Poemas de Jorge Ariel Madrazo

Leia os poemas traduzidos "Em seu planeta de liberdade", "Prelúdios", "Acaso o boi suspeita?", "Raiz desenterrada", "Na radiografia", "Frágil equilíbrio"
01/11/2009

Tradução: Ronaldo Cagiano

Em seu planeta de liberdade

Ela se sente — às vezes — só. Ungida
por cálices antigos, por
hospitais
e terrores marinhos.

Ela oculta o fervor das coxas,
os seios oferendados
ao decreto do
instinto.

Ela, a que preside
a velocidade
habita as planícies do ar
monta potros
sem freio nem
cabresto.

Ela desdenha
todo o limite
propício à
mutilação.

Deita-se
com os reis do planeta.

É desvalida, inédita, implacável.

Prelúdios

Há que acender
a dura pedra
elevar o grito
no bosque
onde
te cerceiam a língua

Ser um pássaro
morto
não obstante um pássaro

Porque este rio não corre
duas vezes e tampouco tu
és o mesmo
da primeira vez

Acaso o boi suspeita?

cego de um ou outro olho
o jugo sobre as pesadas costas
que é sua marcha um inferno circular
moenda, carrossel, rodar de engrenagens
até que flua dourado da
pisada
a aguardente que amorteça
tamanha, antiga e desolada sede?

Raiz desenterrada

em áspero azar sem
amparo
cantiga insubordinada do por
vir
raiz de uma linhagem
reencarnadora
onde serás
teu próprio filho

sua insônia
no nada infinito.

Raiz de teu ser sendo
(única forma em que este sonho
sonha)
E deverias partir
amanhã  agora mesmo
até a fiel
raiz

Raiz ou
brotação
de fervente podridão

raiz tua onde vigiem
a voz
o silêncio
o verme.

Na radiografia

teus pulmões:
poliedros  florescências
lactantes sombras grânulos
de cereal de arroz de
café
na insaciada moagem. Irrompe
ar no escuro
descalçam
teus alvéolos para ingressar
na mesquita:
a mesquinha prisão
corporal.

E, translúcido nas trevas, o
eclipsado
ônix — por assim dizer — o coração,
teu outro eu que na sombra acontece
dissolvendo bordas de fingida
identidade

apagando-te na absurda contraluz
insinuando que teu
humano
porvir

cabe numa
radiografia
insone

Frágil equilíbrio

o balançar do branco
grão de arroz na beira
do prato, o arroz que oscilou
até cair sobre ele na mais
asseada toalha. Se fosses Marcel

Proust, tal fato bastaria talvez
para evocar a infância, e fazer
do prato: porcelana de Limoges,

do arroz, madalenas no chá,
revestindo assim de eternidade
a um dia, como todos, prescindível.

Jorge Ariel Madrazo
Nasceu em Buenos Aires (1931). É jornalista, poeta, contista e tradutor. Publicou, entre outros, Ordem do dia (1966), A terrinha (1974), Espelhos e desterros (1983), Corpo textual (1987), Cantiga do outro (1992), Janela com Ornella (1992) e A mulher equivocada (2006). Integra a comissão editorial das revistas El perseguidor (Argentina) e Tríplice (Chile).
Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases (MG). Formado em Direito, está atualmente radicado em Portugal. É autor de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), O mundo sem explicação (Poesia, Lisboa, 2018), Todos os desertos: e depois? (Contos, 2018) e Cartografia do abismo (Poesia, 2020), entre outros.

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