O cheque da fundação portuguesa perturbou a escala de valores do delegado, mas não pôde ser descontado por Tomás. Era uma ordem de pagamento à vista, como todo e qualquer cheque, mas impossível de descontar sem pagar a taxa de cinqüenta dólares das práticas de câmbio vigentes para o caso de um pagamento em moeda estrangeira, que não podia ser depositado em conta etc. Tomás foi discutir o assunto — na companhia do jornalista e advogado Arthur Carvalho — na agência do Banco Central, mas não houve jeito: o cheque só poderia ser descontado se o beneficiário se deslocasse a Portugal e, lá, abrisse conta ou fosse ao banco designado, receber a quantia em dinheiro. O poema publicado na revista — “O leque pintado na água” — era sobre um peixe. Tomás nunca viajaria para a boa terra do cônsul Fernandes (que se propôs a pagar o cheque do seu bolso), porque temia se decepcionar com o Portugal moderno. Seu medo era buscar o Portugal de Eça nos lugares onde já não havia mais o Velho do Restelo, as formalidades extremas, as mulheres se despindo de todo pudor nas alcovas mantidas em segredo, as cidades no sono e as serras entre as estrelas pendentes do brilho de brincos roubados por ciganas da Galícia onde a língua latina penetrava na sombra das solidões da península ibérica.
Tomás conhecera toda a Europa nos livros, descansando nos jardins antigos em frente à Gare de Lyon, de onde a sutileza partia para o refino dos ambientes acima dos Apeninos, até se apertar de frio nos bosques dos duelos aposentados, em face da pátina de mármore de óperas cantadas por primas-donas abandonadas por amantes. A Europa de Tomás ficava para trás a cada ano, ele sabia e temia — e não viajava por medo de não reconhecer os ambientes burgueses, as esperas nas salas, as partidas dos claustros para os cemitérios, em fiacres envernizados pela fumaça do inverno. Dava a Europa “por vista, sentida e vivida” nas páginas de horas úmidas, dois lances acima de uma velha escada de mogno que o levara para as vastidões onde o continente acabava e começava a “Eurásia da Rússia” (como dizia o doutor delegado). Viajando com eles — com Thomas Mann, Marcel Proust, Henry James, Virginia Woolf, Knut Hansum, D’Annunzio e os nomes menores, de algumas miniaturas em espuma-do-mar (Montherlant, Roger Matin du Gard) —, Tomás vira a Europa pelo vidro dos viajantes sem pressa, sabendo que o tempo cancelava esse olhar e o seu objeto, a cada mudança de trem e de estação que o fazia adiar a viagem verdadeira, ao continente real das decepções. Assim, nunca comprara a passagem e gastara, por fim, o dinheiro do bilhete para fora daquela sua quimera. Fecha parêntesis.
O cheque, então, foi emoldurado e ficou fazendo parte da decoração do Kyoto, entre os cactos, as montanhas e os macacos.
Não era o único cheque pregado naquelas paredes. Antes que pensem que poderia haver, nelas, entre as montanhas grisalhas e os macacos ensonados, um enfiada de cheques sem fundo emoldurados para a vergonha dos fregueses faltosos com as dívidas, devo dizer que nada dessas vulgaridades poluiria jamais o Kyoto, contaminado, sim, por outros miasmas — mas não pelo da usura dos protestos de Pound. Ou seja: nenhum “voador”, nenhum “borrachudo” era exibido ali no recinto do restaurante confuso (mas não a tal ponto). Sei que é prática comum em restaurantes revoltados com os calotes de pequenas somas… mas o que havia, o segundo e último cheque emoldurado entre os cactos, era um cheque americano, autêntico, para Marianne Moore e endossado pela poeta.
Isso mesmo. Está lá a assinatura dela, nas costas da ordem de pagamento de dois dólares e onze centavos que “Mary E. Cooley” passou, para Marianne, contra o Ann Arbor Bank (agência da South University), da cidade de Ann Arbor, Michigan, no dia 19 de maio de 1955. A autora de Nevertheless assinou atrás, autografando o documento que viera parar naquela moldura vidro-com-vidro (para se ver ambas as faces do cheque), por algum motivo estranho demais para se perguntar por ele, numa noite qualquer de rotina, na cidade que permite que um restaurante decorado com um cheque pago à miss Moore decrete a própria morte no meio da indiferença que não mais permite a leitura do poema inacabado que Tomás deixou, justamente sobre a raridade na parede do Kyoto. Que vai fechar.
Se for verdade, se de fato vou perder o único lugar público humano (do espaço desumano que vai se tornando a minha cidade), devo então me levantar e sair para pegar, de volta, ao menos a preciosidade que me pertenceu, recebido de Giovanna que, por sua vez, o recebeu do antiquário italiano que colecionava autógrafos de poetas contemporâneos.
Giovanna pensava que o cheque — apesar de tão raso — fosse valioso pelo autógrafo de alguma milionária famosa. E quando lhe expliquei que Mary E. Cooley não era ninguém, ela então me ofertou o pedaço de papel com a sua cifra, seus carimbos e assinaturas na face principal e nas costas, porque nada lhe convenceria do valor de raridades da poesia (que Giovanna detestava).
Entretanto, parece-me impossível ir ao Kyoto, na vigência das suas últimas horas, apenas para trazer de volta um cheque emoldurado. Mary E. Cooley passou por “checheira” (ainda se usa a expressão?), durante todo este tempo em que o quadrinho esteve pregado no restaurante — enquanto a assinatura de Marianne Moore era ignorada, no verso do documento, voltado para a parede. A poeta escapou de ganhar fama de caloteira, mas permaneceu na sombra dos seus poemas fluindo debaixo da água, o que faz jus à poesia secreta da autora de The Fish (melhor do que o The Fish da sua amiga Elizabeth Bishop, que viveu numa confortável casa de Ouro Preto e com quem Tomás antipatizava fortemente).
Foi ele, aliás, quem sugeriu emoldurar também o cheque-presente de Giovanna, para que ficasse ao lado daquele remetido pela Gulbenkian (o tal irresgatável). Durante anos, ambos foram vistos como sem fundo, no fundo falso de um restaurante que nada tinha a ver com o Japão, apesar de se chamar Kyoto. O cônsul Nakamura nunca quis fornecer nenhuma das cartas originais de Kurosawa para formar um trio de documentos internacionais abaixo da linha de cactos, e acho que fez bem. Hoje, meu cheque de Marianne (e Giovanna) está meio desmaiado sob o vidro sujo de cocô de moscas e não irei me levantar para resgatar, apressado, autógrafo nenhum da vida que risca budas do mapa, apaga lembranças e fecha portas e restaurantes.
Ficarei sem saber quem foi Mary Cooley… e longe — mais longe do que nunca — de tentar vender o documento para aumentar a poupança que poderia financiar, um dia, uma nova viagem a Roma (para rever o túmulo da puta mais linda nascida na antiga região da Etrúria).
O Kyoto vai fechar. Outras coisas já fecharam. Giovanna está encerrada na tumba, o nome completo certamente já borrado do limo que escurece as campas. Seus clientes, o antiquário dos autógrafos, os que morreram sem rever os parentes, os rapazes que libertaram Roma quando Giovanna viu correr um fio de sangue de entre as suas pernas de menina, tudo que dorme e se fecha nas colinas, os pássaros vermelhos e a avenca na sombra, tudo passa, tudo.
E cada encontro é único e nunca será repetido, na roda de gelo do tempo que derrete cada giro, cada volta rápida ou lentamente sobre si mesma — porque o presente apaga o que passou, desenho de óleo na água enferrujada que seca numa frigideira do Kyoto deserto onde também passamos uns pelos outros, pela “única vez perdida”, conforme a imagem do poema de Marianne Moore dedicado à sua amiga.
NB:
“Mary E. Cooley deve dois dólares e onze centavos a Marianne Moore.”
A própria Mary escreveu (e datou), no seu livro de contas. Tinha uma letra pequenina, como se fosse uma menina anotando num diário secreto que ela nunca manteve quando era menina, adolescente ou mulher pensando num peixe, como ele é.
É uma tarde do começo de maio e Marianne está viajando, de modo que Mary não pode se levantar para ir pagar os dois dólares e onze centavos à amiga que ganhou a aposta cotada com essa fração estranha (que parecerá ainda mais estranha no cheque que certamente será recebido com um sorriso). Mas Marianne é mais estranha do que qualquer fração de qualquer coisa no mundo.
Ninguém adivinha o que ela viveu no México — no México, sim — e Mary Cooley foi a primeira a duvidar da história do gato nas ruínas, da lua sobre os limões, do fantasma na sebe e do homem com a máquina fotográfica antiquada (além do fonógrafo que ele carregava — tudo numa motocicleta — para ouvir um único disco fanhoso no final das tardes longas da Sierra, em varandas de madeira rendada)… Mas não se podia duvidar de Marianne. Ela não era uma mulherzinha nervosa escrevendo poemas porque, na verdade, estivesse à espera de um homem viajando daquela maneira (uma revista financiava as suas viagens do fotógrafo, seja dito em favor das revistas que não temem ser enganadas). Marianne tinha um senso de objetividade a toda prova, a par da intuição poética mais fina (não “feminina”, não se pense nessas besteiras) de poeta, homem ou mulher, da sua geração vivendo aquele momento em que o país tomava plena ciência amadurecida de si mesmo etc. Quanto ao fotógrafo, Marianne garantia que as suas imagens revelavam outro mundo — geralmente no México para onde ele sempre voltava, embora fosse de Utah e gostasse da sua terra.
Haviam apostado mais de uma vez na vida — e Mary Cooley acabava de perder dois dólares e onze centavos para a poeta que viajara no carro com a placa 211211, na companhia do cara ainda bem aprumado para a idade que ele aumentaria (segundo Marianne), caso ela perguntasse, com a indiscrição de Ann Arbor e de todas as cidades pequenas.
Para falar a verdade, Mary foi mais longe nas pesquisas. Precisou apenas do telefone, de um catálogo de Los Angeles e de dizer quem estava falando desde a fonte dos chiados telefônicos: a filha de Margaret Benton, aliás Maggie Murphy, a amante americana do general Zapata. Prometendo pelo menos duas entrevistas, que jamais seriam concedidas (pelo menos aos dois crédulos jornalistas da Califórnia), Mary Eppner Cooley obteve a informação que buscava naquele mesmo dia — tendo um dos jornalistas lhe prometido que enviaria cópias dos documentos autênticos da “inconfidência”, pelo correio.
Entretanto, o endereço que ela forneceu era tão falso quanto o número de telefone de Ann Arbor, e só se aqueles jornalistas viessem até a localidade, pequena e mexeriqueira, é que poderiam juntar dois mais e dois e identificar Mary Cooley como a falsa filha de Margaret Benton.
Até lá — e seja como o for — o fato é que já poderia dizer (agora com certeza), quem realmente era o fotógrafo das “histórias fantásticas” (e do anacrônico gramofone).
E Mary desconfiara desde o início, porque talvez fosse a maior mexeriqueira — ainda que benigna (se é que as “fuxiqueiras” podem ser divididas em malignas e boazinhas) — da cidade atenta às pequenas coisas, ao retorno da filha de Julie Alcott e à fuga do filho maltratado dos Trask, ao sobrescrito de carta voado para o roseiral do “Doc” (que estava precisado de um trato) e às encomendas doidas de Farrar, retardadas naquele mês tempestuoso.
O primeiro postal que Marianne enviou — de Guadalajara — continha só aquela frase meio misteriosa, em italiano: Arrivano a festa gia finita, quando si stanno spegnendo le luci…