História de um amor verdadeiro (RECOMPENSAS)

Conto de Valdir Moreira
01/09/2004

É quando clareia o coração do homem a tal paixonice que se escurece, na cabeça, a Razão.

E o Leozino, ninguém desconhece, desd’a meninice era tresloucado de amores pela Terta. Um amor desses: pra todo sempre. Os dois, em terras vizinhas criados — pertinho-pertinho dois corações — viviam de barganha de olhares. O menino era mesmo esfaimado de amores pela menina. O Leozino de justeza: prestativo pra mais que todos; educado e cordato. Não havia quem dele desgostasse. Bom pra o mundo. Acudia o pai na lida de uns gadinhos poucos, com mãos de vaqueiro de profissão; quando o tema era na lavra da terra, lá se ia ele, de enxadinha no lombo. Mas seus olhos eram somente pra menina Terta. Um zelo, a tal; uma flor, diziam: era a virtude em forma de cabrocha. E a beleza… Coisa descabida de tanto, num sertão feito de dificulidades que contradizem a fermosura das mulheres, pela dureza da vida. Os cabelos de um pretume de noite sem lua; mas luas, mesmo, tinha-as nos olhos: limpos e brilhosos. Nesse tempo, era inda das primeiras mocices; recém-chegada às fases vinteoitodiosas de mulher. Mas de uma lindeza! Pequenina. O corpo apontando um céu de moça, de curvas prometedoras de se fazer vida. Nela se lançando as vistas, numa manhã de sol tremeluzente de tão brilhoso, enchia-se o dia de boas sensações. Composta. Sempre vestida de compostura. Esconderijo de promessas. E a índole… Não havia, na região de Riachão — lugar do ermo e do sem fim —, mulher-moça que não desejasse ter a parecença daquela figura; nem mulher-mulher que não desejasse ter uma filha com tais predicados. Meio moça, meio Santa. Prendada na lida da casa. Punha, no sempre, as mãozinhas a serviço da mãe, na labuta inacabável de mulher. (Trabalho de mulher de casa é de fazer-pra-desfazer). Infatigável Terta. Obedecida. E, se na apartação de bezerrada, ou mesmo no cabo de ferramenta, o pai se carecesse, lá se achava a Terta — suando pingos de beleza e recendendo a flor —, na dureza do trabalho do campo. Já se viu moça mais apaixonável?! E era até das letras: coisa que mulher nenhuma, naquelas paragens, conhecia. Tartamudeava, saltitante, umas palavrinhas grafadas. Coisa que, pras outras moças, era mistério. Como aqueles gravetinhos pretos, presos no papel, viravam sons em sua boca? Havia das que duvidavam: as mais invejantes, em surdina, no disse-disse de menina, sussurravam que era mentira. Logro, diziam. Mas ela pipocava suas palavrinhas gaguejosas e saltitantes dos pedaços de papel de compra, dos frascos e caixas de vermífugo, das latas de veneno pras saúvas. Quem quisesse desacretidar que desacreditasse. De fato, era a única que rabiscava o próprio nome na poeira. Demorosa-demorosa, mas certinha. T-E-R-T-A. Como prometia, aquela!

E foi quê. Em tantas trocas de olhares — dela mais o Leozinho —, mil moscas zumbidouras zumbiram no coração do menino. E o tempo foi compondo um moço feioso e uma moça emprincesada. Daqueles olhares, os de Leozino eram gritos surdos de amor; os de Terta eram olhos de nuvens de tempestade. Prenúncio.

O Leozino trabalhava feito mula de carga nas terras do pai. De sol-a-sol. O gadinho; a lavra: de tudo entendia um tanto; em tudo metia a mão, sem medo da lida. Queria seu quinhãozinho. Saltava pra vida, antes de raiar o sol: garrava na ordenha — e pensava em, um dia, se casar com a Terta; — rachava o trecho pra Riachão, entregar o leite — e pensava em, um dia, viver só pra Terta; — metia a mão às ferramentas, junto à peonada — e pensava em, um dia, trabalhar sua quinta pra o passadio de sua Terta. Queria, mesmo, era ter seu trecho de chão, pra precipitar o casório, até então feito somente de olhares prometedores. E o Amor, que clareia o coração, escurece a Razão. E não se pode, aqui, negar que, lá no escuro âmago mais escondido do de dentro das gentes, desejava-se que o velho pai do Leozino partisse logo pra o Mundo-do-de-lá, pra que aquela união de um caboclo enfeiado, mas certo e reto, mais uma cabrocha vestida de virtudes se consumasse. E, como desmentir que, na escuridão da alma do moço, anseio semelhante não se tenha afigurado, furtivo, sorrateiro…? São figurações enegrecidas mais nas profundas do interior dos seres. E o Moço bem sabe: o Misterioso bebe na fonte do escurecer da Razão. O velho pai do Leozino, não deu muito — carregado da desejisse das gentes —, sucumbiu de uma febre variante. E o Leozino, na partilha, ficou com o melhor eito de terra. Era hora de fazer a sua; de trabalhar pra sua vida — e sua vida era o amor pela Terta. Ê figuração do pretume sôfrego da existência!

Foi numa Festa do Divino, na Capela de Pe. Euzébio, que o apaixonado, encorajoso, venceu a friagem que ia e vinha dos gragomilhos aos pacovás e lançou palavrório de amor pra Terta. E foram todas aquelas promessas de paixonice: de dar lua e estrelas; de viver só pr’ela; de dar o mundo; de secar o mar e encher de lágrimas o leito secado, caso ela não o quisesse. Agigantamentos de quem ama. E veio a pedição em namoro: pedido aceito. Namoração de longe, só de olhares e conversinhas. Respeitoso. E conversa de namoração é feita daquelas mesmas promessas agigantadas. E um toque na mão; a friagem que percorre a espinha. Uma quentura na face. Sempre no cheio de respeito. Já se viu, infamar o sagrado daquela Santa! E veio o outro pedido, ao pai da moça; coisa de casório. Pedido de bom grado aceito. E veio o matrimônio, e a felicidade seria o tudo, e o resto, e a vida, e o sempre. Se fosse… E quem haveria de duvidar…

O rancho de amor — em história romântica há sempre um recanto pros apaixonados — era um pedacinho do céu. Leozino caía cedo na lida: do gado, da terra, das ordens à peonada; a Terta era princesinha encastelada, cuidosa das coisas do de dentro de casa. O marido entregava o leite em Riachão, pra frequesia, sem falha de um diazinho; e não havia uma vez sequer que não trouxesse ao seu bem-querer um ramalhete de flor; fosse uma margaridazinha rasteira, fosse um maço de cipó-de-São-João em medro. Tudo em troca daquele sorriso que brotava na face afogueirada da Terta e alumiava-lhe o resto do dia. Fazia-se em muitas mãos pra dar conta de tanto trabalho: não podia deixar dissolver a perfeição de vida que merecia sua cabrocha emprincesada. E cuidava em ter criação de corte, pra não faltar carne; criação de leite, pra não faltar queijo; frutas frescas pro dejejum; e grãos, pro mais. E tantas e muitas coisas. Dedicação fora seu outro nome. Tudo pra preservar aquele sorriso que era o nutrimento de sua existência. Sua única vontade, sua única ação que não pertencia à Terta era a caçada de preás. Bichinho escorregadio. Pra tanto, arranjou, em novinha, uma cadelinha por nome Dida, que logo revelou artimanhas das mais pra o ofício. Nunquinha que se viu bicho tal. Um estalo na capoeira e a danada aguçava as orelhas e esticava o corpo. Batia no sapezal e já acuava uma preá. Quando não, trazia nos dentes o bichinho, sem uma machucadura sequer: pra preservar a pele. E o Leozino passou a zelar descabidamente pela cadelinha. Era sua companheira pra toda caminhada. Quando com ela, se fazia todo em carinho e atenções.

Mas o Moço bem sabe: há coisas do de dentro das gentes e há coisas do mundo. Era Julião — ou quiça não fosse, o que agora pouco vale — o nome de um cabrão abrutalhado que pediu trabalho na porteira do Leozino: coisa do mundo. O fio do Destino não pára. Braçudo. O homem acertou o preço da diária e o tal pôs-se no trabalho. E era só um espinho que se cravava, desses que entram na palma da mão: machuca doído, mas não mata. O que pode matar é a infecção que dele brota. Bastou a Terta bater os olhos no brutão, e pronto. Qual castelo dura pra sempre? Eram aquelas nuvens naqueles olhos. A tempestade que chegava. Olhos de promessas. O peão-d’strada deu de perceber aquele bater de asas. Vôo andorinho. E foi quê. Na entrega de leite, o príncipe deixou a desprincesa desprotegida — a porta aberta — e o castelo foi invadido. O imaculado foi profanado. Invasão consentida. Na casa, na cama, no corpo. Ah! aqueles olhos de nuvem… Deu-se pras brincadeiras do entrecoxas, a Terta. Aqueles gritos mudos do Desejo que soam nas carnes. E o incerto Julião se foi, pras estradarias, abestalhado daquela lama; e ela lá, coalhada dele. O Leozino era inocêncio nisso. Não soube, no já, daquela safadeza. As flores vieram, igual no sempre. E ela as recebeu, igual no sempre. Mas, o castelo aberto, abre-se pra não somente um, mas pra tantos quantos invasores. E assim foi que umas ruminações caminharam sorrateiras nas bocas desdentadas das gentes. As mesmas que santificaram a Terta. No decorrer, as poucavergonhices se somaram. E, numa domingueira, em Riachão, na Missa de Pe. Euzébio, ninguém lançou palavra ao casalzinho. O Leozino se pôs estranhoso. A Terta, só de olhares. Moleira-mole. As donas-de-véu-de-reza se achantes guardiãs da seriedade de todas as mulheres do mundo lançaram olhos espinhentos pra o casal. Sussurros: desavergonhada! Mula enfeitada, era dito o Leozino. E foi que uma mosca começou a zumbir interminavelmente no de dentro do Leozino. Remoenda de encarnações.

Pois fique sabendo o Moço que há um riachinho fino, na existência, que divide o Céu e o Inferno: e basta uma travessia. O Leozino foi à caçada. A Dida acuava uma preá atrás d’outra. Em pouco, o embornal estava repleto. A tardinha, rumorosa de bichos do chão e de bichos das árvores, se achegava. Bateram pra casa, felizes. (Palavrinha perigosa). Dessas felicidades que precedem a chegada de mau tempo. A cadelinha, fiel, saltitava em derredor, em festa. Ele se desfazia em carinhos praquele animalzinho. E assim foram as coisas. O fio do Destino preparando a teia.

E pôde sentir, ainda, em sua cama, em sua mulher, o calor d’algum que recém saíra. Gritou as bravatas que todo homem grita quando seu altar de devoção é profanado. Ela: não disse palavra, nem disse nome, nem desdisse de nenhuma das acusações. Ele: não lançou o punho contra aquela que tanto amava. Não teve coragem. Uma dor de espinho que fura o coração — não mais a palma — lhe atravessava. Sangrava dos olhos; infeccionava do coração. Não podia crer. Em quando, a Razão lhe gritava as factuais certezas; depois, o coração o tentava enganar, despistoso. Um homem cuja costela se partira; cujo recanto de amor se envenenara do mais torpe dos venenos. Um aceiro se abrira em seu sonho. A cabeça zonha picotava. Realidade medonha. Dormiu no sereno. Mula enfeitada. Foi incapaz de reagir. Foi incapaz de tirar a vida do que era sua vida. Não se foi ele, e deixou que ela ficasse. Separou seu corpo do dela, mas seu coração havia muito não mais lhe pertencia. Nunca mais foi a Riachão. Vergonha. Temia o veneno das bocas desdentadas das gentes, serpenteando a cadeia do alheio. Mas ela… As nuvens de tempestades nunquinha que se desanuviaram daqueles olhos. E partiu pro mundo. Caiu na vida-de-profissão. Sumiu-se. O Leozino chorou, copiosamente, feito criancinha, dia-e-noite. Amanheceu com a alma rasurada e a pele escurecida. Mandou ir s’embora a peonada. Abandonou a vida vivida; passou a viver meio morrendo. As ervas daninhas tomaram conta de suas terras. Ele atravessara, pelas mãos daquela Terta, pr’outra margem do riacho.

E a Dida… Nunquinha que se abandonava dele. Olhava candidamente pro farrapo, seu dono. Lambia-lhe as mãos. Ele fazia menção de afagar-lhe a cabeça. Somente o gesto. Caía novamente na escuridão do sofrer. É… Coisas de traição. E a Dida não caçava mais. Ouvia um estalo na ramagem, esticava as orelhas, mas não se ia passarinhar preá. Sabia que seu dono não caçaria mais. Não se embrenhava no sapezal. Não latia. Ficava. Justosa, dividindo as angústias silenciosas.

Mas, uma travessia, como a do Leozino, era pra tudo ou nada. E se deu que um cão gordo de magreza e sarna, furtivo, veio se exibir nas barras da varanda. O homem, hirto em sua inércia, não o enxotou. A Dida se aprumou. Lançou olhar triste ao dono. E ele viu naqueles olhos: as mesmas nuvens que prenunciam tempestades. Era o cio. E a cadelinha, no seu pensar canino, viu-se na dúvida da fidelidade ao dono: vainãovai; vainãovai. Foi. E se sumiu no mundo, atrás do macho abusado, refesteloso. O Leozino ficou em sua paradeza. Ruminou longamente. Agora era só, feito de abandono seu existir. Até mesmo sua Dida, de fidelidade desmedida, caíra no atraiçoado. Ê vida entortada. Curva de rio. Desavisado, sempre: como pudera ela, ir s’embora, justo na hora de maior precisão? O mundo, pensava, era feito de malfeitos e desusanças.

E solidão é a flor negra que goteja pétalas. Frutifica, do coito com o Amor, frutos escurecidos. E a sementeira: estéril. Era o que era, pr’ele. Sem mais…

Mas o rio da vida — o divisório — seguiu. Vários sóis e várias luas brilharam. O Leozino já cria, mesmo, na perenidade negra de sua condição. E foi quê. Tarde rumorenta. Calor descabido. Ar quente nas ventosas. E veio um vulto de mulher, conhecido, arquejar-se em sua varanda festejada de matagal e abandono. E era ela. De cara mais que deslambida; de feição mais que desfazida. Chororou-se. Desfiou um terço de lamúrias que rezavam de arrependimento e juras; de justificativas pra o injustificável; de verdades mentirosas e mentiras verdadeiras. Vinha desgrenhada, descabelada, mastigada da usança de mãos matutas. O corpo quebrado do manuseio macho incircunstancioso. Luxuriosa. De pancadas de brutões e de bebedeiras. O cio passara, e pedia pouso, abrigo. Caíra na vida do entrecoxas, e agora, jurava amor eterno. O Leozino ouviu tudo, tintim. Silencioso e ruminante. Sentia o coração ferventado de sofrer, de pequenice feito, agigantar-se de saudade. Aquele amor nunca morrido, renascia, feito erva regada. Aquela que sempre fora sua razão de vida… Pedia regresso. Na vontade cega e rouca, manda o coração apaixonado. Mas, o Leozino conhecia a outra margem do rio. Aquela margem regateada de negror. A Razão clarividenciou. Viu, naqueles olhos, resquícios das nuvens negras de tempestade. Ficanãofica; ficanãofica. Não deixou ficar. Sentindo uma navalha enferrujada cortando o peito-Leozino, não deu a graça de seu perdão. Enxotou a Terta, como somente se faz com cão sarnento, raivoso e trairante. E ela se foi, pra sua margem da vida, pra o nunca mais. Ele chorou um mar. Febril. Dormiu uma noite sem estrelas e sem lua. E o imaginário das gentes jamais se esqueceu: era sua vida feita de assoreio, e só.

Mas, são os pesos, na balança frouxa. E foi numa tardinha de vermelhidão e quentura que a Dida ressurgiu. De magreza feita, repleta de sarnas e carrapatos. Vinha desancada de tanta fanfarronice canina. Do cio. De sede e fomes feita. Orelhas murchas. Desconfiosa. Esgueirou-se pela barra da varanda. Grunhuiu apelos. Fungou. Falou a língua remorçosa dos cães. Deitou-lhe aos pés, submissa. Penitente, rastejante, angariando perdões. Lambidosamente. Novamente os olhos do Leozino se marejaram. Uma nova enchente. Abaixou, encurvando-se pro mundo; agarrou a bichinha ao colo; grudou-a ao peito. Chorou sofridamente. Beijou-a seguidas vezes. Prometeu cuidados. Investigava, sôfrego, suas machucaduras. A Dida o lambia, beijosa e retributiva; orelhas minguadas, fixou seus olhinhos miúdos nos dele. O Leozino, revivo, viu aquelas nuvens de tempestade, eternas pairantes nos olhos das fêmeas, relampejantes nas janelas d’alma da Dida. E perdoou-a. Sem condições; sem mas, nem mais.

Valdir Moreira

É poeta e contista. O conto História de um amor verdadeiro (recompensas) recebeu o primeiro prêmio no IV Concurso de Literatura de Francisco Beltrão (PR), em 2003. Integrada o livro inédito O Imaginário das gentes.

Rascunho