Istmo (ou triste fim de Hitlodeu)

Conto de Paulo Sandrini
01/03/2005

Em períodos de maré baixa, que são raros nestes tempos, é possível atravessar o istmo, sair da ilha e buscar algum tipo de passatempo na conurbação pobre e suja que começa a se formar na planície litorânea ou subir pela antiga, única e secular trilha dos desbravadores até a maior, mais dinâmica, rica e muito mais suja conurbação formada no alto da serra, no exato ponto onde começa o primeiro planalto.

Atravessar o istmo no lombo de um eqüídeo raquítico e claudicante, como sempre faço, não é tarefa fácil. Essa passagem artificial (nossa maior obra até hoje), construída para dar acesso ao continente, possui revestimento feito de pedras muito irregulares, cheias de limo na superfície; além de ser estreita, estreitíssima, por medida de economia. E para quem não sabe nadar, como eu, fazer essa travessia é sempre um desafio dos piores por ter o mar, entre a ilha e o continente, uma profundidade considerável e sua massa líquida de cor escura estar quase sempre a golpear as rochas com veemência, muitas e muitas vezes chegando a tragar quem por ali se arrisca.

Nós, habitantes da ilha, sempre demos nossas escapadas para o continente. O tédio é o único a nunca deixar essa faixa de terra cercada de tubarões por todos os lados. Porém, se detectada uma doença trazida de fora e que se prove ter sido adquirida por alguém durante essas escapadas para o continente, o indivíduo portador é logo jogado aos tubarões — para isso nem há julgamento. Eu mesmo perdi meus pais dessa forma. Nunca cheguei a contestar. Contestar não é o nosso forte. Uma coisa que por aqui respeitamos espontaneamente, sem necessidade de lei ou punição, é o fato de nunca exagerarmos na dose de entusiasmo com as experiências fora da ilha. Seguimos fiéis a esta máxima: O território limite para a sua exultação é você, não o exorbite. E assim seguimos, sempre carrancudos no trato diário de uns com os outros. Dentro dos limites da ilha, toda e qualquer forma de euforia é desprezada, que fique dito, redito e afirmado.

Muitas vezes pode até não parecer, mas todos viemos viver aqui por vontade própria. Somos parecidos, afinal. Mas isso não significa que eu não seja um daqueles que já se arrependem de ter vindo para cá. No começo, havia a esperança de uma vida mais harmônica numa sociedade dotada de maior senso ético. Ética em excesso que culminou em outros excessos por não nos permitir mais dar um passo ou puxar o oxigênio para dentro dos pulmões sem antes fazer um exame de consciência. Excesso de respeito mútuo. Excesso de integridade moral. Excesso de fraternidade. Excesso de limites na convivência. Excesso de seriedade. Escassez de risos, que por aqui são considerados como que uma invasão e uma afronta à sisudez alheia. Enfim, excesso de rigidez hipócrita que culminou num aprisionamento à moral e engendrou distúrbios de ordem psicológica dos mais insólitos e, em conseqüência disso, os crimes mais disparatados e hediondos. Um dos últimos e piores foi o da senhora ruiva e gorda que insistia em andar pela ilha a cumprimentar com um leve, um delgadíssimo sorriso e a fazer elogios a quem encontrava pelo caminho. O problema não era o cumprimento em si, mas o riso e os elogios. Resultado: a senhora adiposa do cabelo de fogo foi encontrada dependurada no coqueiro central com a boca costurada e uma cirurgia grosseira na face para que os músculos lhe ficassem todos esticados e com isso seu riso ficasse ininterruptamente estampado na face até virar pó. Não discorrerei sobre outros crimes para evitar engulhos. Em conseqüência desses crimes hediondos foi que se resolveu eleger uma autoridade, coisa que nunca havíamos tido até então. Com o alcaide eleito, veio o inevitável autoritarismo. Após três eleições, o mesmo alcaide continua no comando. Contudo, ninguém quer se incomodar com cargo de responsabilidade. O alcaide finge dar conta dessa responsabilidade e nós, habitantes comuns, fingimos acreditar. Crimes, entretanto, ainda acontecem, apesar da Guarda Insular (instituída pelo alcaide já em seu primeiro mandato) ter se mostrada truculenta na abordagem a suspeitos e a reais criminosos (hoje comuns na ilha).

Verdade é que por aqui nada funciona direito. O calor é intenso e trabalhar, em tal condição, está longe de ser prazeroso. Preferimos por isso utilizar, na maioria do tempo, os recursos naturais da ilha. Contudo, nada fazemos para que eles se renovem. Nem peixes mais há em nossas águas, só os exasperados tubarões, dos quais não suportamos mais o gosto da carne. Isso justifica toda essa escassez por aqui e o fato de termos de ir ao continente para nos abastecer. Desde o começo isso sempre foi proibido. Hoje em dia, contrariamos bastante essa proibição. Para os alimentos que trazemos do continente se faz vista grossa, totalmente grossa. Já com os objetos, a coisa é bem severa por serem tomados como símbolos ostensivos da influência do continente em nosso dia-a-dia, coisa inadmissível! A punição? Pergunte aos tubarões. Por isso é muito comum ver espalhados na praia do continente que dá acesso ao istmo brinquedos, jogos eletrônicos, CDs, relógios, tênis — uma infinidade de artigos. É comum ver também os habitantes da ilha em seus últimos contatos, lá na praia, com tais objetos antes de retornarem para casa, tendo de abandonar tudo ali para que a maresia cuide de estragar. Os adultos, nessa hora, choram mais que as crianças. Dizer que choram mais, na verdade, não seria correto, pois as crianças não chegam sequer a chorar. Os adultos, além de chorar, chegam a espernear. Gritam quando têm de deixar um aparelho de TV, um CD player ou um computador lá jogado na areia. Já as crianças, que naturalmente não sentem atração alguma pelas coisas do lado continental por todas terem nascido na ilha, não fazem escândalo algum, mesmo quando os pais insistem em querer provar a importância dos objetos, recorrendo para isso, em alguns casos extremos, mas já comuns, ao espancamento. Coisa que as crianças ficam sem entender direito, mas nem assim choram, apenas fazem cara de espanto e deixam as palavras exasperadas de seus pais entrarem por um ouvido e saírem por outro. Enfim, procurar por consumo e diversão fora da ilha tem se tornado para alguns uma obsessão. Esse também é o meu caso, não nego. Quantas vezes me vi horas, dias, noites esperando a maré baixar para que eu pudesse pisar o outro lado e pudesse gastar minha cota de dinheiro, fruto do nosso comércio de carne e de óleo de fígado de tubarão (única atividade que exercemos, vez em quando, por aqui é a matança dessas criaturas) com outras ilhas. (Talvez não seja relevante dizer, mas será dito, que a nossa moeda é a mesma do continente — não houve como nos diferenciarmos nesse caso; isso exigiria uma economia forte, pulsante, um banco central, sei lá, e nesse aspecto o mundo inteiro se regula nas mesmas bases, uma moeda controla todas as outras, que só possuem nomes diferentes; preferimos, por isso, fazer uso da principal delas, a que regula, pois, o mundo todo, e a nossa ilha, apesar de tudo, pertence ao mundo). Legalmente nunca serão admitidas por aqui quaisquer relações comerciais com o continente. Talvez sejamos mesmo estúpidos: a gente compra deles mas nunca vende (nem sequer um peixe miúdo). E pior: nós mesmos nos impusemos tais barreiras e demos ao alcaide o direito de controlá-las. Somos uns otários. Paciência. Então, a gente só compra, para no fim abandonarmos quase tudo, exceto, como já disse, os alimentos, lá do outro lado. Ultimamente estamos sendo ótimos geradores de renda para o lado continental. Porém, nunca pensamos em mudar a situação (silenciamos a respeito, como sempre). Nunca também uma vontade genuína nos propeliu a retornar definitivamente para o continente e deixar para trás todas as nossas limitações. Eu mesmo, hoje pela manhã, ao começar a travessia do istmo, pensava estar decidido a não mais retornar. Mas algo me aconteceu que não consegui me resolver de vez. Talvez seja um problema da idade. A gente passa dos quarenta e vai ficando cada vez mais covarde, com medo da solidão, com medo de não se adaptar a outro lugar que não seja o lugar onde vivemos nossos reveses cotidianos. Esses reveses que nos fustigam mas que também nos viciam, gerando, assim, um eterno ciclo de masoquismo. Por isso é que me acho agora estacado bem no meio do caminho, com esta dúvida cruel: ir ou não ir? —, é importante dizer que atrás de mim se formou um enorme engarrafamento humano. Já cogitaram me lançar ao mar para desobstruir o istmo. Porém, Hitlodeu, meu asno ibérico, é feroz, e qualquer investida que tentem contra nós, logo o bichinho soltará um belo de um coice. Escuto os xingamentos, os palavrões e todas as manifestações possíveis de indignação contra minha pessoa. Confesso até que estou gostando de ver essa gente reagindo, se revoltando. Nunca eu havia pensado antes em atravancar a única saída para os moradores da ilha, todos sempre impassíveis ao extremo, mesmo em casos de abuso de poder por parte do alcaide e sua guarda. E apesar do risco que estarei sofrendo, não vejo a hora de a maré começar a subir e a golpear as rochas do istmo com total e devotado furor. Sei que muitos serão tragados. Crianças. Velhos e adultos. Eu, de minha parte, sou um homem prevenido: trouxe do continente (da última vez que retornei de lá) uma bóia auto-inflável e a mantive bem escondida no ânus do ibérico Hitlodeu. Em caso de risco de afogamento é só acioná-la. Se eu seguir em frente para não mais retornar, significará ter de encarar certos desafios: me adaptar novamente à vida do continente, arranjar novamente um daqueles empregos com péssimos salários e total informalidade, uma casa apertada na conurbação do primeiro planalto (quando não na sua periferia infecta) e arrumar uma esposa e ter filhos (o que ainda não fiz, porque, apesar de tudo, as cobranças na ilha, nesse sentido, são menores do que na conurbação). Enfim, terei de formar uma família com todas as peças necessárias para não me tornar um cidadão malvisto, ostensivamente solitário, um possível doido varrido e abandonado de que todos têm medo de se aproximar. Terei também de ter vizinhos da pior estirpe (não que os da ilha sejam melhores — mas pelo menos minha casa não tem parede-meia com a dos malditos). E mais: terei de criar um cão de raça de tamanho considerável para cuidar da minha propriedade e ficar sócio de um clube qualquer para provar que sou sociável e que prezo a vida gregária, ou seja, que não sofro de misantropia.

Se essa gente toda aí atrás de mim estivesse realmente decidida a sair e a nunca mais voltar, poderíamos detonar o istmo depois que passássemos para o outro lado. Mas sei que a maioria vai querer retornar para suas casas espaçosas, com árvores ao redor e vista para o mar. Contudo, essas casas continuarão vazias de tudo aquilo que mais se deseja possuir dentro delas: todos os produtos, sem exceção, que são produzidos no continente.

A água já começa a bater nas canelas de Hitlodeu. O que me força a decidir. Se ficar, serei tragado pela água e, confesso, a bóia que escondi em Hitlodeu não será suficiente para mitigar o pavor que tenho dessa massa líquida escura, sem contar os tubarões que certamente destroçariam a mim, à bóia e ao asno numa fração de segundos. Se retornar, acho que não escapo de um linchamento. Toda a revolta que sempre esperei dessa gente se abaterá sobre mim. Depois disso, só há mesmo uma escolha: ir e não retornar. Queira ou não queira. Essa minha atitude talvez engendre outras. E quem sabe um dia esta ilha fique novamente deserta para que se possa começar tudo de novo ou mesmo para que nunca mais se comece algo. Confesso, porém, que a minha preocupação a partir de agora é somente com o preço que pagarão por Hitlodeu, meu asno ibérico, num desses matadouros clandestinos na conurbação suja do primeiro planalto.

Paulo Sandrini

É autor de Códice d’incríveis objetos & histórias de lebensraum e mestrando em Estudos literários (UFPR).

Rascunho