Esse é o seu momento favorito: a tardinha, quando o sol se recolhe timidamente diante da presença da noite, entontecendo o ar com um enervado tom lusco-fusco. Sensação de mentira. Ele sempre conta com essa atitude do dia para sentir-se livre de toda a verdade do mundo. Todo dia por volta das seis horas da tarde, ele achega-se em seu velho pufe – com vista para a rua – carregando seu eterno cigarro na boca, e fica a observar o caminhar da cidade esvaindo-se juntamente com o dia. As pessoas perdem-se umas nas outras, todas viram um único corpo que dança pelo mesmo caminho até seu fim. Hoje, o homem está acompanhado de seu poema de mais gosto. De sua janela não vê nenhuma tabacaria, mas os turvos passos da praça Osório movendo vidas e mortes. Ele deita os olhos sobre a passarela da não-existência. Observa-a por horas. Esfria-se com a sua presença, não agüenta mais respirar. Falhou em tudo. Sonhou conquistar o mundo: nada conseguiu! Sufoca-se dentro de sua casa.
Levanta-se abruptamente, deixando seu livro aberto sobre o sofá, e caminha até sua biblioteca. Palavras: elas dão vida à sua febril desistência. O homem corre os olhos pelas inúmeras capas e escolhe a Florbela. Lê: “… Sobre um sonho desfeito ergueu a torre/ Doutro sonho mais alto e, se esse morre./Mais outro e outro ainda, toda a vida!/ Que importa que nos vençam desenganos/ Se pudermos contar os nossos anos/ Assim com degraus duma subida?” Com isso, logo entende que é chegada a hora de terminar de construir sua torre babélica. Num ímpeto quase infantil, ele desliza seus braços pelas estantes onde guarda os livros, derrubando, lentamente, um a um no chão. Depois, carrega-os até a janela e começa, deliberadamente, a soltá-los e vê-los sangrar no chão. São muitos. A luz do dia já está toda tomada pela noite e o balé de pessoas cessara. O homem sente borboletas em seu estômago que parecem querer sair pelos seus ouvidos. São muitas asas barulhentas. Ele escuta muitas vozes saindo de seus livros: todas lá fora chamam por ele. Rapidamente, depara-se com a porta aberta e o elevador à sua espera. Sem pestanejar, desce e vai até onde estão as vozes a chamá-lo. Florbela diz a ele que é preciso construir sua torre.
O homem apressa-se em carregar os primeiros livros para o meio da praça: edifica os primeiros degraus. Sobe. De lá, ele enxerga sua infância. Sim, tem saudades daquele tempo que tinha vida, tinha a irmã, a mãe, o pai. Amava-os todos e de todos recebia amor. A ingenuidade lhe ofuscava a vista para o mundo que existia lá fora. Nesses primeiros degraus, o homem ouve uma triste canção saindo dos livros: ao seu lado, um poeta chora a infância querida que os anos não trazem mais! É o mesmo choro que ele queria chorar. Criou-se um clima fúnebre no início de sua torre. Porém, algum tempo depois, pediu licença ao poeta e foi em busca de mais escritos, deixando a (triste?) infância para trás. Aumentavam os degraus de sua (moribunda) vida. Chegou à metade: não tinha mais a irmã, não tinha mais os pais. Já sentia a vontade de parar a música. Encontrou a literatura. Tornou-se ela. Ouve bem baixinho o barulho cortante de um carro encontrando um caminhão. Chora. O homem desespera-se a cada passo que dá em sua torre, quer o desfecho. Falta-lhe o ar. Do alto avista os últimos livros no pé da torre. Ele sabe que eles são o fim de tudo, precisa alcançá-los de qualquer forma. Equilibrando-se nas orelhas dos livros, já alçados como degraus, desce para eles. Logo que começa a escalada final, lembra-se daquele que estava a ler no lusco-fusco, de modo que volta ao seu apartamento para tê-lo. Quando o encontra caído no pé do sofá, depara-se com a torre pela janela. Vai até ela. Do lugar que está, consegue ver que em seu topo diversas vozes estão a chamar pelo seu nome. Querem-no lá em cima para concretizar sua vida. Sente vertigem. O espelho lhe revela a falta de identidade; tudo que vê é a ausência de sua existência. Triste fim. Ele apanha o livro aberto do chão e lê uma última frase: “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?” Tudo que ele é, parece ter sido dito nos livros. Ele é todos. Ele é ninguém. Ao tirar os olhos de seu derradeiro livro, o suor lhe esconde a visão. Lusco-fusco. Segurando o livro em uma mão e tateando, cuidadosamente, as paredes de seu apartamento com a outra, o homem percebe a saída e entra no elevador. Chega ao pé da torre, acolhe os livros que faltam e retoma a subida que iria dar início ao desfecho do que tinha sido sua (mísera) vida. Do bolso de sua camisa, tira um cigarro e um isqueiro. Acende-o. Exala a fumaça. Durante o caminho, as vozes teimam em acompanhá-lo até o último momento. Pelo menos sua solidão ainda é combatida pelos livros, até nesses últimos passos. Próximo ao fim, sua visão dá o ar da graça: é preciso estar lúcido na hora da morte, alguém lhe diz. Chega ao ponto mais alto. Pela primeira vez, vê, ao mesmo tempo, todos os cantos da cidade lhe sorrindo. Todas as vozes emudecem. Silêncio. O homem deita o último livro sobre os outros e antes que pudesse entender a verdade sobre sua vida, exaure-se com uma profunda tragada em seu cigarro e, lá do alto de sua Torre de Babel, atira-se para a morte.