Helena, a mesma

Conto inédito de Fernando Fiorese
Ilustração: Marcelo Frazão
01/03/2022

Mesmo após uma vida inteira, sempre que necessita ir à cidade ou percorrer a fazenda para verificar a quantas andam a lavoura e o gado, o Coronel Menelau acomoda a mulher numa cadeira de espaldar baixo, manda que faça um nó na ponta dos longos cabelos e o introduz na gaveta mais alta da cômoda do quarto do casal, fechando-a com todo o cuidado para não macular os fios. Em seguida, com a chave que traz presa ao pescoço, tranca o móvel e se despede da esposa, acariciando suas brancas e ralas madeixas. Dona Helena sujeita-se ao mórbido ritual com um misto de resignação e altivez. Exceto quando o Coronel demora e é necessário administrar as suas mezinhas ou servir alguma refeição, os criados evitam incomodá-la para não acentuar a humilhação. No mais das vezes, guardam um respeitoso e diligente silêncio, a postos para o caso dela tocar o pequeno sino de prata que tem sobre a cômoda. Desconhecem eles que, para Dona Helena, humilhação maior é ter que se banhar com a ajuda de duas criadas, expondo-lhes as pernas secas e varicosas, os seios murchos, o ventre flácido e deformado por três hérnias, as nádegas só ossos, os poucos pelos brancos sobre o sexo. Humilhação maior é olhar-se a qualquer hora no espelho e defrontar os lábios frouxos, a boca banguela, o interminável rol das rugas, as sobrancelhas de fios cada vez mais esparsos, os decaídos lóbulos das orelhas, o inelutável buço. Humilhação maior é ter memória.

Após escovar os cabelos demorada e cuidadosamente, Dona Helena tratava de arranjá-los num coque para esconder o que restara das marcas da gaveta quando o Coronel Menelau, recém-chegado de Nova Esparta, saiu-se com esta: como a esposa completasse 87 anos daí a uma semana, decidiu que não haveria melhor presente do que levá-la à cidade para um passeio. Talvez algumas compras e o que mais lhe aprouvesse. Há quantos anos Dona Helena não visitava a cidade? Em dezenas, bem mais que os cinco dedos da mão. Desde depois da guerra. O marido jurara em cruz: enquanto houvesse alguém vivo para lembrar do acontecido, Dona Helena não punha os pés em Nova Esparta. Decerto, todos daquela época já estavam mortos e enterrados. A fuga da mulher do Coronel Menelau com o Capitão Páris não era agora mais do que uma lenda, que os poetas adornavam com adjetivos e exclamações e os cronistas situavam num tempo remoto e imaginoso. Talvez o episódio ainda fizesse parte do repertório do teatro de bonecos mantido pelos filhos do falecido Neca Fiteiro e fosse representado por ocasião das festas da padroeira. Ou perambulasse por essas terras de meu Deus no picadeiro de algum circo como um melodrama cheio de sangue falso e demasia de paixão. De qualquer forma, Helena, Menelau, Páris, Heitor, Aquiles e tantos outros não passavam agora de nomes estranhos e distantes, personagens que frequentavam cada vez menos as conversas na barbearia e no armazém. Como causo que se conta aos de-fora ainda devia provocar algum espanto, mas só.

Com a notícia, Dona Helena se desinteressou do coque, mesmo porque o cabelo fino, escorrido e ralo não ajudava a segurar os grampos. O corpo já não capaz de alegria ou medo, à exceção dos olhos. E no fundo deles, os dois sentimentos combatiam. Também na memória. Alegria de ver gente, de passear pela Rua do Comércio, de ouvir o trem chegando à estação, de bater os pés para apressar o início do filme, de ser olhada com admiração e inveja na entrada do baile. E, igual, o medo puro e pungente de quem um dia foi apontada na rua e ficou sozinha no banco da igreja e teve a hóstia negada e as portas fechadas pelas melhores famílias do lugar. No entanto, o duelo destas emoções tão antigas não suscitava a menor agitação. Talvez um brilho fortuito nos olhos e certo tremor nos lábios secos e rugosos. De resto, o corpo de Dona Helena era todo uma espera sem sobressaltos. Espera apenas, alheia aos acontecimentos, sem sujeito ou objeto.

A charrete atravessou a Ponte Velha e alcançou a Praça da Matriz não sem merecer alguns olhares — curiosos, mas logo desinteressados. Quase nada restava nas ruas e casas das lembranças a custo guardadas por Dona Helena. Afinal, não se tratava mais da antiga vila de Sant’Ana dos Arriados, fundada por um tal Coronel Licurgo, mas da cidade rebatizada de Nova Esparta e crescida em anos, moradores e modernidades. Já nada havia ali que pudesse pungir a sua memória ou encher os seus olhos. As notícias que tivera durante décadas seguidas acerca do progresso do lugar não eram suficientes: sentia-se como que perdida em terra estrangeira. Tão mais sua, cômoda e acolhedora a cidade que trazia na memória… Dona Helena embirrou de não apear da charrete. Por nada deste mundo. O marido insistiu duas, três vezes. Ao menos para um sorvete, que o sol estava de rachar. Por nada deste mundo! O Coronel acabou colocando a teimosia na conta dos achaques da idade. E para não perder de todo a viagem, achou por bem comprar na mercearia do finado Geraldo Careca uma ou outra coisinha de que estava precisado.

Debaixo do sol a pino, não poucos olharam com distraída estranheza aquela velha encarquilhada, trajando um vestido preto de mangas compridas, roupa de antigamente. Dona Helena conservava a resignação e a altivez de toda uma vida, o leque fechado entre as mãos e a vista passeando a esmo pelas gentes e lojas da Rua do Comércio. Até que esbarrou num rosto tão desfigurado pelos anos quanto o seu, mas cujos traços tinham algo de familiar. Não todos os traços, porque àquela altura não passava da garatuja do que fora um dia. Os olhos apenas. E talvez alguma coisa dos lábios, que pareciam muito mais jovens do que o resto do corpo. Um homem em ruínas, malparado sobre as próprias pernas, calvo e recurvo, mas ainda com olhos e lábios de adolescente.

Era o Capitão Páris. Estava na esquina da Rua do Ginásio, cerca de 20 metros da charrete, e olhava fixo para Dona Helena. Depois de tantos e tantos anos, enfim aqueles olhares se reencontravam, quiçá pela última vez. O sol deu a ver uma lágrima nos olhos do Capitão. Incontinente, Dona Helena abriu o leque e escondeu o rosto. Não podia oferecer a visão do seu triste fantasma ao amor de uma vida inteira. O Capitão Páris abaixou a cabeça antes de subir a Rua do Ginásio em direção ao Buraco-Quente.

Fernando Fiorese

É poeta, escritor, ensaísta e professor. Dentre outras obras, publicou Corpo portátil: 1986-2000 (reunião poética, 2002), Dicionário mínimo: poemas em prosa (2003), Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito (ensaio, 2003), Um dia, o trem (poemas, 2008), Aconselho-te crueldade (contos, 2010) e Um chão de presas fáceis (romance, 2015). O conto Helena, a mesma integra a coletânea inédita Divertimentos.

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