Homem e delegado na noite

Conto de José Castello
01/11/2003

Mesmo porque, Baruch disse, não me alimento de restos, prefiro sentir fome a contaminar meu organismo com detritos e outras porcarias. Não me tome por um sujeito qualquer, disse ainda, enquanto coçava os bigodes que não tinha. Enquanto falava, desabotoou a camisa para que eu pudesse observar as costelas que lhe perfuravam a pele, ossos estreitos e duros, apontando para cima como distintivos de pobreza.

Não escondia a felicidade que a magreza lhe trazia, uma alegria torpe, o que me espantou. Só os que podem comer sentem prazer em não comer, eu pensei. O rapaz não afastava o revólver de minha testa. Como podia conservar a mesma posição, o braço erguido e reto, sem que ele adormecesse? Devia ser um profissional, eu pensei, alguém muito habilitado a confrontos longos e pacientes.

Eu também já tinha me acostumado com a situação, não posso negar. Já o tratava, até, por Baruch, o nome que me deu quando eu, com a intenção de acalmá-lo, lhe fiz algumas perguntas de caráter pessoal. Por um breve espaço de tempo, minha estratégia funcionou, pois as perguntas lhe conferiam uma segunda identidade, não mais de assaltante, aquele que entra furtivamente em uma cena, mas de protagonista.

Por que você assalta, Baruch? — perguntei. Não leva em conta o risco, não pensa nas conseqüências do que faz? Você não passa de um imbecil, ele respondeu. Como pode acreditar que eu, um homem refinado, vá ceder a sentimentalismos? Como pode achar que vá me envaidecer com suas atenções? Trate de andar, ele disse, mas não se moveu. Era assim: dizia uma coisa, mas expressava outra. Como se houvesse dois homens dentro dele.

Talvez julgasse, pensei, que cabia a mim escolher a direção; e por isso apressei-me a tomar o rumo da avenida Bastos que, durante a madrugada, costuma servir de rota para a ronda das patrulhas, o desfile das prostitutas e o serviço dos lixeiros. Ali haveria algum movimento. Não se abalou com minha escolha, e me seguiu com passos de preguiçoso, arrastando os sapatos, os cadarços soltos, e não sei como não tropeçava.

Seguimos assim até que, diante das portas cerradas do bar da Costeira, Baruch me disse que era hora de parar. Eu já não suava mais e também já não tremia, ainda que, dentro de mim, uma eletricidade autônoma, com movimentos de verme, indicasse a desordem instalada em meus nervos. Eu era, sem dúvida, uma vítima. Mas não podia dizer do que sofria.

Certo, Baruch, eu disse. E parei. Mas parar para quê? Foi uma tolice contestá-lo porque, diante da porta do bar, num espaço obscuro da calçada, minhas chances de fugir aumentavam. Mesmo assim, não pude reprimir pensamentos benéficos a respeito de meu assaltante (eu já o chamo de “meu”, prova da rapidez com que nos habituamos às coisas, e até passamos a admirá-las). Nem consegui desconsiderar os perigos a que ele, Baruch, se expunha. Devia ser um iniciante. Um amador.

A não ser, me ocorreu, que ele pretendesse me matar — mas, se fosse assim, teria escolhido um lugar ainda mais ermo, algum beco ou terreno baldio, e não aquela avenida. Do outro lado da calçada, vultos femininos preferiam a claridade.

Baruch se agachou e, com gestos de engraxate, passou a ajeitar os cadarços dos sapatos, que eram modernos, ainda que estivessem borrados de lama pelas bordas. Quem o visse, diria que se preparava para entrar numa discoteca, ou que aguardava a namorada na recepção de um cabeleireiro. Era um rapaz pálido, sem músculos e com os cabelos encrespados. Talvez roubasse para comprar drogas, ou só para cometer uma transgressão que o aproximasse de si.

Foram conjeturas com que passei a me distrair, e eu bem poderia ter fugido já que Baruch largara o revólver sobre a calçada para se concentrar melhor em seus sapatos, e depois passou a aplainar a barra das calças e ainda cuspiu na ponta de um mocassim para, com a mão espalmada de nadador, lhe dar algum brilho. Mas ali fiquei, preso não sei a que, já que a Baruch não era. Preso, quem sabe, à ausência de sentido — porque, quando não há sentido, não existem portas.

É aqui que minha situação começa a se complicar, eu sei disso. Se não fugi, se tive a chance de escapar e não a usei, foi porque, o senhor deve deduzir, tornei-me um comparsa de meu algoz. E, em conseqüência, o senhor poderá concluir que eu o ajudei no assalto à mansão Zack. Contudo, por que eu, um arquiteto renomado, assaltaria uma mansão? Só para levar meia-dúzia de castiçais, e ainda castiçais de estanho?

Sim, há também aquele busto de Napoleão, em mármore barato, que desapareceu da borda da lareira, ou de cima do piano, já não sei dizer. Mas olhe bem e me diga: por que eu, que tenho passagens compradas para Paris onde vou receber um prêmio internacional de desenho, por que eu, Benedito Soares, “o arquiteto das formas inclinadas” como me chamou a revista Vitrine, por que diabos eu, por que o Benedito eu, o Benedito que sou, Benedito de Sá Soares, filho de um colunista social e de uma estilista, por que me daria ao trabalho de, aos trinta e quatro anos, assaltar uma mansão só para roubar quinquilharias?

Sim, eu segui Baruch até o muro da casa, não posso negar. Isso depois de um longo tempo durante o qual, diante das portas cerradas do bar, esperamos sabe lá Deus por quem — por algo, ou por alguém, que simplesmente não chegou. Aquilo não o desesperou, a espera sem resultados não o incomodava. Talvez tivesse parado só para descansar. Mas bem diante da pista onde trafegam as patrulhas da madrugada?

Uma vez refeito, e voltando a apontar o revólver contra minha testa, Baruch indicou a direção da mansão Zack. Não me deu motivos para segui-lo, mas isso não o impediu de acreditar que, sem qualquer resistência, eu o seguiria. E eu o segui, já que não queria morrer. Sim, eu podia ter fugido, mas não fugi e estava novamente nos braços da morte. Grande escolha.

Era um portão austero. Apesar da escuridão, a madeira brilhava. Não o forçamos, nem experimentamos as entradas laterais, ou cogitamos de saltar o muro. Ali ficamos, Baruch, meu algoz, e eu, sua vítima, o hipnotizador e seu hipnotizado, dois em um, unidos pelo desconhecimento e pela preguiça, a esperar.

Assim que nos aproximamos da porta, posso recordar, Baruch ordenou que eu me detivesse. E ali ficamos, a esperar o nada, ninguém, a mofar até que, um bom tempo depois, ele disse: — Agora vire-se para o muro, conte até cem e, só depois, caminhe bem devagar de volta para casa.

Não me lembro se contei até cem, recordo apenas que, após uma longa espera, ao me virar, deparei com os policiais que desciam de seu carro. Ordenaram que eu me perfilasse com os braços erguidos, na pose clássica, o que me fez pensar na melancolia que rege os atos humanos. E me examinaram os bolsos, apalparam meus quadris, minhas coxas, e depois, sem nada dizer, me trouxeram até aqui. E aqui estou, acusado de uma tolice, porque roubar seis castiçais de estanho e um busto barato de Napoleão só pode ser uma tolice. O que mais o senhor espera que eu diga?

Sem perder a serenidade, o delegado Botelho se ergueu, deu a volta em sua mesa e veio me encarar. E ali ficou, fitando-me em silêncio, perdido em pensamentos remotos, alguma aposta noturna no hipódromo, alguma amante secreta que o aguardava em um hotel de beira de estrada, ou talvez só um grande branco a congestionar sua mente. Até formular a pergunta: — Você sabia que Baruch assaltou a casa dos próprios pais? Como não reagi, porque a revelação me golpeou, o delegado repetiu de outra maneira: — Sabia que Baruch é o caçula da família Zack?

A notícia, eu não posso negar, me desarranjou os pensamentos. Mas, pensando melhor, ela talvez viesse emprestar um sentido, ainda que débil, e até sarcástico, ao que o rapaz fizera comigo. Pois ele não me tirou um só centavo, nem chegou a me molestar, limitando-se a me arrastar pela cidade, para depois me conduzir ao muro da mansão Zack. E em seguida desapareceu, o que não chegava a configurar um crime.

Se Baruch saltou o muro, não sei dizer. Mas para que precisaria pular se levava consigo as chaves da casa? Talvez tenha me levado até ali, como nos filmes em preto e branco, só para me ter como testemunha. Mas testemunha de quê, se nada vi?

Agora sim, Botelho, o delegado dos artistas (pois sua delegacia fica nas Rochosas, a zona boêmia da cidade), agora sim ele, com seu nariz de suíno a fungar e fungar, aspirando alguma beleza oculta naquela noite desprovida de qualquer beleza, mudou de expressão. Muito respeitoso, encostou os bigodes em minha orelha direita e, como se prescrevesse um medicamento ilegal, sussurrou: — Tenho a impressão de que você está muito cansado, de que tudo isso o esgotou. Não seria melhor dormir?

Ato contínuo, ouvi um barulho que se assemelhava ao de um chocalho, ou de uma campainha. Virei-me. O carcereiro entrava na sala, cheio de descaso, arrastando os pés. Nas mãos, sacudia um molho de chaves. Fez um sinal com o queixo, como se desejasse aproximá-lo da orelha, e custei a entender que era uma ordem para que eu o seguisse. Deixei-me levar até a primeira cela, sem resistir, ou me lamuriar. Que o absurdo fosse até o fim, para que aquilo acabasse logo.

A cela estava vazia. Havia uma plataforma retangular de cimento, que cheirava a urina, e provavelmente servia de cama. Diante dela, uma pia bastante enferrujada e um balde. Foi só o que pude ver. Não havia luz, o que, em vez de me incomodar, me tranqüilizou. Sem pensar no que fazia, deitei-me ali mesmo, e nada mais senti além do frio que emanava do concreto. E, até agora, não consegui acordar.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho