Poemas de Gregory Corso

Leia os poemas traduzidos "Epitáfio", "Suicídio no Greenwich village", "O Naufrágio do Nordling", "Ela não sabe que ele pensa que é deus"
Gregory Corso, poeta estadunidense
03/06/2014

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

EPITÁFIO

Spirit
is Life
It flows thru
the death of me
endlessly
like a river
unafraid
of becoming
the sea

EPITÁFIO

Espírito
é Vida
que corre através
da minha morte
infinitamente
como um rio
sem medo
de se tornar
o mar

…..

GREENWICH VILLAGE SUICIDE
Arms outstretched

Hands flat against the windowsides
She looks down
Thinks of Bartok, Van Gogh
And New Yorker Cartoons
She falls

They take her away with a Daily News on her face
And a storekeeper throws hot water on the sidewalk

SUICÍDIO NO GREENWICH VILLAGE

Braços muito abertos
Mãos estendidas contra os batentes das janelas
Ela olha para baixo
Pensa em Bartók, em Van Gogh
E em cartuns da New Yorker
Ela cai

Levam-na com o Daily News aberto sobre seu rosto
E um dono de loja joga água quente na calçada

…..

THE WRECK OF THE NORDLING
One night fifty men swan away from God

And drowned
In the morning the abandoned God
Dipped His finger into the sea
Came up with fifty souls
And pointed towards eternity

O NAUFRÁGIO DO NORDLING

Uma noite cinquenta homens nadaram para longe de Deus
E se afogaram
De manhã o Deus abandonado
Mergulhou Seu dedo no mar
Saiu de lá com cinquenta almas
E apontou para a eternidade

…..

SHE DOESN’T KNOW HE THINKS HE’S GOD
He is God

Jim Blaze is God
He stands by the windows smiling
watching a child walk by
‘I am God!’ he smiles. He knows

His wife taps him on the shoulder
‘Jim the baby is sick will die
His fever is up. Get a doctor.’

Jim Blaze stands as though he were dead
with the health and freshness of life
exaggerated in his deathness
He stands a man stunned with the realization
that he’s God. He is God!

His wife pleads scream stamps the floor
pounds her fists against the wall
‘Jim the baby will die!’

ELA NÃO SABE QUE ELE PENSA QUE É DEUS
Ele é Deus
Jim Blaze é Deus
Ele fica na janela sorrindo
olhando para uma criança que passa
‘Eu sou Deus!’ ele sorri. Ele sabe

Sua mulher bate em seu ombro
‘Jim, o bebê está doente e vai morrer
A febre está alta. Chame um médico.’

Jim Blaze fica como se estivesse morto
com a saúde e a frescura da vida
exagerada em sua mortidez
Ele é um homem atordoado com a conclusão
de que ele é Deus. Ele é Deus!

Sua mulher grita suplica bate no chão
bate os punhos contra a parede
‘Jim, o bebê vai morrer!’

…..

1959
Uncompromising year — I see no meaning to life.

Though this abled self is here nonetheless,
either in trade gold or grammaticness,
I drop the wheelwright’s simple principle —
Why wave the garland? Why ring the bell?

Penurious butchery these notorious human years,
these confident births these lucid death these years.
Dream’s flesh blood reals down life’s mystery —
there is no mystery.
Cold history knows no dynastic Atlantis.
The habitual myth has an eagerness to quit.

No meaning to life can be found in this holy language
nor beyond the lyrical fabricator’s inescapable theme
be found the loathed find — there is nothing to find.

Multitudinous deathplot! O this poor synod —
Hopers and seekers paroling meaning to meaning,
annexing what might be meaningful, what might be meaningless.

Repeated nightmare, lachrymae, lachrymae —
a fire behind a grotto, a thick fog, shredded masts,
the nets heaved — and the indescribable monster netted.
Who was it told that red flesh hose be still?
For one with smooth hands did with pincers
snip the snout — It died like a yawn.
And when the liver sack was yanked
I could not follow it to the pan.

I could not follow it to the pan —
I woke to the reality of cars; Oh
the dreadful privilege of that vision!
Not one antique faction remained;

Egypt, Rome, Greece,
and all such pedigree dreams fled.
Cars are real! Eternity is done.
The threat of Nothingness renews.
I touch the untouched.
I rank the rose militant.
Deny, I deny the tastes and habits of the age.
I am its punk debauché… A fierce lampoon
seeking to inherit what is necessary to forfeit.

Lies! Lies! Lies! I lie, you lie, we all lie!
There is no us, there is no world, there is no universe,
there is no life, no death, no nothing — all is meaningless,
and this is too a lie — O damned 1959!
Must I dry my inspiration in this sad concept?
Delineate my entire stratagem?
Must I settle into phantomness
and not say I understand things better than God?

1959
Ano de intransigências — eu não vejo sentido na vida.
Ainda que este obscurecido ser apesar de tudo,
tanto em ouro dos negócios quanto na ausência da gramática,
eu abro mão do princípio simples do borracheiro —
Por que balançar a grinalda? Por que tocar o sino?

Penoso matadouro, estes notórios anos humanos,
estes nascimentos confiantes estas mortes lúcidas destes anos.
Carne sangue do sonho que rebaixa à realidade o mistério da vida — não existe mistério.
A fria história não conhece a Atlântida dinástica.
O mito comum está ansioso para se mandar.

Nenhum sentido para a vida será achado nessa língua sagrada
nem além do inescapável tema do fabricante de lirismo
será encontrado o odioso achado — não há nada para achar.

Múltiplas tramasmortais! Ó este pobre sínodo —
Esperançosos e buscadores falando sentido a sentido,
juntando o que talvez tenha sentido com o que não tem sentido algum.

Pesadelo repetido, lacrimae, lacrimae —
um fogo atrás de uma caverna, uma neblina espeça, mastros em retalhos,
as redes arremessadas — e o indescritível monstro capturado.
Quem foi que disse que o esguicho da carne vermelha permaneceria?
Porque alguém com mãos macias o fez com pinças
cortou o focinho — ele morreu como um bocejo.
E quando o saco do fígado foi puxado
eu não consegui segui-lo até a panela.

Eu não consegui segui-lo até a panela —
Eu despertei para a realidade dos carros; Oh
o terrível privilégio daquela visão!
Nem uma única facção antiga restou;

Egito, Roma, Grécia,
e todos estes sonhos de pedigree se foram.
Carros são reais! A eternidade está feita.
A ameaça da Pequenez se renova.
Eu toco o intocado.
Eu classifico os militantes rosas.
Nego, eu nego os gostos e os costumes destes tempos.
Eu sou o rebelde devasso… Um difamador feroz
buscando herdar o que for necessário para confiscar.

Mentiras! Mentiras! Mentiras! Eu minto, você mente, nós todos mentimos!
Não existe nós, não existe mundo, não existe universo,
não existe vida, nem morte, nem nada — tudo é sem sentido,
e também isso é uma mentira — Ó maldito 1959!
Devo eu secar minha inspiração nessa triste concepção?
Delinear o meu completo estratagema?
Devo eu me estabelecer no fantasmagórico
e não dizer que eu entendo as coisas melhor do que Deus?

…..

DEAR GIRL
With people conformed

Away from pre-raphaelite furniture
With no promise of Japanese sparsity
I take up house
Ready to eat with you and sleep with you

But when the conquered spirit breaks free
And indicates a new light
Who’ll take care of the cats?

QUERIDA GAROTA
Com as pessoas acomodadas
Longe da mobília pré-rafaelita
Sem qualquer compromisso com a dispersão japonesa
Eu assumo a casa
Pronto para comer com você e dormir com você

Mas quando o espírito conquistado retomar a liberdade
E indicar uma nova luz
Quem vai tomar conta dos gatos?

…..

SECOND NIGHT IN N.Y.C. AFTER 3 YEARS
I was happy I was bubbly drunk

The street was dark
I waved to a young policeman
He smiled
I went up to him and like a flood of gold
Told him all about my prison youth
About how noble and great the convicts were
And about how I just returned from Europe
Which wasn’t half as enlightening as prison
And he listened attentively I told no lie
Everything was truth and humor
He laughed
I laughed
And it made me so happy I said:
“Absolve it all, kiss me!”
“No no no no!” he said
and hurried away.

SEGUNDA NOITE EM NOVA YORK DEPOIS DE TRÊS ANOS
Eu estava feliz, eu estava borbulhantemente bêbado
As ruas estavam escuras
Eu acenei para um jovem policial
Ele sorriu
Eu fui até ele como uma enxurrada de ouro
E contei pra ele sobre minhas prisões juvenis
Sobre quão nobres e decentes eram os presos
E sobre eu ter acabado de voltar da Europa
A qual não me deu nem metade da sabedoria que me deu a prisão
E ele ouviu atentamente, eu não disse mentiras
Tudo era verdade e alegria
Ele riu
Eu ri
E aquilo me fez tão feliz que eu disse:
“Perdoe tudo, me dê um beijo!”
“Não não não não!” ele disse
e saiu correndo.

…..

WRIT ON THE EVE OF MY 32ND BIRTHDAY
I am 32 years old

and finally I look my age, if not more.
Is it a good face what’s no more a boy’s face?
It seems fatter. And my hair,
it’s stopped being curly. Is my nose big?
The lips are the same.
And the eyes, ah the eyes get better all the time.
32 and no wife, no baby; no baby hurts,
but there’s lots of time.
I don’t act silly any more.
And because of it I have to hear from so-called friends:
“You’ve changed. You used to be so crazy so great.”
They are not comfortable with me when I’m serious.
Let them go to the Radio City Music Hall.
32; saw all Europe, met millions of people;
was great for some, terrible for others.
I remember my 31st year when I cried:
“To think I may have another 31 years!”
I don’t feel that way this birthday.
I feel I want to be wise with white hair in a tall library
in a deep chair by a fireplace.
Another year in which I stole nothing.
8 years now and haven’t stole a thing!
I stopped stealing!
But I still lie at times,
and still am shameless yet ashamed when it comes
to asking for money.
32 years old and four hard real funny sad bad wonderful
books of poetry
— the world owes me a million dollars.
I think I had a pretty weird 32 years.
And it weren’t up to me, none of it.
No choice of two roads; if there were,
I don’t doubt I’d have chosen both.
I like to think chance had it I play the bell.
The clue, perhaps, is in my unabashed declaration:
“I’m good example there’s such a thing called soul.”
I love poetry because it makes me love
and presents me life.
And of all the fires that die in me,
there’s one burns like the sun;
it might not make day my personal life,
my association with people,
or my behavior toward society,
but it does tell me my soul has a shadow.

ESCRITO NA VÉSEPERA DE MEU 32º ANIVERSÁRIO
Tenho 32 anos de idade
e finalmente eu pareço ter minha idade, se não mais.
Será uma boa cara a que não é mais a cara de um garoto?
Ela parece mais cheia. E meu cabelo,
ele parou de ser encaracolado. Meu nariz cresceu?
Os lábios são os mesmos.
E os olhos, ah, os olhos vão ficando sempre melhores.
32 e sem mulher, sem bebê; sem dores do bebê,
mas ainda há tempo de sobra.
Eu não me comporto mais como um bobo.
E por causa disso eu tenho que ouvir de pseudo-amigos:
“Você mudou. Você era tão maluco, tão legal.”
Eles não se sentem bem comigo quando estou sério.
Deixe-os ir ao Radio City Music Hall.
32; vi toda a Europa, conheci milhões de pessoas;
fui bacana com algumas, péssimo com outras.
Eu me lembro de meu 31º ano, quando eu gritei:
“E pensar que eu posso ter mais 31 anos!”
Eu não me senti assim neste aniversário.
Eu sinto que que quero ser sábio com cabelos brancos numa grande biblioteca
numa confortável poltrona junto a uma lareira.
Mais um ano no qual eu nada roubei!
8 anos já em que eu não roubo nada!
Eu parei de roubar!
Mas eu ainda minto, às vezes,
e ainda me sinto envergonhado, ainda que desavergonhado quando
preciso pedir dinheiro.
32 anos de idade e quatro difíceis reais divertidos tristes ruins maravilhosos
livros de poemas
— o mundo me deve um milhão de dólares.
Eu penso que tenho bem estranhos 32 anos.
E isso não era pra mim, nada disso.
Nenhum dilema numa encruzilhada; se houvesse,
eu não tenho dúvida que escolheria os dois caminhos.
Eu gosto de pensar que a sorte teve seu papel.
A chave, quem sabe, está em minha afirmação descarada:
“Eu sou um bom exemplo de que existe essa coisa chamada alma.”
Eu amo a poesia porque ela me faz amar
e me apresenta vida.
E de todos os fogos que se extinguem em mim,
tem um que queima como o sol;
ele pode não fazer fácil minha vida pessoal,
meu relacionamento com as pessoas,
ou meu comportamento perante a sociedade,
mas ele me mostra que a minha alma tem uma sombra.

…..

GOD IS A MASTURBATOR
Folks, sex has never been

more than a blend
of bodies doing for one
another
that which pleases
them and evolution
to do
either in desire
or in desperation
or in necessity
It serves no purpose
other than love
and life’s purpose
Sexualists
are a product of sex
We are made by sex
Sex made the Salvation Army=
We are sex
There is nothing dark
about this magic
And those pangs of lust
which make you sick
Those unthinkable dreams
which fill you with doubt
— as long as wild joys emit
from an enthusiastic spirit
eat the dust! shout!
Thank God there’s a place

in all this he and she
and he and he
and she and she
for a me and me —

DEUS É UM MASTURBADOR
Pessoal, o sexo nunca foi mais
do que uma mistura
de corpos fazendo um para o
outro
o que a eles dá
prazer e evoluindo
para fazer
tanto em desejo
quanto em desespero
ou em necessidade
ele serve a nenhum outro propósito
que o do amor
e ao propósito da vida
Sexualistas
são produtos do sexo
somos feitos pelo sexo
o sexo fez o Exército de Salvação
nós somos sexo
Não há nada de sombrio
sobre essa mágica
E aquelas dores da luxúria
que o fazem adoecer
Aqueles sonhos impensáveis
que enchem-no de dúvidas
— tanto quanto os selvagens prazeres emitem
de um entusiástico espírito
comer o pó! Grite!
Graças a Deus existe um lugar
em que em tudo ele e ela
e ele e ele
e ela e ela
para um eu e mim —

…..

EARLIEST MEMORY
What’s the first thing you remember?

How old were you?
And at what age did you realize it?
Or had you always remembered it?

When I was two years old
a wonderful thing happened:
Bereft of the woman from whom I was born
I was given to a woman
whom I believed to be my real mother
A one-year old foundling
I lived with her for a whole year
During that year I distinctly recall
Sitting in a bathtub with her
In the unforgettable silence of nakedness we sat
facing one another
My eyes steadied upon the hair between her legs
Which was half submerged in water

Thus a double source of birth
recall I
primordial and contemporary
Water & womb
I beheld
That from which we’re born
abathed in that from which all life came

A MAIS ANTIGA LEMBRANÇA
Qual é a primeira coisa da qual você se lembra?
Qual era a sua idade?
E com que idade você se deu conta disso?
Ou passou a se lembrar, sempre, disso?

Quando eu tinha dois anos
uma coisa extraordinária aconteceu:
Tirado da mulher que me deu à luz
eu fui entregue a uma mulher
que eu pensei ser minha mãe verdadeira
Um enjeitado de um ano de idade
eu vivi com ela por um ano inteiro
Durante aquele ano eu claramente me lembro
Sentando numa banheira, com ela
No inesquecível silêncio da nudez, nos sentamos
encarando um ao outro
Meus olhos firmes nos pelos entre suas pernas
Os quais estavam meio submersos na água

Assim de uma dupla fonte de nascimento
me recordo eu
primordial e contemporânea
Água & ventre
eu observei
aquilo de onde nascemos
banhados naquilo da qual toda a vida veio

…..

ST. TROPEZ, EARLY MORNING
How all night long I waited

dreamless and waves of ending —
The boats in low waters
are leaning on their sides;
black clouds and no sun;
a sleek Polaris slips by;
men are conspiring against men;
Brigitte Bardot lovelier than death;
I feel and miss my friends of old —
Towards heaven we’re going
towards heaven I’m told.

ST. TROPEZ DE MANHÃZINHA
Como por toda a noite eu esperei
sem sonhos e ondas de finais —
Os barcos nas águas rasas
estão inclinados para os lados;
nuvens negras e nenhum sol;
uma lustrosa Estrela Polar desliza no céu;
homens conspiram contra homens;
Brigitte Bardot mais adorável que a morte;
eu sofro e sinto falta de meus amigos de antes —
Através do firmamento estamos indo
através do firmamento, me dizem.

Gregory Corso
Nasceu em Nova York, em 1930. Filho de pai e mãe ítalo-americanos muito pobres, foi abandonando, viveu em lares adotivos e passou por reformatórios e prisões. Na última delas, sob a proteção da Máfia, ele “herdou” a biblioteca que o capo Lucky Luciano deixara ao ser solto. Foi um poeta da Geração Beat, ao lado de nomes como Jack Kerouac e Allen Ginsberg. Morreu em 2001.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho