Leituras frias

Conto de Fabrício Carpinejar
01/03/2005

Não queria incomodar. Nem a mim. Residência escura como uma noz intacta. Não tenho mapa de como é uma noz por dentro. O escuro é doce e quebra fácil. Pegava meus livros, andava com os dedos dos pés sem fazer barulho. Sempre que não quero fazer barulho, faço. Acontece um estalo inesperado nas pernas. Os cotovelos produzem uma comoção de fogueira. A cintura tranca. Ou sou mesmo atrapalhado ou os ouvidos ficam mais concentrados. Sentava diante da geladeira branca. Redonda com nome de inspetor de saúde: Steigleder. O verão andava alucinante. Produzia comichões antes dos mosquitos, que odiavam a concorrência. O velho ventilador lembrava pantufas, de tão lento. Lembrava azeite, de tão demorado. Lembrava escadaria de igreja, de tão longe. Muito quente. Bafo de cão no ouvido. Meu cão tinha hálito de cachaceiro — botava a língua para fora e seu estômago vinha junto espiar. Tentei escovar seus dentes e engoliu a escova, deduzi que não precisaria mais lavar sua boca por toda a vida.

A geladeira branca: um copo de leite. Escolhia livros com mais ilustrações, gorjeava luz da porta. A geladeira continha uma lanterna e ainda refrigerava o vento. A geladeira funcionava de ar-condicionado e luminária ao mesmo tempo. Sentava no chão da cozinha a folhear durante a madrugada. Nunca fui pego. Quando alguém se aproximava para tomar água, eu me escondia debaixo da mesa. Via os familiares como sonâmbulos, não abriam os olhos, apenas o suficiente para não derrubar seu corpo do último sonho. Meu irmão falava aramaico. Minha irmã cantava Rolling Stones. Minha casa cheirava a comida requentada. A reputação do lar estava na geladeira. Geladeira de solteiro cheira a margarina — é o que não termina. Quando tinha alguma coisa podre na geladeira, não podia ler. Catava um por um dos produtos para descobrir quem era o fedorento. Na maioria das vezes, culpava o queijo. Eu lia com o olfato. Perguntava para a mãe o que faria de comida no outro dia, pouco interessado em comer, mas para proteger a saúde das leituras noturnas. A mãe se espantava com minha curiosidade gastronômica e não compreendia como deixava tanta comida no prato. Odiava comer, perda de tempo, assim como dormir. Sono engorda. Brincava de trator no prato. O segredo consistia em deixar a comida na beirada e despovoar o centro, que dava a sensação da obrigação cumprida. Aproveitava a distração dos familiares com a conversa e dragava o arroz aos seus pratos, além de apoiar os cotovelos na mesa, com lassidão contrariada. Saía da cadeira vitorioso, por desistência dos concorrentes. Nunca limpei um prato na infância — e a faca só servia para amontoar minha esperança.

Quando a mãe fazia feijão, eu a ajudava no alguidar. Ambos na mesa grande, a ciência da escolha. O andamento de uma missa tal a gravidade das palavras e a rigidez dos gestos. Ela me explicava: ‘os que estão com cicatrizes e feios não são para derramar na bacia’. Dava um dó dos grãos bichados, feridos. Colocava os imprestáveis em meu bolso, preocupado em não ser visto. Depois plantava na horta para mostrar que eles poderiam render, ao menos, mato. Mato é flor do purgatório. O mato torna qualquer abandono mais altivo. O mato tem altura de jogador de basquete. A geladeira me entenderia. O leite da garrafa é diferente do gosto do leite do plástico que é diferente do leite do saquinho. Os lábios misturam várias sobras, de uma paixão antiga a uma recente. Um dia esqueci um dos livros dentro da geladeira. O pai botou os filhos de castigo até descobrir quem fez a molecagem, que murchou a obra completa de Gonçalves Dias.

Gonçalves Dias morreu de hipotermia, congelado como uma múmia. Não abri o bico, festivo com o castigo coletivo. Sofrer com os irmãos era melhor do que sofrer isolado. Tem gente que só peca acompanhado. Eu sou assim. Dividir o pecado é dividir a pena e ficar com toda alegria sozinho. Depois fui saber que a comida estragava com rapidez, que a conta de luz subia vertiginosamente, que meu pai reclamou à companhia elétrica dos abusos e falhas na medição, que durante meses foi o assunto predileto das brigas do casal, que a mãe culpava o pai, que o pai culpava a mãe, que os dois se separaram na época, que houve pratos e discos de Chico Buarque quebrados. Eu e a geladeira crescemos sadios. Com a neutralidade das verduras na última gaveta.

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho