1
Não sei o que me passou pela cabeça quando decidi que iria pedir a opinião de Júlio sobre o que eu andava escrevendo. O livro ainda não estava pronto. Pelo menos, não pronto para ser mostrado a ele. Júlio é mordaz, tem um grau de exigência que beira a soberba. Não gosta nunca do que lhe mostramos. Quando eventualmente gosta, então se descompõe em elogios exagerados. Nesses momentos, a indiferença permanentemente fixada nos olhos dele ganha um quê de humanidade, um brilho sutil de decadência que nos encanta.
Na verdade, escrevemos todos para Júlio, nosso leitor predileto. Escrevemos para agradá-lo. Ou melhor, para fazê-lo perder a pose empertigada que é sua marca. Ninguém admite, mas alguns chegam a analisar cuidadosamente o pouco que obtém a aprovação dele, para depois imitar e tentar repetir a façanha.
Assim passamos os dias, às voltas com Júlio, com o bom gosto e a prepotência de Júlio, mesmo quando não estamos com ele.
Dessa vez foi diferente. Não pensei em Júlio enquanto escrevia. Não quis saber se uma ou outra construção seria do agrado dele, se uma tal metáfora teria o poder de surpreendê-lo. Pela primeira vez em anos, escrevi o que me veio à mente, livre daquela prescrição doentia. Catei as histórias e desenvolvi-as com sofreguidão. Passei noites em claro, deixei que brotasse tudo, só desligava o computador de madrugada, quando sentisse o vazio bom de ter preenchido as páginas com o que havia de melhor em mim. No outro dia, passado o transe, ligava a máquina e testava meus escritos. Essa era a prova de fogo. O que escrevo com avidez à noite quase nunca sobrevive à manhã seguinte. Ainda funcionava. Achei que tinha aprendido o jeito, que encontrara finalmente aquilo que Júlio tanto nos cobra: a audácia de sujar as mãos quando se pretende escrever para a posteridade.
Não cometi a tolice de descartar as revisões. Depois de ter gerado os dez contos, lapidei-os à exaustão. Mas no fundo eu sabia que eles ainda não podiam ser dados ao mundo, muito menos ao crivo de Júlio. A decisão fora irrefletida, eu agora estava com medo. Uma opinião desfavorável dele, a essas alturas, teria o poder de uma sentença de morte. Eu já amava meus rebentos. A dúvida, portanto, era saber quem sobreviveria ao embate.
Não quis entregá-los pessoalmente. Deixei-os com o porteiro, pedindo que ele não demorasse em se despachar da incumbência.
Pode subir, seu Júlio está em casa.
Justo o que eu queria evitar.
Não posso, tenho pressa. Faça-me a gentileza.
Olhei com ternura para o envelope pardo, para a letra graúda com que grafei o destinatário, e dei-lhe as costas. Deixei o prédio como se tivesse mesmo algum assunto premente a tratar, como se a minha vida não se limitasse a ler e construir histórias, ou como se uma delas estivesse naquele exato momento na urgência de vir ao mundo. O homem talvez tenha acreditado na mentira. (Eu poderia ter pensado que a rotina de quem faz ficção é produzir grandes mentiras, e que, portanto, numa tão singela certamente eu não falharia.) Não pensei, só queria sair dali o mais rápido possível. Queria esquecer que estava traindo minhas crianças, dando-as à palmatória sem que as tivesse preparado para isso. Queria também esquecer que mais tarde Júlio me ligaria, pois ele é sempre muito solícito em atender aos amigos, mesmo quando for para arrasá-los.
Júlio faz poesia mas não publica. Decerto julga-se bom demais para ficar exposto numa prateleira de livraria. Até hoje, não li mais do que uma dúzia de poemas que ele tenha produzido. A poesia não é minha seara, não posso opinar com convicção, embora Júlio me tenha uma vez confiado seus trabalhos e pedido meu julgamento. Dei-o a contragosto, mas penso ter-me saído bem. Ele me ouviu com interesse e, desde então, passou a me devotar uma atenção especial e que me constrange agora perante os outros. Nem sei quais autores ele realmente aprecia. Cita-os às pencas, enquanto faz poucos elogios. Suas considerações desconhecem adjetivos, quase todas vêm sem emoção. Talvez por isso seja tão compensador vê-lo descomposto, e tão duro ouvir sua crítica.
Não posso me queixar do meu desempenho. Há anos escrevo e publico com regularidade. Ganhei uns comentários elogiosos, as cifras são consistentes, meu editor está satisfeito. Nunca freqüentei as listas dos mais vendidos, o que, em certa medida e na opinião de Júlio, é uma boa referência. Mas admito que meu sonho era estar entre eles. Não só isso, queria também o incenso da crítica. Algumas vezes chego a pensar se esse improvável casamento não seria o desejo íntimo de qualquer escritor. Meu, pelo menos, ele é.
Só uma vez consegui tocar Júlio. Quando lancei meu primeiro livro, mandei-lhe o convite para a sessão de autógrafos sem esperar que fosse aceito. Para minha surpresa, ele apareceu. Primeiro a chegar, como descobri depois ser característico. Nunca antes fôramos apresentados, embora eu já o conhecesse pela fama. Exultei. O fato de Júlio ter prestigiado o lançamento automaticamente me elevava da condição de simples aspirante à carreira. Dias depois, recebi o telefonema, Júlio me convidava para um encontro de escritores em seu apartamento. Mal pude controlar a excitação pela novidade, era o que faltava para meu ingresso definitivo no meio. Ao chegar e cumprimentar o grupo, nova surpresa. Júlio elogiou-me com veemência, disse que eu era a grande revelação literária daquele ano e que muito ainda ouviriam falar de mim. Os olhos dele faiscavam, eu pensei que meu novo amigo estivesse embriagado. Soube mais tarde ser aquela visão o que todos ali perseguiam e que eu, sem querer, conseguira a proeza já na chegada.
Depois disso nunca mais. Há anos tento, há anos Júlio diz que o melhor está no começo, há anos escrevo pensando nele e para ele.
Alcancei a rua e caminhei como se fugisse. Na realidade, eu fugia, só não sabia ainda de quê. Júlio mora longe, o melhor teria sido voltar de ônibus ou táxi. Preferi caminhar, tentando expiar uma culpa no exercício. A leviandade não fazia justiça ao trabalho que tive ao produzir os contos. Coloquei-os a perder com a minha precipitação. Depois que Júlio os considerasse execráveis, eu não teria como catar seus pedaços e colá-los para formar outras peças. Seriam guardados, inteiros e indevassáveis, num arquivo onde junto o que descarto, e jamais retornaria a eles. Seria o fim da nova fase, mas não haveria outra solução.
Sentia frio, mesmo que andasse quase a correr. O inverno despontara mais cedo nesse ano, com muito vento e súbitas mudanças de humor. Quando me dei conta, já chegava em casa, tinha feito o percurso em pouco mais de meia hora.
Não quis entrar logo, perpetuando assim minha ansiedade. Na rua talvez pudesse encontrar alguma distração; no meu conhecido e solitário apartamento, isso não seria agora possível. Começava a me cansar da caminhada. Mesmo assim, passei pela entrada do edifício e segui.
Andei mais um pouco a esmo, o suficiente para me resignar com a perspectiva angustiante da espera. Não era mesmo possível ficar vagando indefinidamente. Voltei, liguei o computador e decidi ver, pela última vez, os dez contos. Li então na tentativa de que eles me mostrassem o quanto ainda valiam, que me dessem provas de que eu poderia entregá-los ao mundo a despeito da opinião desfavorável de Júlio ou contra qualquer outro argumento.
Pouco depois de ter chegado ao final, Júlio telefonava.
2
Ninguém acreditaria se eu confessasse o quanto incomoda saber que todos me têm por arrogante. Queria ser mais simples do que sou, mais parecido com todo mundo. Queria de volta a ingenuidade que eu tinha quando fiz as primeiras leituras, isso há séculos. Tudo então era novidade, qualquer história me empolgava. Concluo hoje que ter lido tudo o que já li durante esses muitos anos de leitor compulsivo pode ter-me rendido um certo malefício. O que sou e sei aprendi nos livros. Agora que dificilmente algo me comove, passei a depender dessa emoção. Não é à toa que volto com insistência aos meus livros preferidos. Releio-os sempre, como um viciado que não consegue viver longe da droga. Mas as paixões antigas começam a dar sinais de fadiga, enquanto as novas vão-se tornando a cada dia mais difíceis de serem encontradas. Esse é o problema e a minha tristeza. Talvez venha também daí o que chamam de arrogância, pois raramente me satisfaço com o que me trazem, e eu nunca soube mentir nem silenciar. A realidade é que sofro a cada nova frustração.
Há muito, ter de opinar tornou-se a minha sina.
Não sei por que tantos querem saber a minha opinião, se ela é desfavorável na maioria das vezes. Estou sempre rodeado por gente que escreve, mas não faço concessões a nada ou ninguém. Nem mesmo os poemas que eventualmente componho me parecem dignos de ser publicados. Sou o meu crítico mais severo, o que talvez seja o maior benefício que faço aos outros.
Ao contrário do que possa parecer, gosto dos novatos, desde que eles tenham um mínimo de consistência. Adoro vê-los alvoroçados, esperançosos de trilhar a melhor das carreiras a partir do primeiro texto. Eles sempre me contagiam com seu entusiasmo. Fica difícil manter a frieza necessária para fazer todas as ponderações que merecem ouvir. Então, às vezes, me permito relaxar um pouco e alimentar a vaidade deles. Essa é a única reverência que sei fazer ao que realmente amo.
Depois dessa pequena tolerância, não mais os poupo. E por que deveria? Quero que eles progridam e que cheguem um dia a me surpreender de verdade. Os exitosos terão a droga; eu, sempre o vício.
Tenho hoje outra paixão além da literatura, mas que anda de braços com ela.
Havia muito me afastara dessas paixões, tão mais vulneráveis que a perenidade dos livros. Seguia então minha vida já sem me preocupar com o assunto. Houve uma sessão de autógrafos, alguém lançava a primeira obra. O convite recebido, um belo título, a foto no jornal, quis conhecer pessoalmente quem conseguia me atiçar à distância. Do que se tratava, isso agora não era importante, mais tarde eu descobriria. Cheguei cedo, como sempre. Se é difícil para mim mudar um hábito, dessa vez um outro interesse também colaborava. Esperava-me um sorriso limpo, incrédulo, despercebido do que me levara até ali. O modelo era superior ao retrato. As mãos nervosas, inseguras ao escrever a dedicatória, a energia da juventude abalando minha madureza convicta. Não era mais para ser, mas foi.
Dias depois promovi uma reunião de escritores, pretexto apenas para atrair o jovem talento ao meu convívio. Tentei ser o mais simpático dos seres, fiz todos os elogios possíveis, provoquei a estranheza nos velhos conhecidos. Nasceu a amizade, mas nunca senti que prosperasse algum sentimento recíproco ao meu. A diferença de idades também me inibia. Mostrei meus poemas, que sempre mantive longe de outros olhos. Quis me acercar e não sabia como.
Ela nunca percebeu e sempre me tratou com toda a deferência. Para minha tristeza, virei uma espécie de mestre. A mim Lívia recorre com freqüência para as avaliações de praxe (essa é de fato minha sina). Ela evolui a olhos vistos, mas não dou o braço a torcer. Quanto mais cobro, mais ela se esforça, uma espécie de vingança. Não me censuro, pois sei que Lívia cresce com isso.
Hoje recebi seus últimos contos. Estão excelentes, há tempo não lia nada igual. Se eu não resistisse à vontade de elogiá-los, perderia a oportunidade de fazê-la sofrer um pouquinho e também de instigá-la a um vôo ainda mais alto. Liguei para Lívia há pouco e mais uma vez faltei com a verdade.
Tenho a certeza de que, apesar da minha crítica, Lívia continuará publicando. Ninguém me leva realmente a sério. Nem ela.