Kreuzberg

Leia conto inédito de André de Leones
Ilustração: Isadora Machado
01/09/2020

… zum Ekel find’ ich immer nur mich?
Pichação em muro de Ceilândia, c. 1987.

Generais, penso chacoalhando o copo, os cubos de gelo derretidos quase que por completo, que não venha me falar dos generais, sempre uma gracinha, uma piada idiota, uma anedota, em geral quando está meio alto e indo embora, só para me encher o saco, sem falar naquela vez em que, muito bêbado, chegou a bater continência e dizer que não entendia por que eu não seguira os passos do meu pai, que eu ia ficar fofo fardadinho, pronunciando fóff, engrolando o nho, algo como:

— Iam vica fóff fardadinnm.

— Cuzão.

Bebo o pouco que resta no copo, mais água que whisky; nunca aprendi a beber esse troço como meus pais, embora eles entornassem coisas incomparavelmente melhores do que esse blended vagabundo. Claro, eu poderia comprar coisas incomparavelmente melhores, mas bebo por outras razões, razões que não são incomparavelmente melhores, mas são minhas, e isso basta. Por exemplo: o perfume da bebida corresponde ao cheiro de uma infância, minha e deles, talvez do país (quem sou eu para falar do país?), quando não era lá muito aconselhável fazer piadinhas sobre generais. Em todo caso, o cheiro dessa infância é algo que aprecio revisitar, mas não a qualquer preço; o blended vagabundo faz o que espero dele.

— Tudo pronto, seu João.

Parada ao lado do sofá, Danuza enxuga as mãos em um pano de prato e sorri, nervosa. Atrás dela, concentrada no cubo mágico, a criança funga e resmunga, ansiosa para obter uma resposta, qualquer que seja, do objeto. Melhor desistir, menina. As coisas só existem para nos ignorar.

— Senta aí. Eles devem estar quase chegando.

Ela concorda com a cabeça, mas dá meia-volta e desaparece outra vez cozinha adentro.

— Mas que porra.

Respiro fundo e olho para a televisão; Giulia Gam olha para mim. Toda novela é de época, costumava dizer a minha mãe, e até hoje não faço ideia do que isso significa; ela repetia essa frasezinha mesmo enquanto via Os gigantes ou Água viva. Eu me levanto no momento em que Danuza e a filha voltam da cozinha, a primeira trazendo uma bandeja com frios, a segunda abraçada a uma boneca enorme e loiríssima, e escolho acreditar que o cubo foi vencido e deixado para trás. Alcanço a garrafa, uma dose e meia, três cubos de gelo, e volto a me sentar. A menina, acomodada no outro sofá, permite-se capturar pelas capas, espadas e pangarés da novela; sempre me esqueço do nome dela, não do nome da novela, do nome da criança, embora quase tenha sido responsável por sua extinção uns poucos anos atrás. (Aborto só é pecado para quem não vai à feira.) Danuza meio sem-graça, perguntando o que eu achava da situação. Eu tenho uma opinião geral sobre toda e qualquer situação: é uma merda. Eu tenho outra opinião geral sobre toda e qualquer situação: melhor desistir. Eu tenho uma terceira opinião geral sobre toda e qualquer situação: foda-se. Então, naquela manhã há mais de três anos, eu disse:

— Que merda, hein? Não é melhor tirar?

— Mas a igreja…

— A igreja que se foda, Danuza. A não ser que o pai seja o pastor.

— Ele é mecânico e casado.

— Puta merda. Antes fosse o pastor.

Ela não achou graça.

— Você já contou pra sua mãe?

— Ainda não.

A mãe de Danuza trabalhou na casa dos meus pais até as pernas, a coluna e as vistas meio que implodirem; quando se tornou inoperante, foi substituída pela filha, que veio trabalhar para mim depois que os velhos morreram, primeiro o meu pai (derrame), depois a minha mãe (cavalo).

— Olha, se fosse você, eu tirava. Até pago o procedimento, se quiser. Tirando isso, não sei como posso te ajudar.

— Não me mandando embora?

— Isso nem me passou pela cabeça — menti. — Foi por isso que veio falar comigo?

— Foi. O que você pensou?…

— Sei lá. Que me considerasse um amigo.

Ela riu bem alto. Por conta dessa risada, repeti que não a mandaria embora e prometi um aumento. A menina nasceu saudável e, segundo Danuza, tão parecida com o pai que o sujeito vendeu a oficina e se mudou com a família para Alexânia. Eu não sei onde fica Alexânia.

— Homem é tudo covarde.

Impossível discordar. E aqui estão as duas, mãe e filha sentadinhas no outro sofá, e ficamos assim, expectantes, assistindo à novela de época. Daqui a pouco ouviremos o interfone. Daqui a pouco o negócio estará fechado.

— Eles devem estar quase chegando.

O general me deixou esse apartamento na Asa Sul, o que não é pouca coisa, claro, mas a pensão quem recebe é a minha irmã. Não falo com ela há oito anos, quase nove. Não sei por que penso nela agora. Sei que ainda mora em São Paulo. Vive com um obstetra ou dono de imobiliária ou desembargador (os relatos dos poucos conhecidos em comum e dos dois parentes com quem ainda mantenho contato são contraditórios, ou talvez eles apenas apreciem tirar onda com a minha cara). Sei que não se casou para não abrir mão da pensão. Quando a nossa mãe caiu do cavalo, quebrou o pescoço e morreu, eu me senti duplamente traído (o cavalo era meu e teve de ser sacrificado; minha mãe havia prometido que jamais o montaria); quando, lá mesmo no velório (da nossa mãe, não do cavalo), minha irmã me mandou à merda e disse que não repassaria um centavo sequer da pensão (nossa mãe sempre repassava doze e meio por cento para cada, aquela boa mulher), eu me senti traído mais uma vez. Não é que eu precise do dinheiro, mas é uma questão de princípios.

O interfone, afinal.

Eu atendo e depois me coloco diante da porta, copo na mão esquerda. Não olho para trás. Não quero ver a expressão no rosto de Danuza. Poderia me virar e encará-la e dizer que tudo isso foi ideia dela, que apenas fiz o possível para ajudá-la, que perguntei inúmeras vezes, no decorrer dos últimos dias, se era isso mesmo que queria, que fiz questão de lembrá-la do que aconteceu há menos de quatro anos, da outra escolha que fez. Uma escolha, depois outra. Meu pai costumava dizer que a vida é assim mesmo, você escolhe o que escolhe, e é preciso escolher com cuidado agora para reclamar (ou se foder) menos depois. Meu pai não era um homem muito inteligente. Bom, cordato, tranquilo, mas um tanto burro. Falava baixo demais para um general. Ensinou-me a gostar de cavalos, pelo menos. Em sua falta de imaginação, jamais conseguiria imaginar o tipo de escolha que uma pessoa como Danuza tem diante de si, quando tem. Não que isso faça muito diferença, claro. Eu, por exemplo, até consigo (acho que consigo), mas aqui estou, intermediando o negócio, ouvindo o som de duas leves batidas na porta. A primeira coisa que vejo são os olhos ansiosos de Linette, olhos que parecem ver através de mim, que já parecem fixos no que está lá atrás, no outro extremo da sala. Ela me dá um beijo na bochecha e já avança corredor adentro. Ficamos eu e Robert frente a frente. Estendo a mão, um aperto frouxo, e então ele pergunta, em alemão, quanto custa a dose. Sorrio, claro. Quando não fala de generais, Robert é um sujeito legal.

O casal se acomoda no sofá em que eu estava, os olhos vidrados de Linette e os olhos baços de Robert. Sirvo a dose que ele pediu; Linette balança a cabeça, não quer nada. Puxo uma cadeira e me sento, fechando uma espécie de semicírculo, duas pessoas em cada sofá e eu sozinho num dos flancos; a garrafa, pelo menos, está ao alcance da mão. Bebo um gole, depois outro. Pergunto a Robert, em alemão, se ele quer mais gelo.

— Estou bem — ele responde, em português.

Como se soubesse do que é que se trata a reunião, a menina se achegou à mãe e permanece imóvel, olhando para o outro lado da sala, através de mim; todo mundo hoje está olhando através de mim, Linette para a criança, Robert para o whisky, a criança para o nada. Todos, exceto Danuza, que olha para a televisão. Telejornal. Eleições. Penso em dizer alguma coisa, xingar um ou outro candidato, o velho gagá, o sindicalista, o cheirador; qual é mesmo a palavra alemã para cheirador? Linette, então, começa a se dirigir à menina. Pergunta sobre a boneca, é sua filhinha? A menina não responde. Contenho o riso. Ninguém toca nos frios. Filhinha. Fico em silêncio. Fiz a minha parte. Fiz o que Danuza me pediu. Fiz o que Linette me pediu. Fiz o que Robert me pediu. Se a criança me pedisse alguma coisa, eu faria também. Mas o que ela pediria? Não está em posição de pedir nada. Um copo d’água, talvez? Um pouco de guaraná? Uma carona para o Setor O? Não tenho guaraná na geladeira. Penso em Danuza me pedindo ajuda semanas antes.

— Será que você podia me ajudar num negócio?

Foi poucos dias depois do meu aniversário. Houve um jantar, Robert, Linette, alguns colegas de trabalho, dois vizinhos. Paguei um extra para que Danuza cozinhasse. Então, quando a festinha já se encaminhava para o fim e Robert balbuciava uma comparação absurda entre Leóstenes, Röhm e Figueiredo, Linette começou a choramingar sobre todos os esforços que fizera para engravidar, tratamentos no Brasil e no exterior, sete anos de tentativas, três abortos espontâneos, daria tudo para ter uma criança, um braço, uma perna, tudo, qualquer coisa. No dia seguinte, logo cedo, Danuza veio falar comigo sobre o tal negócio. Liguei para Linette, que topou de imediato (ingênuo, perguntei se não queria conversar com Robert primeiro, pensar um pouco a respeito; ela riu; as pessoas estão sempre rindo da minha cara). O resto foi acertado entre as duas, sem mais intermediações, e aqui estamos. Não é ótimo quando as coisas funcionam para todo mundo? Pensando nisso, sirvo outra dose para mim. Robert ainda não terminou a dele. Linette está falando algo sobre a mudança. Um belo cargo na sede do banco. Londres. Daí o desânimo de Robert. Ele adora o Brasil. Na verdade, desde que o conheço, nunca ouvi Robert dizer que adora qualquer outra coisa além do Brasil. Incluindo Linette.

— Você está salvando a minha vida pela segunda vez — ela me disse ao telefone, depois que parou de rir. Eu explico: há quinze anos, em Berlim Ocidental, Linette quase morreu sufocada com o próprio vômito. A festa num apartamento em Kreuzberg, pintores e escultores que não pareciam pintar nem esculpir muita coisa, Linette desmaiada em um dos quartos. Por sorte, eu passava pelo corredor, a caminho do banheiro, no momento em que ela golfava terrivelmente; tudo o que fiz foi virá-la de lado. — Nunca vou me esquecer disso.

— Kreuzberg — digo, distraído, olhando para o copo de whisky. Robert é o único que ouve. Em alemão, comenta que o bairro melhorou bastante. Fala por falar, e não pergunta por que isso me ocorreu agora, por que estou pensando em Kreuzberg. Então, eu me lembro de uns protestos violentos ocorridos por lá um tempinho atrás, fogo e pedras e gás lacrimogêneo, dezenas de pessoas presas. — Não teve alguém que se matou sob custódia da polícia?

Robert abre um sorrisinho e entoa: — Heraus zum revolutionären 1. Mai.

Na minha última viagem à Alemanha, um folheto esquecido sobre o balcão de um bar lotado. Ergo o copo e digo para Robert: — Die Revolution ist großartig, alles andere ist Quark.

Brindamos. Alheia, Linette só tem olhos para a menina, que enfim começou a responder algumas das perguntas. Danuza segue concentrada na televisão. Não acho, evidentemente, que estou salvando a vida de ninguém, muito menos de Linette. Eu e ela nos conhecemos na faculdade, em Berlim, e fomos inseparáveis naqueles anos. Depois, fui para Chicago e ela, para Londres, onde conheceu Robert. Nunca perdemos contato. Fui a Lucerna para o casamento deles. Padrinho. Só vieram para o Brasil em oitenta e quatro, quando meus pais já estavam mortos e eu, concursado. Jantares uma vez por semana, ligações quase todos os dias. Fiquei triste quando ela me contou que estavam de mudança. Robert, esbirro da embaixada suíça, explicou que ainda ficará por uns meses.

— Não é tão simples conseguir a transferência, sabe? — pela expressão no rosto quando me falou isso, na semana passada, imaginei que, além do mais, ele talvez não esteja se esforçando tanto assim para seguir os passos da mulher. Os meus ele segue, como sempre: estende o copo vazio e pede outra dose, exagerando uma careta. — Não é possível que um funcionário do BC não consiga comprar coisa melhor.

Encolho os ombros. Só não comece a falar das porras dos generais, penso.

— Vamos até a cozinha? — Linette sugere a Danuza.

Robert pergunta quem eu acho que vai ganhar a Copa América. Sempre que ficamos sozinhos, falamos sobre futebol. Ele é torcedor do Luzern, que acaba de vencer a liga suíça pela primeira vez. Eu digo que vou torcer pelo Uruguai. A menina olha para mim com uma expressão vazia, muito parecida com a da boneca que segura no colo feito um bicho de estimação. Do Setor O para Kensington. Sinto vontade de parabenizá-la. Minutos depois, as duas mulheres voltam da cozinha. Olhos vermelhos, caras inchadas. Retomam os lugares de antes. Sirvo uma dose para Linette, sem gelo. Ela bebe de uma vez. Danuza não bebe, mas ofereço mesmo assim. A cabeça diz: não. A menina olha para a mãe, depois para Linette. Ou melhor: olha para Danuza, depois para a mãe. Contenho o riso. Ela ajeita a boneca no colo. Robert pede licença, vai ao banheiro, volta. Sirvo outra dose para ele. Linette recusa a segunda e me devolve o copo vazio, suado. Ninguém toca nos frios. As rodelas de salame, as fatias de presunto de Parma, os queijos cortados em cubos, as azeitonas pretas como os olhos da menina que, mais uma vez, olha através de mim. Peço licença, vou ao banheiro, volto. Então, Linette pigarreia e diz (em alemão) que é hora de ir embora, e que dali a alguns dias Danuza viajará com elas para a Inglaterra a fim de ajudar na transição (Überleitung), se eu não me importar.

— Eu? Imagina. Não me importo com nada.

Depois que todos vão embora, desligo a televisão, ligo o som (“I feel your pain and I survive”), abro outra garrafa de whisky, tiro os sapatos, estiro-me no sofá e xingo Robert mentalmente porque ele não deu descarga após usar o banheiro e também porque, ao se despedir, meio bêbado, olhando para a foto do meu pai que mantenho na estante, o velho porta-retratos ovalado, ele me puxou pelo braço e disse, muito sério:

— Eu acho que Cipião aceitou suborno de Antíoco, sim. E você?

E foi embora gargalhando.

André de Leones

Nasceu em Goiânia (GO), em 1980. É autor dos romances Eufrates (José Olympio, 2018), Abaixo do Paraíso (Rocco, 2016) e Terra de casas vazias (Rocco, 2013), entre outros. Página pessoal: andredeleones.com.br.

Rascunho