Machado de Assis e a imaginação do mal

Trecho do livro inédito de José Luiz Passos
Ilustração: Carolina Vigna-Maru
01/02/2014

Eis como Bento Santiago arremata suas memórias, num capítulo sugestivamente intitulado E bem, e o resto?:

Agora, porque é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. ix, vers. 1: “Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti.” Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.

E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me… A terra lhes seja leve! Vamos à História dos subúrbios.

Para o narrador, a culpa de Capitu torna-se inteligível — mesmo que visível indiretamente — apenas quando tomada como a história da pessoa de Capitu, de seu potencial de transformação. A esposa é uma síntese de todas aquelas moças capazes de escamotear suas intenções e seus motivos. Bento supõe encontrar nela a plena liberdade de consciência característica da maturidade de Iaiá. A constância de Capitu — se a “da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos”, etc. — é tomada pelo marido, com terror, como sendo a afirmação da possibilidade de que, na sua multiplicidade, haja uma faceta invisível para ele, e dirigida contra ele. Bento toma a capacidade de fingir como evidência do engano; optando, assim, pela solução mais negativa possível para descrever o que seria aquele traço estável de inteligência na esposa. Por outro lado, a possibilidade de explicação relacional da culpa transfere para um “caso incidente” a origem do malefício. Essa possibilidade é logo descartada por Bento. Antes de fazê-lo, porém, o narrador ilustra seu comentário retirando de um dos livros deuterocanônicos sapienciais, o Eclesiástico (9:1), uma ressalva à própria convicção: “Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti”. A sugestão bíblica para explicar a natureza das motivações humanas como transmissíveis, sobretudo em seu potencial nocivo, tão enfatizada no Antigo Testamento, fascinou Machado. Tal atenção do Eclesiástico nos propõe uma noção do ciúme, como sentimento moral, que já se encontrava posta em Números (5:14-15), onde no espírito da lei da pureza a redação sacerdotal judaica prescreve uma oferta de purgação da desconfiança do marido — a oblação de ciúme —, em ritual ungido pelo elemento da água e dirigido ao sentido da visão, onde se dá a aparência da culpa.

A única maneira de tornar visível a falta de Capitu é apanhá-la na imaginação da relação entre os quatro envolvidos: o casal, o filho e o amigo; e tomar tal relação, ampliada pela conjectura, como prova da transgressão. A imposição da imaginação por sobre o real; o sonho calando o concreto; o devaneio por cima do presente, tudo isso traduz o processo em que a autonomia de um se sobrepõe à do outro. E aquele potencial para a metamorfose, trabalhado pelo autor ao longo dos seus seis romances anteriores, subitamente mostra a face reversa — ou a ampliação de seu escopo —, quando a plena autonomia se converte em dano, e o dano do objeto amado é vivido como danação do próprio eu.

Uma vez que ele não pode prescindir da intenção, o mal radical é sempre um projeto. Ele pressupõe, como ponto de partida, uma condição de plena liberdade. É nesta condição que a escolha é feita no sentido da transgressão de um pacto entre iguais e, sobretudo, entre fortes e fracos. Quando pensado radicalmente, o mal implica a indiferença frente a uma visão afirmativa da vida humana e à reiteração desse pacto de mútuo entendimento. Em Dom Casmurro, a imputação do dolo — ou seja, a passagem da falibilidade à falta — vem casada biblicamente com a figuração adâmica da fruta-mulher. E o versículo apontado pelo narrador nos leva, de maneira ainda mais sugestiva, na direção contrária: na direção da origem masculina da malícia, ou da sua inerente condição de partilha.

Isso importa porque mostra que até o último instante a visão da responsabilidade permanece relacional, modal, admitindo a possibilidade do avesso das situações. Que Bento considere a esposa infiel, está bem. É justo. É saudável, pois garante a ela um espaço, aliás, verossímil para seu interesse por Escobar, um homem social e moralmente mais próximo a ela do que o próprio marido. Sua tentativa de aniquilação do caráter da esposa — daquela aniquilação do sujeito que aqui se esboça com minúcia e nostalgia — reitera até o penúltimo instante a condição de liberdade que subsiste no reconhecimento da individualidade do outro antes da queda. É o que nos aponta Alfredo Bosi:

A intuição do caráter singular da pessoa amada resiste até mesmo à conversão do amor em ódio que a suspeita da traição instilou no parceiro que se crê enganado. Bento, no auge dramático do romance (capítulo “Capitu que entra”), abriga em si, ao mesmo tempo, o personagem tomado de ciúme feroz, que já o levara à beira do assassínio, e o narrador fenomenológico sensível às mínimas expressões de Capitu.

A metamorfose se radica nesta mudança de atitude do sujeito consigo e com os demais, inclusive e principalmente com relação àqueles que permaneceram os mesmos. Mas é na organização do caso sob a forma de uma confissão que Bento leva a tese a mudar de natureza, quando então o narrador interfere intencional e levianamente na exposição da pessoa-alvo, imputando-a o dolo e a malícia da queda do casal.

O mal se torna projeto de aniquilação do outro quando se converte num ciclo de negação da autonomia alheia. Na recusa do direito de resposta à esposa; no isolamento dela e do filho; na denegação iracunda mas silenciosa dessa filiação; no ressentimento dirigido a um amigo morto; na preferência por soluções fantasiosas para dilemas reais e coletivos; na rotina do rancor; na compulsão à dúvida dos motivos do outro; na imposição irrestrita e unilateral dos desejos do eu; em todos esses casos, verificados conjuntamente apenas em Dom Casmurro, um projeto está em cena: o da assimetria contínua nas relações que caracterizam a vida afetiva e moral do narrador. Esse interesse tão meticuloso na denegação da imaginação na vida de terceiros — como uma criança que mantém o foco da lupa com muito empenho, aguardando o momento em que o inseto se encrespa —, tal interesse levado a cabo como ruína da vida, e travestido em nostalgia da vida ativa, é talvez a única forma de se tornar o mal radical visível a olho nu. E isso, no entanto, não se fez sem aquela dose certa de humor machadiano.

Na tragédia Otelo, de Shakespeare, Desdêmona tem por acompanhante Emília, a esposa de Iago. Num pequeno monólogo sobre a origem da inconstância e da infidelidade feminina, esta — sendo, ironicamente, a responsável pela entrega do lenço que funcionaria como suposta prova cabal de infidelidade — se dirige à recém-casada Desdêmona da seguinte maneira:

Mas de verdade acho que a culpa é dos maridos
Se suas esposas caem. Digamos eles amoleçam nos deveres
E derramem nossas jóias no colo alheio;
Ou então estourem em ciúmes perversos,
Atirando-nos amarras; ou digamos que nos batam,
Ou reduzam nossa mensalidade por gosto,
Ora, nos ressentimos: e muito embora tenhamos graça,
Tiremos alguma desforra. Que os maridos saibam
Suas esposas têm desejos como eles: que vêem e cheiram
E têm paladar para o doce e o amargo
Como os maridos também. O que estão fazendo
Quando nos trocam por outras? É esporte? Acho que é.
É a luxúria que dá isso? Acho que sim.
É a fraqueza que assim engana? Isso também.
E não temos nossos afetos?
Desejo de esporte e fraqueza, como os homens têm?
Então que nos usem bem: senão fiquem sabendo,
O mal que fazemos, seus males nos ensinam a fazê-lo.

Aqui está a mesma motivação da ressalva levantada por Bento à sua convicção de que Capitu era culpada ab ovo, por natureza. Emília apresenta um argumento semelhante àqueles que parecem ter sido tomados de empréstimo por Dom Casmurro a Iago, na primeira cena do quarto ato: “knowing what I am, I know what she shall be”. Sabendo quem sou, eu sei o que ela vai ser. Emília considera os ciúmes e a traição frutos da interação, do trato e das convenções; vê traição quem já foi traidor; ciumento, só quem já se sentiu objeto de ciúmes. A plausibilidade e a recorrência desse motivo, descartada em duas linhas pelo narrador de Dom Casmurro, põe um espelho diante de Bento. A mesma hipótese é levantada em outros textos de Machado. Seu interesse nos ciúmes é, acima de tudo, um interesse no problema da deliberação ética: como reconhecer nos outros a substância e o resultado das minhas próprias escolhas.

É claro que a conseqüência mais palpável desse ato, já apontado por Pedro Meira Monteiro na sua discussão do último narrador machadiano, é que a suavidade da queda, tornada retraimento, se traduz em perda do futuro. Tal como sugere Kant — e, a seu modo, também Iaiá Garcia — apontar o mal, vê-lo no outro, é enxergar-se capaz dele, pois o eu e o outro são frutas de uma mesma espécie. E a tentativa de disjunção metafísica, e unilateral, entre marido e esposa, no caso de Dom Casmurro, esbarra no paradoxo da universalidade do sujeito: uma universalidade talvez rechaçada por Bento, mas reiterada pela própria obra de Machado. É assim que toda mitologia da queda, contada como tentativa de resgate do passado, resvala naquela abolição do futuro. A tragédia, afinal, é a passagem do cosmos ao caos. E nisso o legado machadiano não inspirou muitos continuadores, já que o etos otimista de grande parte da narrativa nacional — nos romantismos, nos modernismos, nos regionalismos — tomou a direção contrária:

Passados cem anos da morte de Machado de Assis, a crítica especializada já nos dá elementos bastantes para aprofundar a investigação desse futuro abolido, a que se ligam a desaceleração do tempo e a sensação de que tudo segue governado pela infidelidade. No refreamento está também, salvo engano, o elemento “classicizante” de Machado de Assis, o qual, significativamente, incomodaria sobremaneira à crítica modernista, de tom francamente nacionalista, de um Mário de Andrade. Mário amava e desamava Machado, porque não podia suportar, afinal, uma mensagem tão rarefeita em relação ao futuro.

Mas toda tragédia encena a morte do futuro. E numa sociedade em que a redenção é sempre possível — pelo favor, pela harmonização dos contrários, pela comunhão com a nação —, a inteligência da tragédia não tem lugar. Por isso, pensar o mal radicalmente é pensar os limites na imaginação de qualquer cosmogonia; é também pensar a finalidade dos projetos que uma comunidade, ou um narrador, arma para si.

José Luiz Passos

É Professor Titular de literatura brasileira na Universidade da Califórnia, onde vive com a esposa e os dois filhos. Autor de estudos críticos sobre Mário de Andrade e Machado de Assis, entre outros ensaios e contos. Publicou, pela Alfaguara, os romances Nosso grão mais fino (2009) e O sonâmbulo amador (2012), vencedor do Grande Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Seu próximo livro, “Romance com pessoas: A imaginação em Machado de Assis“, será publicado pela Alfaguara em abril.

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