Hereges

Trecho do novo romance de Leonardo Padura
Ilustração: Theo Szczepanski
08/09/2015

1.
Havana, 1939

Daniel Kaminsky levaria vários anos para se habituar ao barulho esfuziante de uma cidade que se levantava sob a mais indisfarçada algaravia. Havia descoberto logo que ali tudo se tratava e se resolvia aos gritos, tudo rangia por causa da ferrugem e da umidade, os carros avançavam entre as explosões e o ronco dos motores ou os longos bramidos das buzinas, os cães latiam com ou sem motivo e os galos cantavam até a meia-noite, enquanto cada vendedor anunciava sua presença com um apito, um sino, uma corneta, um assovio, uma matraca, uma flauta de bambu, uma quadrinha bem rimada ou um simples berro. Ele tinha encalhado numa cidade na qual, ainda por cima, toda noite, às nove em ponto, retumbava um canhonaço sem que houvesse guerra declarada nem muralhas para fechar, e onde sempre, sempre, em épocas de bonança e em momentos de aperto, alguém escutava música, e cantava.

Em seus primeiros tempos de Havana, muitas vezes o menino tentaria evocar, tanto quanto lhe permitia sua mente povoada de recordações, os silêncios pastosos do bairro dos judeus burgueses na Cracóvia, onde havia nascido e vivido seus primeiros anos. Por pura intuição de desenraizado, buscava aquele território magenta e frio do passado como uma tábua capaz de salvá-lo do naufrágio em que sua vida tinha se transformado, mas quando suas recordações, vividas ou imaginadas, tocavam na terra firme da realidade, imediatamente reagia e tentava fugir dela, pois na silenciosa e escura Cracóvia de sua infância um vozerio excessivo só podia significar duas coisas: ou era dia de feira livre ou algum perigo rondava. E nos últimos anos que passara na Polônia o perigo chegara a ser mais frequente que as feiras. E o medo, uma companhia constante.

Como era de se esperar, quando Daniel Kaminsky caiu naquela cidade de estridências, durante muito tempo captaria os embates daquele explosivo estado sonoro como uma rajada de alarmes capaz de assustá-lo, até que, com o passar dos anos, conseguiu entender que nesse novo mundo o mais perigoso costumava vir precedido pelo silêncio. Vencida aquela etapa, quando por fim conseguiu viver entre os ruídos sem ouvi-los, feito respirar o ar sem se ter consciência de cada inspiração, o jovem Daniel descobriu que já havia perdido a capacidade de apreciar as qualidades benéficas do silêncio. Mas se orgulharia, sobretudo, de ter conseguido se reconciliar com o estrépito de Havana, pois, ao mesmo tempo, tinha atingido seu obstinado objetivo de sentir que pertencia àquela cidade turbulenta onde, para a sorte dele, havia sido jogado pelo impulso de uma maldição histórica ou divina – e até o final de sua existência teria dúvida sobre qual dessas atribuições seria a mais acertada.

No dia em que Daniel Kaminsky começou a sofrer o pior pesadelo de sua vida e, ao mesmo tempo, a ter os primeiros vislumbres de sua sorte privilegiada, um envolvente cheiro de mar e um silêncio intempestivo, quase sólido, pairavam sobre a madrugada de Havana. Seu tio Joseph o havia acordado muito mais cedo que de costume para mandá-lo ao Colégio Hebreu do Centro Israelita, onde o menino já recebia instrução acadêmica e religiosa, além das indispensáveis lições de espanhol, que permitiriam sua inserção no mundo multiforme e heterogêneo onde viveria só o Santíssimo sabia por quanto tempo. Mas o dia começou a se mostrar diferente quando, depois de dar-lhe a benção do Shabat e uma saudação pelo Shavuot, o tio quebrou sua reserva habitual e depositou um beijo na testa do menino.

O tio Joseph, também Kaminsky e, obviamente, polonês, conhecido naquele tempo como Pepe Carteira – dada a maestria com que desempenhava seu ofício de fabricante de bolsas, carteiras e pastas, entre outros artigos de couro – sempre havia sido, e seria até a morte, um estrito cumpridor dos preceitos da fé judaica. Por isso, antes de lhe permitir provar o desjejum já servido sobre a mesa, recordou ao jovem que não deviam fazer apenas as abluções e orações habituais de uma manhã muito especial, pois a graça do Santíssimo, bendito seja Ele, havia querido que caísse no Shabat a comemoração do Shavuot, a milenar festa maior consagrada a recordar a entrega dos Dez Mandamentos ao patriarca Moisés e a jubilosa aceitação da Torá por parte dos fundadores da nação. Porque nessa madrugada, como lhe recordou o tio em seu discurso, também deviam elevar muitas outras preces a Deus para que Sua divina intercessão os ajudasse a resolver da melhor forma aquilo que, no momento, parecia ter se complicado da pior maneira possível. Embora talvez as complicações não os atingissem, acrescentou e sorriu com malícia.

Após quase uma hora de orações, durante a qual Daniel pensou que ia desmaiar de fome e de sono, Joseph Kaminsky afinal lhe indicou que podia se servir do farto desjejum, no qual se sucederam o leite de cabra morno (que, por ser sábado, a italiana Maria Perupatto, apostólica e romana, e por essa condição escolhida pelo tio como “gói do Shabat”, havia deixado sobre os carvões em brasa do fogareiro), as bolachas quadradas chamadas matzot, geleias de frutas e até uma boa porção de baklavá transbordante de mel, um banquete que faria o menino perguntar-se de onde o tio havia tirado o dinheiro para tais luxos: porque do que Daniel Kaminsky se lembraria daqueles anos, pelo resto de sua longa presença na Terra, para além dos tormentos provocados pelo barulho do ambiente e da semana horrível que viveria a partir daquele instante, seria da fome insaciável e insaciada que sempre o perseguia, como o mais fiel dos cães.

Depois de um café inusitadamente lauto, o menino aproveitou a longa permanência de seu tio constipado nos banheiros coletivos do cortiço onde moravam para subir ao terraço do edifício. A laje ainda estava fresca naquelas horas anteriores ao nascer do sol e, desafiando as proibições, ele se atreveu a ir até a sacada para observar o panorama das ruas Compostela e Acosta, onde havia se instalado o coração da cada vez maior colônia judaica de Havana. O sempre lotado edifício do Ministério do Interior, um antigo convento católico dos tempos coloniais, estava totalmente fechado, como se estivesse morto. Pela arcada contígua, sob a qual corria a rua Acosta, formando o chamado Arco de Belém, não passava ninguém nem coisa nenhuma. O Cine Ideal, a padaria dos alemães, a casa de ferragens dos poloneses, o restaurante Moshé Pipik, que o apetite do menino sempre olhava como a maior tentação da face da Terra, estavam com as cortinas baixadas, as luzes das vitrines apagadas. Embora nos arredores vivessem muitos judeus e, portanto, a maioria daqueles negócios fosse de judeus e em alguns casos permanecessem fechados aos sábados, a quietude imperante não se devia somente à hora ou a que estivessem no Shabat, dia de Shavuot, jornada de sinagoga, mas sim ao fato de que nesse instante, enquanto os cubanos dormiam profundamente no feriado pascal, a maioria dos asquenazes e sefaradis da região escolhia suas melhores roupas e se preparava para sair às ruas com as mesmas intenções que os Kaminskys.

O silêncio da madrugada, o beijo do tio, o inesperado desjejum e até a feliz coincidência de que o Shavuot caísse no sábado, na realidade, só tinham confirmado a expectativa infantil de Daniel Kaminsky quanto à previsível excepcionalidade do dia que se iniciava. Porque o motivo do seu despertar antecipado era que estava anunciada, para algum momento próximo ao amanhecer, a chegada do transatlântico S.S. Saint Louis ao porto de Havana. O navio havia zarpado de Hamburgo quinze dias antes, e a bordo viajavam 937 judeus autorizados a emigrar pelo governo nacional-socialista alemão. E entre os passageiros do Saint Louis estavam o médico Isaías Kaminsky, sua esposa Esther Kellerstein e a pequena filha de ambos, Judit, ou seja, o pai, a mãe e a irmã do pequeno Daniel Kaminsky.

O LIVRO
Em Hereges (a ser lançado em breve pela Boitempo), Leonardo Padura cria uma mistura de romance histórico e noir, resultado de anos de investigação sobre a perseguição aos judeus. O ponto de partida é um episódio real: a chegada ao porto de Havana do navio S.S. Saint Louis, em 1939, onde se escondiam mais de novecentos refugiados vindos da Alemanha. A embarcação passou vários dias à espera de uma autorização para o desembarque. No romance, o garoto Daniel Kaminsky e seu tio aguardavam nas docas, trazendo um pequeno quadro de Rembrandt que pertencia à família desde o século 17 e que esperavam utilizar como moeda de troca para garantir o desembarque da família que estava no navio. No entanto, o plano fracassa, a autorização não é concedida e o navio retorna à Alemanha, levando também a esperança do reencontro. Quase setenta anos depois, em 2007, o filho de Daniel, Elías, viaja dos Estados Unidos a Havana para esclarecer o que aconteceu com o quadro e sua família.

Leonardo Padura

Nasceu em Havana em 1955. Formado em Letras pela Universidade de Havana, trabalhou como escritor, jornalista e crítico literário até a década de 1990, quando ganhou reconhecimento internacional por uma série de romances policiais estrelando seu mais famoso personagem, o detetive Mario Conde. Mas foi com o romance O homem que amava os cachorros (Boitempo) que Padura se consolidou no mundo literário, ganhando prestígio para além do gênero policial. Traduzida para vários países (como Espanha, Portugal, França, Alemanha, Estado Unidos e Inglaterra), a obra recebeu diversos prêmios internacionais. Seu romance mais recente, Hereges, ganhou o X Prêmio Internacional de Romance Histórico Ciudad de Zaragoza e foi finalista dos prêmios Médicis e Fémina. Leonardo Padura ganhou recentemente o Prêmio Princesa das Astúrias, pelo conjunto de sua obra.

Rascunho