Uma criança escrevia sozinha. Como ninguém ia ler, escrevia o que queria, que muitas vezes era um certo dia o maior leão da floresta foi morto pelo célebre corsário John Flakeman etc. Mas outras vezes era klo klo klo klo, ou arghghghghghgh.
Vinte anos depois ele escreve penosamente no word uma história que já não é do maior leão da floresta, o maior leão encolheu do tamanho de montanha que tinha até virar um advogado amarfanhado e nasal, que é uma cópia dele, dele o escritor. E o célebre corsário perdeu o nome com que tinha aterrorizado a Costa do Marfim, John Flakeman, e agora se chama Zé Marcos e é viciado em crack.
O escritor suspira e faz o Zé Marcos andar de cá para lá, mas o Zé Marcos não se mexe com a graça (“felina”) com que John Flakeman se movia, e sabe disso; Zé Marcos tem a nostalgia de John Flakeman. Zé Marcos é constantemente degradado pela memória de John Flakeman; obrigado a andar por ruas que não são as “vielas úmidas de Maracaibo, onde a vida humana vale menos do que uma bujarrona”; obrigado a fumar crack ao invés de beber rum; e mais: com saudade do mar que, nesta encarnação, nunca vai ver.
Zé Marcos abaixa os olhos quando passa por alguém nas calçadas mijadas em que é forçado a viver pelo escritor. Enquanto anda cambaleando, tem uma lembrança vaga de que no passado olhava as pessoas “com olhos negros como a asa de um corvo, e penetrantes como um kriss malaio”. “Um dia”, pensa Zé Marcos, “matei um leão”. Ele odeia o escritor/advogado que sem ânimo algum o transformou de John Flakeman, o “homem mais terrível da frota de Sua Majestade”, em Zé Marcos, o viciado em crack. Leia os lábios de Zé Marcos e verá que ele está dizendo “viado” para o escritor.
Mas o escritor sabe disso. Ele sabe de tudo: pois se foi ele que fez Zé Marcos dizer “viado”. E de repente ele pára de escrever no word e vai até o armário, de cuja prateleira mais alta tira um caderno velho.
A espiral do caderno enferrujou e a tinta evaporou um pouco, mas lá está a sua letra de criança, grande e gorda: klo klo klo klo klo — arghghghghghghgh AS AVENTURAS DO CORSÁRIO NEGRO (mas John Flakeman não era negro; só se vestia de preto). Sentado no chão, o escritor relê a história de John Flakeman até que a má posição o faz parar.
Que nostalgia, que nostalgia. Como gostava de escrever naquela época. Ainda lembrava do cheiro da tinta da caneta.
Era mais divertido escrever naquela época, porque ele não se importava com o que ninguém ia dizer. A liberdade era completa: se queria escrever sobre um corsário, escrevia; se queria escrever algo sem sentido — não só klo klo klo, mas também trechos de jingles, piadinhas infames, e arghghghgh — ué, escrevia. Booooooooooo. Ppa ppa. Ouça os sinos dos mamilos do padreco: são por ti? Olha na gaveta: dobrei direitinho os sinos. Gla gla gla glaaaaaa.
Voltou ao word e escreveu jjjjjj, ptut, ptut. Mas isso não tinha muita graça.
Depois viu o trecho em que tinha parado — Zé Marcos cambaleando numa calçada, era só o que ele fazia — e o desânimo que sentiu em continuar aquela história foi sucedido, sem intervalo algum, pela decisão de mudar tudo, tudo.
***
Dez minutos depois Zé Marcos estava numa planície africana, e mal acreditava que o seu nome era John Flakeman de novo. Suas roupas pretas tinham ainda as marcas brancas do sal do mar. Seus olhos eram altivos como os de um príncipe cigano, e vigilantes como os dos abutres brancos que infestam a ilha de Kala-Kuit.
Eis que na sua frente o que parecia uma montanha era um gigantesco leão, cujo dorso estava coberto de placas de sangue seco do tamanho de caravelas. “Nwambi, meu rifle!”, disse, com calma estudada, o homem que metade da África conhecia como O Diabo do Mar. Klo klo klo klo klo arghghghgh aaaaaaaaaaaaaaaaaa.