa na Síria e não tinham mais condições de qualquer reação.

— Em resumo — a narrativa da catedrática russa começava a se encaminhar para o final —, Putin aos poucos foi se convencendo de que o tigre começava a perder os dentes. Mas foi somente quando as tropas americanas deixaram às pressas o Afeganistão depois de duas décadas de ocupação que o líder russo percebeu que era chegada a hora de aceitar o combate que a Otan sorrateiramente provocava na frente ucraniana. A guerra tornou-se inevitável.

— Mas isso que a senhora está dizendo é assustador. Como isso irá terminar? — perguntou um novamente aflito Legrand.

— Como vai terminar exatamente não sei, meu caro. Sou apenas uma professora de literatura russa. Mas eu tenho um palpite.

— Qual é, professora?

— Eu penso que muito do espírito russo diante desse tipo de situação encontra-se em Crime e castigo, do grande Dostoiévski.

A essa observação, um desesperado Legrand a custo conteve sua irritação, mas que não passou despercebida pela russa.

— Sim, Legrand. Isso tudo me recorda a maneira como o juiz de instrução Porfiri Petrovitch conduziu o caso do assassinato da velha usurária por Raskolnikóv. Desde o início ele sabia que o estudante era o autor do crime. Mas ele não tinha provas cabais para acusá-lo, a não ser a leitura de um artigo de jornal escrito pelo assassino. Contudo, ele teve a paciência necessária para manipular Raskolnikóv a conduzir-se voluntariamente à confissão. E isso só foi possível por uma correta interpretação da mente do criminoso por meio da análise do seu artigo e do seu comportamento.

— Não consigo compreender — desabafou Legrand.

— Não me admira. O fato é que Putin e seus comandados fizeram uma leitura bastante correta dos fatos históricos recentes e estão carecas de saber como se comportam os estadunidenses nesses assuntos.

— …

— Ou seja, desde a derrota dos EUA no Afeganistão, os russos perceberam claramente que as provocações da Ucrânia eram um blefe. Por isso eles pagaram pra ver e iniciaram os combates. Eles já sabiam o que precisava ser feito e aonde chegar. Agora é só jogar o jogo até alcançarem o seu objetivo final.

— Que é…?

— Isso não podemos saber exatamente. A literatura explica muita coisa, mas não explica tudo.

Essa última frase foi a gota d’água para o professor francês que se levantou visivelmente alterado, recolhendo seus pertences da mesa. A especialista não perdeu a fleuma.

— Você tem razão, Legrand, é hora de voltarmos para as nossas aulas. O café é por minha conta. Permita-me essa gentileza eslava.

— Obrigado — resmungou Legrand, afastando-se apressado de sua colega.

Durante um tempo, o veterano professor de Mecânica dos Fluidos preocupou-se com o noticiário alarmista sobre o conflito. Entretanto, o assunto pouco a pouco foi deixando as manchetes, o que proporcionou ao nosso ansioso personagem uma certa estabilidade durante algum tempo. Sua paz só voltou a ser perturbada novamente quando a mídia colocou com estridência em suas manchetes a misteriosa varíola de macaco. Entretanto, contar como nosso Legrand se comportou diante da novidade seria repetitivo e, muito sinceramente, enfadonho.

Quanto à professora Tatiana Ivanova, podemos dizer que recebeu sem surpresa a informação da direção de ensino de que os cursos de literatura russa ficariam suspensos por tempo indeterminado. Até as coisas acalmarem, disse a chefe do departamento.

Com a costumeira tranquilidade, comunicou a seu pai que tinha obtido um período de folga e que iria passar uma temporada com ele em sua casa no sul da França. Explicaria tudo com calma quando chegasse lá.

O velho diplomata aposentado não teve muita dificuldade em compreender os motivos que permitiriam à sua filha querida passar um tempo com ele. E, tão logo desligou o telefone, começou a tomar providências para recebê-la com todo o carinho que sempre lhe dedicou desde seu nascimento, ainda nos tempos sombrios da Guerra Fria.

Álvaro Marins

É doutor em Teoria da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Venceu o Prêmio Clarice Lispector da Biblioteca Nacional em 2021, por Suíte carioca e outros contos esquisitos. Estreou na ficção, em 2016, com A mulher do fuzileiro e outras quase histórias (Língua Geral). Publicou também Machado de Assis e Lima Barreto: da ironia à sátira e organizou — em parceria com Fred Goés — o volume Os melhores poemas de Paulo Leminski e a coletânea Páginas esquecidas: uma antologia diferente de contos machadianos.

Rascunho