Jerusalém

Conto de Edmar Monteiro Filho
01/06/2002

“E estenderam-se pela superfície da terra, e cercaram os acampamentos dos santos e a cidade querida” (Ap.20,8)                                                                                             

Um esquálido menino monta guarda, alheio aos ares infeccionados. Diuturnamente vigia-se do alpendre. Agora é Haniel quem vela, com sua espada de fogo, seus pés roídos, seus cabelos encaracolados em completo alvoroço. É mesmo um velho sobrado, e o portão está cerrado à tranca, mas é preciso estar alerta. A escuridão fareja a casa.

Revezam-se as sentinelas, revezam-se as luzes na rua. Lá dentro, a luz permitida é o espectro de uma vela. Velam dois olhos no alpendre. Ao redor de rota mesa reúne-se a confraria. Confabulam em voz baixa, com seus gestos desajeitados, sem controle.

Gabriel tosse muito e tem as mãos em feridas. Rafael cobre os olhos sem cor na presença de espelhos e da luz. Izael, debruçado na apatia, inventa um jogo, revirando um baralho de estranhas figuras. Mathias assobia uma canção cujas notas fazem descascar as paredes. Ezequiel corta-se à faca e coleciona as cicatrizes. A todos doem as costas. As asas despencam. Às vezes, um riso, mas se desfaz, como um cisco.

Na velha casa a água sabe a ferrugem, por isso os lábios secam, a garganta se fecha. Um motor ruge lá fora, o madeirame estala: um sobressalto. Uriel volta a falar de um quarto, certa vez. Havia os lençóis e o cheiro da mulher. Simão anota sofregamente. Gabriel sacode as mãos, lembra-se de lugares, de mares, de multidões; é capaz de manipular as lembranças e todos vêem os rostos, ouvem as vozes, passeiam ao redor das árvores. Urias tem conhecimentos de magia, mas os demais não confiam nele. Sebastião conta que permite que os homens o vejam e toquem, e Mathias admite que costuma falar-lhes usando sua voz.

As moscas procriam em silêncio nas poças d’água.

Aristeu ousa sair, olhar as vitrinas na cidade. Possui um rádio e não vigia do alpendre. Não sente o medo que os outros escondem. Dizem que Aristeu é a escuridão

Edmar Monteiro Filho

É autor de Às vésperas do incêndio e Aquários, no qual o conto Jerusálem foi publicado.

Rascunho