História do poema de desfazimento do Qua do Rochedo de Colemb

Conto de Carlos Emílio Corrêa Lima
Ilustração: Osvalter Urbinati
01/06/2005

Desenhos de alphas com algas misturando-se depois… elucidando nenúfares. Esperando a montanha bater asas. Tingir a tigela de espanto, pôr mais argila na ponta do artelho da pedra — argila de istmo serve bem. Copiar este poema bem longe de onde foi escrito de manhã. Com tinta desatada de orvalho onde eu me esqueça. Vírgula, sol. “Na pedra que filtra as almas” vai ser o seu título após a compilação com haste de trigo verde. O quê: espera-se. Haste bem sólida. Longa. Desenvolvendo sua inscrição invisível.

As histórias são nuvens que recebemos. Enfiamos as cabeças nos chapéus gasosos… derivações, página 712, falomar, portos, meios de escrever são muito difíceis pois para escrever estas palavras esculpidas e intensas uma praia toda caminhei até onde me sinto em preâmbulo. Pássaros mais em sua soma de solturas. As vestes acesas do povo da aldeia não são visíveis daqui onde vou escrevendo os desenhos, mortais para a pedra. É a forma de tampá-la, a esse tímpano, a esse lagarto aspergido de granito concentrado, nele quase toda a força do espaço. Lá, na casa, filtrado pelo céu, correndo perigo de ser sugado por ela mesma — quanto mais distante dela mais vulnerável o estar — eu não podia desenhar nada. Em 701 ela foi recoberta de lã que você ainda pode encontrar os vestígios escassos por aí, flutuantes muitas vezes, os fiapos. Pretendeu-se em muitos, era o em: evitar por toda a região os passamentos. Uma vaga errância de uma pronúncia tonificando o ar de vertigens. Toda a matéria sedenta do ar não mergulhado em grutas na maior abrangência possível do pensar-se a região. Os fiapos, as fitas de lã permutavam centelhas de levitações. Uma palavra enorme ainda informe, antes de ser pensada ou escrita, feixes intensos de seu lenho adensando-se, sendo respirada. Abrir o cérebro dos cactos (planta alta escamosa de nuvem com flores cantando suas sílabas espinhosas), aromas sem fim concentrando-se, centopéias fibriladas de sensações amontoando-se para um entôo: a produção, com seu silêncio, do livro sem forma alguma da montanha. Consigo dizer Hái-Guim. Titubeio, sento-me, desenho essa sonação sobre o ângulo mais ao léu da pedra. Sei onde o prendi, vi o pára-quedas de líquens da imagem, a água viva dela, deslocando-se… Até aqui meu pai foi atraído, sua mente, suas vísceras de energia, seu fragor de sensações todas elas de uma vez por aqui foi infiltrado. Colemb, este o nome da pedra! Cada sinal de exclamação é um clarão, estampido. Agora, não sei como, descubro este seu segredo imótico — jamais me foi dito que é seu nome, desenhado. Que parece eriçar-se com as delícias da pronúncia da língua falada pelos habitantes pescadores de pérolas dessa ilha meio perdida do mar, Shi-Olim. E as pérolas são retiradas de conchas que têm sua forma, como se suas sementes antigas, fundeadas no leito do mar de águas transfiguradas por um sol oblíquo e pensativo. Suas idéias contínuas, mares de verde sabor interminável e espumante. Nunca ninguém falara, na aldeia, dessa pedra, desse lugar encimado e é por isso que estou aqui. Também nada veio na baba dos sonhos. Não salivara seu onde. Seu ar-quando.

Tive que ir no sentido contrário a ela mesma, Colemb, Colemb, para aprender pouco a pouco esse idioma de sílabas pousadas por pássaros e pelo sonar borbulhante de peixes-voadores e de iguanas retardas aprofundando-se no teor de águas espessas. São palavras preparadas pelas oscilações de canoas leves tangidas pela brisa. Palavras que você só aprende no mar, navegando, bordejando as praias rochosas das ilhas, olhando as florestas quase flutuantes, recebendo os jorros da chuva marinha na língua espalmada, tudo para aprendê-las, aprimorá-las durante anos que não fizeram sentido. Você não sabia para que aprendia aquelas palavras isoladas, que não se juntavam em frases, mas que eram intuídas para serem mantidas sozinhas assim, sonhadas jóias celestes para pronunciação futura, feitas de ar e sonho, imagens que você mantinha ao seu redor como a um arquipélago de halos e frequências, palavras para serem guardadas na boca pensativa e úmida com seu sabor de algas estorricadas, seu gosto incendiado. Gosto de profundidades de vinho tinido, de moluscos ardentes, palavras ainda sem som, como estranhas estrelas-do-mar onduladas. Palavras que só seriam pronunciadas uma única vez, palavras para serem cantadas com os pés sobre a pedra achatada. Foi por isso que você desenhou uma outra imagem anterior com o pedaço fêmeo e agudo de tijolo com ponta que fixou a própria imagem de novo, foi por isso que você foi dizendo Gui-lin bem ampliado, enfiando a imagem toda que você trouxera das ilhas bem no espaço, você empurrava a palavra toda para dentro da pedra Colemb, clamor magnético de ela ser um espírito poderoso e indomável que você tivesse que aprofundar ainda mais para o interior da Terra. Você ficou com medo e algo retiniu em você outra vez sem que você se lembrasse como teria sido antes. Você sentiu que Hai-lim, seu rosto banhado de musgos úmidos do mar, sorridente, na borda da canoa, havia trazido uma pérola inacessível entre seus lábios que você tanto beijara durante sóis antigos, profundos sóis acelerados de mar. Você beijara a boca do jovem, mergulhador de cabelos de algas azuis, sugando com prazer aquela palavra vertiginosa que viera do fundo do mar com ressonâncias e cujo núcleo branco era a pérola imota.

Você não sabia em que parte de Colemb agora você estalejava, para cada lugar dela havia sempre uma palavra-imagem trazida com cuidado das ilhas longes. Palavras para bater. Imagens de coisas e cenas que ainda não existiam no universo, costuradas com fios de silêncio, para percutir com a bigorna. Sim, de bem de Oeste, tangidas, mas não arrastadas, pois nunca você soubera porque, mesmo, fora ali. Como se para criar lentamente asas bem remotas, processivas, marítimas, nas distâncias dos rochedos altos à beira-mar, as areias por eles sombreadas. Sabe-se disso, dos ermos efeitos. Somente para aprendê-las, tonificá-las de tempo, de tampamento, envelhecendo com silêncio, aquelas palavras mudas extraídas mesmo do fundo do mar, dos gritos transparentes das pedras marinhas. Agora você mastigava essas forças na boca e as dizia com calma. Porque você viera copiar este poema crispado bem longe de onde ele fora escrito, bem antes, lá em seu quarto arcaico. De sua janela você divisara a cordilheira salitrosa. Meio lunar no deserto. À distância, você soletrava palavras sussurradas, cheias de sal e vento, pequenos frutos de estampidos, minúsculos trovões com cascas, e borbulhas-de-passagem, Hat-üu-lim, a medula de um ser muitíssimo comprido e incompreensível que forçava passagem por sua boca, serpente de velocidade e umidade, medula glissante, condensado deslizamento da atmosfera, uma serpente de sussurros enfileirados que você respirava e eram seus haustos encadeados que você não premeditava e nem pensava antes…

Roubadas partes da lua. Para que ela, a cordilheira, tivesse sido ali empilhada, foi, com ânsias extensas, preciso extrair tonéis inconcebíveis de coisas vaporosas da lua. Que ao chegarem à Terra se solidificavam e ali ficavam, sustidas. E que se chamavam Qua em qualquer língua. Hoje você compreendia esses silêncios da cordilheira, silêncios enviados na forma de faíscas, como mensagens, como se, e sim, espelhos fossem de seus cimos conduzidos e cruzados, além do que pareciam. Ultrapassando-se. Então: Qua é de que é feita Colemb, a lenta, a imóvel cordilheira, a pressentida. E essa argila amarela é da lua.

Agora ele saboreava, estremecia. E todos que eram eu na aldeia fingiam disso ainda não cantar e orar. Como argolas com musgo. Praticavam expedições para juntar o contar que nem bem sabiam. Só essa minha parcela que de mim se aproximava — em um dia como este — poderia compor, agora mesmo, um poema entre a poeira no vir aqui escrevê-lo sobre o meu dorso com lentidões e esculpimentos, solfejos, numa espécie de dança contemplativa, de ardor. Mas não contavam jamais uma história, uma sentença. Faziam coisa estranhas como acender fogueiras na cabeça da pedra, coroavam com chamas a montanha deitada, a platibanda quase alisada pelo céu, para despertá-la, ela vivia dormindo, seu sono de porcelana era aumentado com os mortos, era o que queriam dizer levando, elevando aquelas pilhas de lenha das últimas florestas para o topo de Colemb. Enquanto as fogueiras circulares estivessem acesas — essa cerimônia de coroação e calor dessa montanha demorou cem anos, erma, reversa, todo o século quinto —, ninguém morrera em todo o corpo da região. Ela não lhes engolira os sopros, magnífica e cruel. Os números, os algarismos, as quantidades, os acúmulos, as exatidões, tudo com essa consistência, o que fosse, esquecido. Mas as florestas imaginantes quase se extinguiram. E não foram replantadas por muito tempo. Eu, que era muitas pessoas na aldeia de prédios quinados, um atordôo de seres que nos sonhos conjuntos se cruzavam em vapor, queria intuir tantas viagens sob a guarda dos céus, limpos e vítreos, para aquelas ilhas, de florestas quase suspensas no mar, para captar, e discernir, novas palavras, verdes, ardidamente insufladas, de mar. Um circular serúndio tornar-nos a todos. E a caminhar por elas através, sem torná-las rarefeitas para decantá-las clarificadas sobre esta Qua mais próxima, que se chamava… Colemb, Colemb, por meu atordôo central, na praça de encontro de minhas pessoas-nuvens compreendida em sua recessão…

Portanto, o melhor modo de se silenciar sobre a pedra Colemb, a Qua lunar, o promontório dos ancestrais, eram as cerimônias realizadas para esquecê-la, torná-la oculta. Isso foi conseguido quando pude trazer de longe o tesouro da sonoridade vibrada que tinha o desenho de um touro dentro de uma casa oca de pedra redonda. Dizia-se: batendo com os dois lábios o ar como uma câmara sagrada. Nunca antes, ou depois, este som fora plantado no ar, semeado no espaço pela boca de um homem-nuvem. Nunca se dissera pê, o castelo de som em que se guarda e protege para sempre a vida do mundo.

Ilustração: Osvalter Urbinati

Falemos um pouco do princípio: a primeira frase que escrevi eu tive que viajar um dia inteiro com ela no casulo branco e lanoso da memória, uma nuvem acompanhante sobre mim, timbres-enxames, minha nuca voante, a dourar-se de sol, distendida e basilar.

Hai-Guim, Hai-Guim, eu dizia, eu amontoava os seus desenhos repetidamente sobre a argila, com estampidos. Faiscações se exprimiam com as percussões sobre a pele desejante da pedra, a “pedra inclinada que filtrava as almas”, gradiente, a Qua, a trazida da lua por naves imensas na precessão antiquíssima dos tempos apagados da memória humana, dos élitros, das antenas, da lembrança dos picos, das colméias, dos estames, das pétalas, das circularidades aromáticas. Sílabas-continentes sopravam muito alto no espaço, tanto, tanto imensamente que eu não as ouvia. Derivações, mais, nuvens de fábulas, nuvens de futuras histórias sopravam, um pouco disso, insula láctea, teu nome é istmo. Tien-Tiem-Haem, relembrai, Tien-Tiem-Maê, cruzar as pernas no timão de timbres, navio da flores áereas, não coçar o dorso de tigre do monte. Falar para a cúpula se escreves quando ouves. Flautas de osso de nautas polidores do quê? Submersa rolagem na atmosfera, de um ar anterior ao queixo de jade do amanhecer — a família de musgos irmanados a pequenos poemas úmidos, talismãs de aromas, fluições escritas da água. O mago que não existiu, a linguagem das frutas é isto, virgulada, derivações, espacejamentos, inventários de acasos em colchetes. Esta escrita é uma escrita impronunciável em muitas de suas passagens, em muitos de seus desenhos cinzelados na pedra! Pára para ser apenas lida, vista, lente de frescor da profunda transparência. Com estas palavras que eu copiava do manuscrito que trouxera comigo eu desmagnetizava a pedra, subtraía aos poucos sua potência. Que ela fora trazida, fora pousada, vapor da lua em tonéis, deixada aqui, modelada por inimigos antigos do homem. Aqui perto desses amontôos de pedras em forma de bulbos, orquídeas de sons protetores esculpo, bato, sôo, topes, alto. Ao longe livros sagrados de plumas, arquivos de nuvens são ouvidos pela mente da pedra Colemb. Jade, pérola, madreperóla, cinabre, recipientes. O ouro líquido do seu olho está por debaixo de mim, fervelhecendo, freático, subterrâneo delfim aqüífero, transposto azul, submerso no deserto quente de si mesmo, asa tigrada de suas escamas graníticas, rumos de escamas penteadas, grumos, um mar congelado é seu dorso parado na velocidade de si mesmo. A pedra adormecida trazida da lua suga a vida nas regiões ao redor. As pedras ancoradas da velhice antiquosa a radiar de seus átrios. Os antitemplos do homem. Depois da ponta, secam as roupas luminescentes dos ancestrais, as vestimentas acesas, vieram flutuando, da aldeia, sem os corpos… A pedra atuara seu Qua com muita força esta tarde. Transpirara, atraíra a todos que eu deixara na aldeia. Secam roupas e cores na curva, sobre a areia vítrea, quando fazes a pergunta oriental do olhar sobre a colina; e vês as roupas dos mortos, que ela arrancara longitudinal junto com suas almas de longe, num esforço tão grande sequer antes praticado e conduzido, num torpor ascendente de raízes lunares, vapores mnemônicos dançando acrobáticos, ruflando suas cores emigradas cruzadas todas ao meu redor em rotação-carnaval, em prismático torvelinho. Quando voltares à aldeia encontrarás os últimos mortos da região, despidos de seus corpos, soprando no deserto caligrafias e dobras herméticas de sua passagem. Colemb arrancara suas almas junto com suas roupas em sua última voracidade antes de aqui chegares com este poema com estas palavras que esculpes sobre o dorso da montanha dormente inclinada pouco a pouco, o dia inteiro, com marteladas, com cutiladas, como se lhe trespassasses, muito mais que a ela mesmo, como se lhe trepanasses, como se a quisesses perfurar até o imo e vês, que encontraste o veio, bem aqui, a zona da mente da pedra Qua aqui, bata com força esta imagem consonantal que trouxeste do mar, aí, aqui, bem. É um gozo e soluço de prazer inesperado, palavra-imagem que conduziste trancada em tua boca até aqui que vieste portando fechadamente protegida em teu corpo em tua cabeça lá da ilha do idioma ruflante, idioma de asas de pássaros e de peixes-voadores que reabres aqui então o seu tesouro de sons que polvilhas desde o mar sobre a pedra e sopras palavras novas faladas, palavras desconhecidas nessa linguagem de aromas e brisas que vão lhe desfibrando a carcaça, amortecendo a carapuça de tartaruga de sua pele antes tão mais pesada e toante, pois você vê exatamente agora a tigela d’água estampida esperando, pouco antes de seu líquido cintilar, trazido do mar, a tigela que trouxeste para anteparar os seus desejos líquidos mais internos. Dizem com que: a água relampeada, evita-se o tom da filtragem, sustém-se a moagem, não se atraem as ventanias de seres para cá. Recipientes escarlates, pigmentos diluídos, cinabre no jade. Palavras soltas, incrustadas nas árvores distantes atentas, tantas ainda, bem longe, vêem-se as manchas no horizonte. O ouro retumbador da montanha. Sabor de um rumo ao sul. Todas as imagens que não trouxeste das ilhas Sha-om estão escondidas nas brumas de uma ecoada montanha outra mais outra mais além, reecoada que daqui não se avista. Bebo-me. Enredo de nuvens. Gradações, teus gestos desenham estas palavras sobre Colemb, tinidas com faíscas, revibradas, repercutidas, sentidas, tatuadas sobre. Teus gestos agora são mais lentos, de quem lê o que escreveu com vaguidão, os sentidos espargidos e toados, este poema com estes olhos de pupilas castanhas azulando-se. Com que esforço! Prolonga-se por toda a noite inteira. Amanhece de novo muito rápido embora o tempo de desenhação do poema tenha transformado as constelações num enxame de estrelas girantes. Três mundos se ajustam sobre nós como grossas ruelas de panos encaracolados. Uma história quase toda encoberta pela névoa não foi lida nunca, você escreve para afastar os espíritos que ela, a Colemb, atraía em curva para cá, para trancá-los dentro da Terra. O teu poema me limpa, o teu poema me afasta de tudo embora eu não me mova mais, agora imersa em vogais preguiçosas, abafada. Sendo afastada embora permaneça em meu movimento invisível. Sendo lentamente separada dos muitos acontecimentos terrestres. Desengastada. Zigurate. Zigurate: borbulho meus tempos internos. Um feixe de caminhos se me entala. Não separam, muito longe, os halos das plantas das outras substâncias dos jardins. Estão, ainda, estão todos tateando os bons lugares da Terra de novo. Cada frase assim é começo, iniciação de pássaros-ponte para cá. Sinto com gosto a pronúncia do lugar. Altares, você construiu um altar o dia todo escrevendo com estampidos estes desenhos em mim, com os letreiros, os clarões da construção você me isolou do território. Semeou fatos estranhos ao longe, libertações, alegria, cordas de cítaras soaram sozinhas sem vento algum. A ilha do céu começou a pousar. Um funeral ao contrário semeado gigantesco caindo do céu, chuvas de centelhas, cadáveres luminosos despencando em exitâncias, seus rastros de nuvens quase infinitos, assobios, sementes de novos entes, de povos sem fim em forma de som. Os rituais complexos das pétalas aladas de uma nova criação são vistos em rotações pelo céu. A rosa transparente dos sinais, orquestra das constelações, é ouvida rolando cintilante durante todo o dia brandido. Intercintilâncias cobreadas. Poema escrito na pedra — elas pousam, no campo manuscrito tatuado, nas inscrições percutidas — com garças, ressoadas do horizonte de bronze que, finalmente, aproximei. Escrevo no timbre. Desenho com sede.

Carlos Emílio Corrêa Lima

Autor de Além, Jericoacoara, A cachoeira das eras e Pedaços da história mais longe e Ofos. Em breve, lançará o livro de contos O romance que explodiu.

Rascunho