Infâmia

Trecho do romance de Ana Maria Machado
Ilustração: Carolina Vigna-Marú
01/05/2011

8.

Voltando para casa depois do trabalho, pelo mesmo caminho de sempre, no mesmo horário de todos os dias, Custódio mais uma vez se surpreendia a ruminar as mesmas idéias dos últimos tempos. Nada de mais: afinal, nada mudava e ele não conseguia encontrar qualquer resposta para sua aflição. A única mudança tinha sido a da semana anterior, quando alguém na repartição deixara em cima de sua mesa um jornalzinho interno, que só circulava mesmo nas repartições do Instituto. Tinha uma seção de boatos e fofocas, como sempre, cheia de piadinhas e brincadeiras com o pessoal que trabalhava lá. Mas dessa vez, publicava uma referência pouco clara a uma certa comissão de sindicância que poderia ser constituída em breve — e o único nome citado era o dele.

Seus passos o levavam pelas calçadas esburacadas do centro da cidade, sobre o mosaico de pedras portuguesas que formavam desenhos muitas vezes incompletos, a caminho da estação do metrô da Cinelândia. Como todos os dias em que não estava com disposição de caminhar. De outras vezes, voltava a pé. Muitas. Quase sempre, aliás. Do Centro ao Catete era pertinho. Mas hoje se sentia cansado. Queria chegar logo. Morava no mesmo bairro a vida toda, na mesma casinha de vila onde nascera. Talvez até viesse a morrer no mesmo leito onde fora concebido — era algo que até há pouco tempo de vez em quando lhe ocorria — pois hoje dormia na cama que tinha sido de seus pais. Só trocara algumas vezes os colchões que ao longo dos anos se gastavam sobre a solidez da madeira de lei. Às vésperas da aposentadoria, trabalhava ainda no mesmo emprego, na mesma repartição onde entrara ao ser nomeado, ainda adolescente, por um político à cata de votos, graças a um cabo eleitoral influente naquelas ruas da vizinhança, cobrindo parte do Flamengo, Glória e Catete. É verdade que, nesse tempo, mudara o nome do órgão do qual a repartição fazia parte, embora Custódio continuasse a chamá-lo de Instituto, como sempre. Mas no fundo continuava tudo igualzinho, até o endereço.

Mudaram apenas as funções — alguns nomes que as designavam foram caindo em desuso, ele foi muito lentamente sendo promovido. De contínuo, office-boy, mensageiro, auxiliar de serviços gerais ou que nome as diferentes épocas dessem à versão do antigo moleque de recados na estrutura administrativa burocrática, Custódio acabara passando para o almoxarifado onde aos poucos galgara os escassos degraus disponíveis. Havia poucos anos, chegara a chefe do setor. O coroamento de uma vida profissional sem a menor mancha. Deveria enchê-lo de orgulho.

Sem dúvida, no primeiro momento, foi o que aconteceu, assim que saiu a promoção. Hoje já tinha dúvidas. Cada vez mais, lhe parecia que todos os seus problemas tinham começado justamente aí, por conta dessa melhoria de vida. Inveja, olho grande — era o que Mabel garantia.

Ele achava que não era nada disso. O que alguém teria para invejar em sua posição? Essa chefiazinha de um setor perdido numa repartiçãozinha de merda, esquecida no Rio de Janeiro quando a maior parte do ministério se mudara para Brasília havia quase meio século? A merreca que isso representava a mais no salário no final do mês? Essa importância à-toa? O privilégio de dar algumas ordens sobre como o material de limpeza ou uns blocos de papel deveriam ser arrumados nas prateleiras? Ou sobre como se devia registrar sua entrada e saída, preencher algumas fichas sobre essa circulação e controlar o estoque? Não, não podia ser por aí. Dessa vez a mulher estava enganada.

Nesses assuntos, em geral, ela acertava na mosca. Conseguia perceber como eram as pessoas logo nos primeiros encontros. Ao longo da vida, lhe dera toques preciosos. Mas agora não estava falando de gente que conhecia, com quem conversara, nem de olhares que percebera, risinhos ou cochichos que surpreendera ao encontrá-las pessoalmente. Era bem diferente, coisa da repartição. Uma espécie de um jogo em que ele estava metido sem saber como, uma partida complicada com lances desconhecidos, que todos jogavam à sua volta, e ele aos poucos foi notando que existia mas nem reparou quando começara. Um jogo em que ele não jogava, mas todos jogavam com ele. Até pensava que, se fosse futebol, ele seria a bola. Nem mesmo sabia qual era o objetivo nem quais as regras que determinavam tudo. Só tinha certeza de que era alguma coisa que ia muito além da Mabel e de uma ajuda que a mulher lhe poderia dar, no mundo daqui de fora que ela conhecia tão bem.

Era mesmo para conhecer. Nascera e se criara num apartamento pequeno no Catumbi, viera morar no Catete quando casou. Tudo muito parecido. Vizinhas, vida doméstica, crianças. Não era um universo complicado. Não admira que a mulher se movesse por ele muito à vontade. Afinal, nunca saíra daquele mundinho, pensou Custódio quase sorrindo, enquanto subia os últimos degraus da estação do metrô e tomava o caminho de casa.

Como sempre, iria passar na padaria e levar uns pãezinhos para a janta. A quantidade mudara ao longo desse tempo, aumentando ou diminuindo à medida que os filhos nasciam, cresciam, saíam de casa. As padarias mudaram também, e muito, tanto no seu interior — nas mercadorias que ofereciam, nos balcões, nas cestas cheias, nas caixas registradoras e nas embalagens do pão — quanto no exterior, nos letreiros, nas vitrines ou nas portas de metal que se desenrolavam para o fechamento no fim do dia. Trocaram de padeiros, de donos, de nomes, de esquinas.

Mas pelo meio de todas essas mudanças, ele continuou trazendo seus pãezinhos para casa todos os dias na saída do trabalho. Até mesmo às sextas-feiras, quando comprava o pão em outra padaria, no meio do caminho, ao lado do bar, porque nesse dia ia primeiro encontrar os amigos para uma cervejinha na Glória e só chegava bem mais tarde, depois que a mãe se recolhia. Mas sabia que então Mabel o aguardava com uma sopa pronta para esquentar na hora em que viesse. Geralmente bem depois do fim da última novela.

Ela não ligava. Sabia onde ele estava e com quem. Os mesmos amigos, na mesma esquina, no mesmo horário de fim do expediente. No final, voltando para a mesma mulher na mesma casa onde nascera e crescera. Aquela Mabel que ele volta e meia ainda se surpreendia descobrindo como a mesma menina de olhos vivos e marotos, por dentro da senhora corpulenta de andar arrastado que daí a pouco lhe serviria o jantar, e o acompanharia tomando um café com leite e pão com manteiga. Muitas vezes ainda à espera de esquentar novamente a comida nas panelas quando o filho chegasse mais tarde — Jorge, o caçula, o único que ainda morava com eles e a avó, depois que o Eduardo saiu para viver com a namorada. E não voltou, depois de se separar.

Mabel e Jorge. As únicas pessoas com quem Custódio conseguia se abrir um pouco sobre o que estava vivendo no trabalho e as preocupações que vinha tendo. Confiava neles. Em Mabel, que o conhecia como ninguém. Em Jorge, que conhecia muita gente e muitos ambientes, andava pela cidade toda, tinha cliente bacana na Zona Sul, paciente de todo tipo na clínica de reabilitação. Era safo, esperto, instruído, tinha até feito faculdade — esse, sim, o grande orgulho que ninguém tirava de seus pais.

Mesmo para esses dois, no entanto, Custódio não conseguia explicar. Podia falar com eles à vontade, e falava. Isso ajudava a sentir o peito menos pesado. Só que não era capaz de lhes passar direito o tumulto que sentia por dentro. Cada vez mais claro, embora formado por uma vaga sensação feita de muitas coisas miúdas. Mas também cada vez mais escuro, misterioso, escondido. Alguma coisa ia muito mal na repartição. E era com ele.

Ou pior. Era contra ele.

Ana Maria Machado

É autora de 10 romances, 12 livros de ensaios e dezenas de infantojuvenis. Traduzida em diversos idiomas, é ganhadora do Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra, de três Jabutis, do Hans Christian Andersen, do Príncipe Claus, do Casa de las Américas, entre outros. Seu título mais recente é a coletânea de contos Vestígios (Alfaguara).

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