Infância desinventada

Conto de Fabrício Carpinejar,
Fabrício Carpinejar, autor de “Como no céu/Livro de visitas”
01/10/2004

Eu confiava em meus irmãos. Podiam estar mentindo, mas confiava. O mentiroso apenas quer convencer a platéia de suas invenções. É o último a acreditar. O mentiroso é generoso — mente pelos outros, não para si. Meu irmão mais velho não conseguia dar conta sozinho de sua idéias. Escavei durante uma semana o quintal porque ele argumentava que do buraco poderia enxergar o Japão. Perdi três sessões da tarde. Saía da aula correndo para prosseguir a investigação psicológica do subsolo. O Japão não vinha e eu estava todo esfolado e esfarinhado de lama. Quando desisti, ele arregalou os ombros e falou com arrogância: “que pena, mais um pouquinho e poderia conversar com os homens de olhos puxados, andando de cabeça para baixo”. Eu era dois anos mais novo. Em uma família grande, alguém sempre será o funcionário público dentro de casa, a pagar banco, mico e receber as visitas no guichê da mesa da sala. Costuma ser o caçula. Sobrou para mim. Nem aí, pois não me restava razão para discordar do meu início, muito menos do meu fim. A gente torcia para que os mais velhos casassem logo, para ganhar um quarto único. Os irmãos festejaram a saída da irmã que fugiu com o namorado enquanto os pais gritavam e amaldiçoavam a adolescência. Queria um quarto sozinho para colar cartazes na porta do jeito torto das oficinas de carro. Desejava ser mecânico quando pequeno para expor figurinhas enormes de mulheres peladas, peludas, precárias. Pensar em dispor de um armário inteiro para minhas roupas barulhava a boca, os dentes disputavam pegas. Passei a infância com duas gavetas, um degrau da estante de livros e um abajur. Não conheci mala, passaporte e tirei a identidade aos 19 anos. O meu irmão mais velho gostava de mistérios, de provocar mistérios. Uma noite me acordou com uma lanterna. Deviam ser umas 4 horas. O relógio ainda sentia cólicas. Botou aquele facho preguiçoso na cara e disse: “vem, temos uma missão”. Eu não penso ao acordar e fui. Pediu antes que pegasse todos os meus bonecos. “Todos”, advertiu. Eu montei os playmobil no casaco, receoso. Tinha sido o presente mais caro que recebi. Não emprestava a ninguém, nem levava para a escola para evitar o ‘deixa ver’ dos colegas e o ‘me devolve’ dos meus medos. Pulamos a janela. Ele havia deixado uma escada de sobreaviso. O irmão estava meio alterado, mal contendo a euforia. Mostrou um livro dos incas e relatou que as pessoas enterradas cresciam as unhas e os cabelos e voltavam mais fortes, sem estômago para envelhecer. Bocejava a falta de café. Pegou uma pá e foi abrindo um sulco imenso na horta, pouco se importando com as alfaces e as hortaliças. Fez uma sujeira sem tamanho, que a mãe incriminaria os gatos. Ajudava de colher, por simpatia às causas estranhas. “Agora põe”, ele me orientou. “Põe o quê?”, perguntei, já temendo suas loucuras e de me enfiar naquela covinha como quem coloca uma pantufa.

— Os bonecos!

— Não, não.

— Eles vão ficar fortes, de unhas e cabelos compridos e vamos buscá-los daqui a exatamente três meses.

Sua força física me fez acreditar. Enrolei-os em um saco com farelos de pão e larguei na terra, fechada com esmero de um cofre. Meu irmão desenhou um mapa para localizar os guerreiros. Eu chorei devagar para não atrapalhar a chegada de meu sono. Era verão, as aulas terminaram e voamos para praia. Na volta, peguei o mapa com a letra emendada e daltônica e parti para a horta. Desapareceu a horta e não culparia a neblina. O pai aproveitou a viagem para cumprir a reforma prometida há décadas e cimentou o terreno entre o abacateiro e a ameixeira. Passei a brincar com minha ausência, imaginando que um dia os cabelos e as unhas dos bonecos abririam o solo em um terremoto. Dos meus 32 anos, observo os mínimos movimentos do pátio com atenção e expectativa. O pátio de minha infância ainda vai enfartar.

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho