Pombas!
Nas telhas urdidas
o dia lacrimoso
aplica um espelho.
E sobre a placa brilhante
está uma pomba
a cochilar.
Um pomba,
não um pombo
que porém chega volteando
a cortejar
no telhado espelhado,
no espelho entretecido,
a cortejar, a voltear
a pomba que
acordada
passa-passeia
agora fugaz
daqui-ali
dacolá-pra-cá
em sobe-desce
circular
copiado pelo brilho
urdido do telhado.
Até que
em vôo rasante
as duas imagens
se somem
do espelho do telhado,
deixando o dia
a cochilar.
Parábola
da intenção ao cisco
minha mão numa parábola
da dor ao olho
meu
e não alheio
olho e leio:
é uma trave
nos olhos um cisco
que atravessa os tempos
e desafia as leis da força
persisto no esforço:
da intenção ao cisco
e do cisco à frustração
minha mão
numa parábola
caminho do mistério
com o espírito no foco
e o corpo na fábula
da parábola ao olho
cai a trave
o cisco fica
Esta noite
Esta noite sonhei um andamento de bonde
por trilho encharcado.
No horizonte de uma ave o barulho do bonde chegava.
No horizonte do bonde a ave decolava.
Sobre a água
amarela
amarelo-solidão.
Volto em vagão de mortos
no séquito de meus corpos passados.
Abro as janelas, e por elas
o vento se rejubila
com o cheiro de ontem.
Não cheguei.
Fiquei no futuro.
Poesia da pia
Pateticamente
a lata de purê de tomate
abre a cabeça à base
infinita da torneira,
e a torneira ejacula
3 notas diferentes,
repetidas, tidas, idas
que ecoam e escoam pelo esgoto.
Um trapo
retorcido/esfregado/esmaecido
está entregue a seu odor de moribundo.
Facas, pratos e colheres
se estiram preguiçosos:
do teto a luz lhes pisca.
O mármore (único proparoxítono competente)
resiste, fica e dorme.
O resto jaz
sobre ele inconsciente.
E eu caio dos limites desta pia
para o mundo,
carregando em meus ouvidos
3 gotas diferentes
que a torneira entrega ao ralo
repetidamente.