Helen no morro

Conto de Rubem Mauro Machado
Colagem: Cris Guancino
01/04/2005

Um fósforo risca de baixo para cima as ladeiras difíceis do morro. Em ziguezague, flamejante, vai saltando com agilidade as valetas negras, veias abertas por onde escorrem descaso e podridão.

Passados pouco mais de seis meses, não há favelado do morro do Leme que não conheça Helen. Camiseta e bermuda jeans a cobrir com escassez o corpo magro, ossudo, tênis sem meia, pernas compridas e sardentas expostas mesmo nos dias em que a chuva salpica lama para todos os lados, cabelo rubro cortado curto, rente às orelhas, ela troca beijinhos, chama cada crioulo pelo nome, estica conversas no sotaque carregado; e três vezes por semana dá gratuitamente aulas de inglês para um grupo de adolescentes carentes; nos domingos, bebericando cerveja enquanto mergulha rodelas de lingüiça no prato de farinha, ensaia ao lado do marido, David, uns passos na roda de samba, com surdo, pandeiro e cavaquinho, que se forma todo início de tarde no pátio cimentado do Centro Comunitário.

Esposa de alto executivo de uma multinacional, Helen mora numa cobertura da Avenida Atlântica e poderia estar se exibindo em jantares e coquetéis, cultivando relações e tendo o nome citado na coluna social. Mas nada a aborrece mais do que a futilidade; e o cinismo da burguesia lhe embrulha o estômago. Formada em literatura por Cambridge, não tem televisão, só foi uma vez ao Municipal e sua principal atividade, além das aulas e das caminhadas matinais no calçadão, é a leitura dos melhores ficcionistas nos cinco idiomas que domina. Seus amigos são, salvo quatro ou cinco exceções, gente de salário mínimo (e isso quando tem emprego) e pele escura, mas cuja alegria de viver é motivo de espanto. Helen garante que um dia ainda vai morar no morro. David não contesta a mulher, cuja visão social parece compartilhar, mas, quem sabe mais realista, não demonstra o mesmo entusiasmo em relação a uma tão radical mudança de endereço, sobretudo para quem nasceu inglês.

Na última quinta-feira, driblando riachos suspeitos, Helen subiu mais uma vez o morro, para discutir com os dirigentes do Centro Comunitário a possibilidade de se montar lá uma biblioteca. Um negrinho de pés descalços, de uns nove anos, que empinava uma pipa na curva da subida, espreitou em silêncio a sua passagem. E, quando ela desceu, ele gritou, como se estivesse lá só no aguardo dessa oportunidade:

— Eles só querem o teu dinheiro. Ouviu o que eu disse, gringa? Eles querem é a tua grana.

Helen apertou o passo, mas o negrinho a seguiu até o fim da ladeira, gritando o tempo todo às suas costas:

— Gringa, eles só querem o teu dinheiro. Só isso.

Rubem Mauro Machado

É escritor, jornalista e tradutor. Autor de livros como A idade da paixãoO executante e Lobos.

Rascunho