Índia, minha terra infirma, meu turbilhão, minha cornucópia, minha multidão.
Salman Rushdie
Para a Índia, o que se leva é sempre pouco, sempre muito, sempre inadequado. Mas talvez qualquer viagem não seja mais do que um modo de ir se inadequar em outra parte. Como abrir em si mesmo um espaço para a surpresa desprotegida? Um espaço em que sobre só a mínima estrutura, o esqueleto que impede que o corpo desmonte?
Nesse processo de limpeza (de faxina, de capinar o campo), o acessório é deposto. Ideal mesmo seria não levar nada.
Buscar a Índia, desviar da Índia, evitar a Índia, respirar a Índia. Noites de insônia, dias de sol, o sol e o magenta e o laranja do Rajastão, chegar à Índia, nunca chegar à Índia, nunca deixar a Índia.
Música pop: India, my India. O muezim nos momentos em que o tempo para. Cachorros de rua em Délhi. Cachorros dormindo tranquilos sob o sol, nas calçadas. Não se mexem quando as pessoas passam. A neblina suja da madrugada de Délhi. A garganta que arranha.
As roupas coloridas das mulheres do Rajastão, as crianças nuas da cintura para baixo. Nas ruas de Jaipur: cachorros, gatos, vacas, camelos, cabras e elefantes. Esgotos a céu aberto, naquele tom cinzento indefinível, restos de comida, excrementos humanos e animais, lixo, lixo.
Couve-flor preparada com romã. Indian hot?, perguntam. No mercado de especiarias em Old Delhi, casas trepando umas nas outras, homens seminus se banhando nos terraços de um domingo. Merda e lixo pelas escadas. Flores de açafrão pelas escadas. O muezim que chama à oração. No templo hindu em Varanasi, um pouco de pasta de sândalo é aplicado na testa da estrangeira que não é parte de nada daquilo mas deixa, assim mesmo, cem rúpias ao religioso sentado no chão.
Curry, cardamomo, cominho. Mango panna. Cheiros pelas ruas de Délhi, cheiros tão embaralhados pelas ruelas de Varanasi, junto ao Ganges — o Ganges! O Ganges infinito, eterno e são, doente e mortal, o Ganges. Atravessando o tempo, o tempo imóvel da Índia, o tempo arcaico da Índia. Brotando nos Himalaias, desaguando no Golfo de Bengala, e enquanto isso. A vida, a morte e o entre. Hello madam, namaste madam.
Shiva reside em Varanasi. Para o hindu, morrer ali é escapar do ciclo da reencarnação. Os crematórios nos ghats, compridas escadarias junto ao Ganges — o corpo e seus tabus. Nudez, excremento, morte. Homens de baixa casta passam a vida queimando cadáveres. No mesmo chão, crianças seminuas brincando com um tijolo, soltando pipas, e a fumaça da queima dos mortos acinzentando o céu. Vacas deitadas ao sol. Vacas revirando latas de lixo. Mendigos, ascetas.
O caos do trânsito. Barulho, muito. Silêncio também. Cítara e tabla ecoando pelos muros de uma fortaleza de pedra rosada. O ruge-ruge que passa, um sári verde e prata. A viagem para dentro que é para fora que é para dentro e o dentro que está fora e o fora que está dentro. O que é meu não é mais meu — meu espaço, meu perímetro, meu corpo. Um cachorro morto na estação ferroviária, como se estivesse apenas cochilando ao sol. Um cachorro comendo as entranhas de outro cachorro morto num ghat em Varanasi.
I make you very good price madam. Um pavão atravessa os trilhos do trem. No Forte de Agra, um macaco chupa um resto de picolé. A areia da praia em Goa, um sol que se põe sobre o Mar da Arábia. Um sol que se põe em Jaipur, que roça os instrumentos astronômicos do marajá Jai Singh. Memórias de Julio Cortázar, no observatório — esa hora que puede llegar alguna vez fuera de toda hora.
O amor é modesto e requer pouco. Às vezes um silêncio basta. Mas o que é suficiente ao luto de um imperador mogol? A velhice chegou para o Shah Jahan no dia da morte de Mumtaz Mahal. Seus corpos jazem, hoje, num sepulcro subterrâneo, os rostos voltados na direção de Meca. Os quatro minaretes que ladeiam o Taj Mahal inclinam-se levemente para fora: em caso de queda, não desabarão sobre o mausoléu. Lá no alto, na cúpula, a lua islâmica e o lótus hindu. A pedra do mausoléu é leve: flutua. Poema de amor. Asserção de poder. Tudo como através de lágrimas, escreveu Cecília.
Deriva. Um segredo-pedido sussurrado ao pé do ouvido de uma estátua, num templo, nada mais é do que um gesto que o coração faz a si mesmo, e ao coração do mundo. Um sopro qualquer que se lança no ar, uma flor (matinho arrancado de uma rachadura entre as pedras) que se atira ao Ganges com um desejo: vá. O fim, o nosso, contra o céu sem fim.
Índia, um entreposto.
Um entrelugar, hiato, hífen. Dobradiça.
O Rajastão é dentro da gente: o sertão. O que nos arrasta rente ao chão, o que nos rende, o que nos surpreende, transforma e aniquila. O que dorme em nós e nos acorda, às vezes. O que há de vida desperta em nós.
Índia, curto-circuito do corpo, da língua, acaso, improviso. O vau do mundo, o vão do mundo. O desvão do amor.
NOTA
Este trabalho é resultado de uma parceria entre Adriana Lisboa e Andréia Dulianel, iniciada com uma leitura/performance em janeiro de 2018, em Nova Délhi. O desenho aqui publicado intitula-se Marcas da Índia (carvão, lápis conté, nanquim e guache sobre papel japonês).