Herança

Conto de Concha Rousia
Concha Rousia, autora de “As sete fontes”
01/11/2006

O trajecto desde esse pequeno lugar da Amaia até Santiago servia-lhe para ir deixando atrás as teias de aranha que se lhe pousavam em redor da sua mente cada vez que fazia uma visita à casa dos pais. Modesto aproveitava as reviravoltas da estrada para deixar entrar as imagens duma paisagem em calma, que contrasta co seu ânimo quando faz o caminho de volta.

Quando por fim chega à rua Alfredo Branhas, onde mora com Núria, a sua mulher, e Daniel, o seu filho de quatro anos, com frequência vem já mais calmo; ainda assim Núria nunca sabe de que humor chegará, e aguarda por ele com impaciência até que sente parar-se o elevador no quinto andar, e vê sair dele a Modesto. Às vezes ele demora-se mais do habitual e ela enche-se de fitar polo olho de vidro da porta. Hoje já viu sair do elevador vários vizinhos, incluído o presidente da comunidade de proprietários, que pensa que, por ser farmacêutico, e estar podre de dinheiro, é melhor do que ninguém. O mui fachendoso vem de passear o cão, que deixa um cheiro no elevador que a Núria quase a faz trouçar, ora ela nunca lhe diz nada, além de bom dia.

Núria não gosta muito destas visitas de Modesto à aldeia, e tão-pouco são nenhum prazer para Modesto, mas por isto ou por aqueloutro ele de vez em quando tem de se deslocar, logo de sair do escritório, ao lugar onde nasceu. Modesto trabalha numa agência de seguros; começara trabalhando na captação de clientes, mas agora tem um posto de maior responsabilidade. Modesto é um homem que sabe superar-se, e superar as ataduras que o puderem frenar.

Modesto está farto de ter que ir a calmar a seu pai para que não se meta em leias com os vizinhos. E tudo por parvadas que não levam nem trazem… que se o vizinho da Linheira lhe arrancou o marco com o tractor e agora o pôs uma quarta mais para dentro na nossa leira, roubando-nos uma cincha do nosso terreno… Se isso não vale nada, enchia-se de lhes repetir Modesto, mas o velho não atendia a razões, como se tivesse os ouvidos cegados. O que tinha cegado era o entendimento, e Modesto estava canso daquelas liortas de seu pai. Em mais duma ocasião já se propusera nunca mais ir quando o chamarem por causa disso. Mesmo hoje quando falou com Núria no telemóvel lho dissera… “esta é a última vez…” …mentes os seus velhos o observavam em silêncio. Ora que ele já dissera isso mesmo uma cheia de vezes, mas depois quando tinha que vir vinha. Afinal ele era seu pai, que tanto sacrifício fizera para que ele pudesse estudar e assim librar-se das ataduras e a escravidão do trabalho da terra.

Ele era o único herdeiro. Modesto era só, filho morgado que diriam os do lugar, e a ele lhe correspondia mirar polos velhos. Que pouco beneficio lhe trazia a ele o que noutro tempo o teria convertido em candidato cobiçado para casar com as melhores moças. Nem sequer tinha quem lhe desse uma ajudinha para tentar convencer a seu pai de que deixasse de se preocupar polas terras, que ele não vai tirar proveito nenhum delas. Modesto não as quer para cousa nenhuma, ora isso não lho diz tão claramente, embora se esforça para dar-lho a entender. Mas seu pai não compreende, seu pai é um homem teimoso como uma mula. E olha que mania ele tem de defender, a custo da saúde própria e da dos demais, aqueles torrões que não servem para nada.

Hoje mentes guia o seu automóvel caminho de Santiago, alegra-se duplamente por não imitar a seu pai. Sobretudo alegra-se por Daniel, seu filho, que não terá que se envergonhar de ter um pai com tão pouco mundo como o que ele tem de aguentar. Sempre pelejando com algum vizinho… e sempre por miudalhos… “que se nos cortou quatro carvalhos da nossa touça”… “que se passou co carro do esterco por cima das nossas batatas tendo passagem pola canelha”… que se… Modesto tem cousas bem mais importantes polas que se preocupar, como lhe lembra o seu pequeno telemóvel que soa insistentemente…

— Diga!

— …

— Sim, já vi o teu e-mail e já fiz esses câmbios na pagina web…

— …

— Cojonudo…! Se queres vemo-lo no Budi mentes nos tomamos uns whiskies, vai ser um partidaço...

Que diferente a sua vida à do seu pai, que vive como se o tempo estivesse detido; anda já nos setenta anos, podia é viver como um senhor sem ter que trabalhar nem ocupar-se de cousa nenhuma, e porém segue igual que sempre… “nunca mudará” — pensa Marcial enquanto o seu automóvel se detém já ante a primeira das luzes que regulam o trânsito da cidade. A cotio a ele amolam-no estas luzes, que o obrigam a se deter aqui e acolá, mas hoje, concentrado nas suas cavilações nem sequer se apercebe do número de vezes que tem de parar e arrancar ate chegar à grande porta metálica que se abre automaticamente e lhe permite meter-se para a garagem do prédio. Baixa a rampa, vira à esquerda e dirige-se ao lugar assinalado com o número cinco e coa letra “B”, o seu espaço.

Hoje quando Núria lhe abre a porta, logo de se segurar, guichando polo buraquinho, de que era ele, encontra-o alvorotado. Modesto passa adentro e fecha a porta cum golpe que se deveu ouvir em todo o prédio. Núria duvida entre perguntar-lhe o que lhe acontece ou oferecer-lhe a ceia. Depois de uns segundos decide-se:

— Eu pensava, a julgar polo teu tom de voz quando falamos por telefone, que vinhas algo mais tranquilo…

Enquanto ela fala, Daniel, que já corria a saudar a seu pai, fica quedo espreitando o que dizem…

— É claro que vinha! Se já me passara o reganho de todo…

— Então não entendo…

— Não entendes? pois há mais como tu que não entendem e vai haver que lho meter polos olhos…

Núria enrrugou a testa tentando adivinhar de que dianhos estava a falar seu homem; e também era aquela um aceno de preocupação por ele, mesmo parece que perdera o juízo; a face branca como a camisa, os dentes apertados, os olhos apequenados… Núria não gostava de o ver assim.

— Que che passou logo? Conta-me, que me tens o coração num punho.

— Que me ia passar?! Pois o de sempre, o repugnante do boticário que estacionou outra vez acima da raia, metendo o cu do seu carro no meu espaço na garagem! Se não lhe cabem os cornos que os corte…!

— Esse é um soberbo…, Ora nem é para que te ponhas assim, os carros cabem bem, que aqui os espaços são grandes, calma-te que che vai fazer mal…

— Que me calme?! Já verás como me calmo…!

Ainda bem não rematara a frase e já se dirige para a porta, sai, caminha polo patamar até a porta do vizinho. Núria quer ir trás dele mas detém-se no limiar da sua casa. Daniel está ao seu lado observando com atenção; com suas mãozinhas aperta então com força contra ó seu peito o seu brinquedo, um pequeno camião de plástico, mentes fita como seu pai bate iracundamente, com ambos punhos, na porta do vizinho.

Concha Rousia

Nasceu em 1962 em Covas, uma pequena aldeia da Galiza. É psicoterapeuta em Santiago de Compostela. Em 2004, ganhou o Prémio de Narrativa do Concelho de Marim (Galiza). Tem publicado poemas e relatos em diversas revistas galegas. Colabora nos jornais Novas da Galiza e A Peneira, e no diário digital Vieiros. O seu primeiro romance, As sete fontes, foi publicado em formato e-book pola editora digital portuguesa ArcosOnline (www.arcosonline.com).

Rascunho