Grande ladra de palavras

Em “O compromisso”, a alemã Herta Müller sabe usar as palavras para contar uma história repleta de nuanças, sentimentos e significados
Herta Müller envolve o leitor em emoções tão díspares quanto amor e ódio
01/01/2005

Quem não tem escolha sonha. Imagina, fantasia, vive uma outra vida. Ou a mesma vida. E pode vivê-la só nas partes bonitas, felizes e coloridas, como bolinhas de sabão. Só de lembranças do tempo em que era feliz. Ou pode pintá-la com cores escuras, manchando, mutilando, aumentando os momentos de angústia, medo e raiva. Mas só por dentro. Na casca os olhos continuam opacos, a face indiferente e mesma de sempre. Um Dorian Gray pintado na memória. Porque imaginar, delirar, cantar baixinho para ser ouvido só por si mesmo ou desenhar monstros imaginários quando se fecha o olho, ninguém pode proibir. E se não há proibição, há escolhas. Tantas quantas forem desejadas. E mais.

Por isso a personagem sem nome de Herta Muller, em O compromisso, fica tão à vontade para imaginar, em meio à ditadura romena de Nicolae Ceausescu, que em breve um italiano — talvez de nome Marcello (como o Mastroiani) — vá até uma loja e compre um dos ternos de linho em cujos bolsos traseiros ela colocou o recadinho esperançoso, a tábua de salvação: “Case comigo, ti aspetto”. O papelzinho caprichosamente assinado por ela, com o endereço. Tudo certinho. O primeiro italiano que respondesse seu apelo desesperado — e nem precisava chamar Marcello — seria seu marido. Pode ser que ela até viesse a amá-lo, imaginava às vezes. Principalmente por ser o caminho para as escolhas maravilhosas que poderia vir a fazer em um mundo tão diferente do que ela conhecia nos limites da fábrica de roupas em que trabalhava e de seu país amordaçado e sem escolhas.

Ela, a moça sem nome, era uma das “convocadas”. Para esclarecer o quê, nem há necessidade de saber. Nas ditaduras qualquer coisa é motivo para uma convocação. Para esclarecimentos. Para falar nomes e datas a um major com beijos melequentos na palma da mão e dedos com anelões. Para ser acusada de prostituição no trabalho por ter enviado os bilhetes aos italianos — que nunca chegarão a ser lidos, porque foram interceptados antes do embarque das roupas. E, por isso, pelo desaparecimento do último soprinho de esperança de uma vida livre, ela começou a imaginar ainda mais. E mais. Sem parar. Os pensamentos e as memórias a atropelavam e se entrelaçavam com a realidade. Durante a hora e meia que ela demorava para chegar de sua casa ao local para onde era convocada, milhares de idéias e lembranças dançavam por sua cabeça já cansada de inventar mentiras para o major.

Na cabeça da rapariga passam, misturadas como leite e achocolatado, lembranças da traição de seu pai (e logo com uma colega de escola com os cabelos em trança!), do casamento fracassado com um homem fracassado que tentou matá-la afogada num riozinho sob uma ponte qualquer, de Lili — a amiga luxuriosa que acabou fuzilada ao tentar fugir para a Hungria com um de seus amantes — e do dia em que conheceu Paul, seu amor, no mercado das pulgas. No meio de tudo isso, a mulher ainda presta a maior atenção a todos ao seu redor. Aos personagens que passam por ela no trajeto de casa para o lugar em que o major vai beijar-lhe a mão e perguntar nomes e datas.

Não é fácil escrever isso, não. Se as palavras forem mal escolhidas, se a história ficar truncada demais, o leitor desiste já no comecinho. Mas Herta Müller sabe o que está fazendo. Ela rouba palavras, como sugere o escritor paraguaio Augusto Roa Bastos à página 70 de Contravida: “O roubo é a melhor coisa que pode acontecer para a palavra escrita porque ela sempre está aberta para que todos a usem à vontade. Não é propriedade de nenhum autor. Está aí para isso, para que a pegue o primeiro que passar”. Explico melhor: as palavras estão andandinho por aí. E têm de ser escolhidas ou roubadas, ou emprestadas… Servem como matéria-prima para a feitura das histórias que vão ficar para a posteridade (e praticamente todas elas — as boas e más histórias — ficam aí, se escritas, vagando de mão em mão até que um incêndio ou uma enchente as destruam). Alguns ladrões de palavras usam bem, como Herta. Sabem dosar, temperar, fazer o bolo. Outros simplesmente as jogam no papel, que aceita o que vier, e só.

A escritora romena — que acabou indo morar na Alemanha por se recusar a colaborar com o serviço secreto do país em que nasceu — sabe usar as palavras para envolver o leitor em emoções tão díspares quanto amor e ódio. A história é simples e complexa ao mesmo tempo. Dura e poética. Fictícia e real. É o que parece, mas também não é. (Apesar de isso tudo parecer um pouco Caetano Veloso ou Carlinhos Brown demais, é isso mesmo. Os que lerem a obra vão entender. Ou não.)

“Desde que comecei a deixar a minha felicidade em casa, não fico mais tão paralisada como antes na hora daquele beijo na mão. Dobro os dedos para cima, para que as juntas impeçam Albu de falar. Paul e eu treinamos o beija-mão. Como desejávamos saber se o anel de sinete de Albu, no dedo médio, é importante para esmagar meus dedos na hora do beijo, fiz um anel com um pedaço de borracha e um botão de sobretudo. Nós dois o botamos alternadamente, e rimos tanto que por fim esquecemos o motivo do exercício. Desde então sei que não devo dobrar minha mão de repente, mas cada vez um pouquinho mais pra cima. Então os nós dos dedos encostam na gengiva dele e não o deixam falar. Às vezes, quando Albu beija a minha mão, lembro dos treinos com Paul, e as dores nas unhas e a saliva não me humilham tanto. […]” (p. 25/26).

A pontuação usada pela autora também chama tanta atenção quanto a história que ela conta. É praticamente relegada a pontos finais e vírgulas. Não há pontos de interrogação ou exclamação, por exemplo. E, mesmo assim, essa ausência não prejudica a leitura. Tem de ser feita com mais atenção, isso sim. O que deve, exatamente, ser a intenção da autora (se é que não foi erro de impressão e eu, com minha imaginação fértil, acreditei que a escritora aboliu interjeições e questionamentos por meio de sinais gráficos). O fato é que o leitor mergulha fundo num universo muito particular — cheio de reentrâncias, lombadas e curvas — de uma mulher comum, com medos e ansiedades comuns a todos. Esses sentimentos e emoções são potencializados pelas “convocações”, proibições e acusações em um país regido pela mão de ferro de um ditador. E os elementos estilísticos que a autora usa para nos ajudar a desvendar essa mulher só fazem aumentar o envolvimento do leitor com as palavras que foram roubadas e colocadas ali, deitadas em folhas de papel begezinho. E, dentre todas as palavras furtadas, as que usou foram escolhidas a dedo.

O compromisso
Herta Muller
Trad.: Lya Luft
Editora Globo
204 págs.
Herta Muller
Nasceu na Romênia e emigrou para a, então, República Federal da Alemanha. Ganhou vários prêmios literários — inclusive o European Literature Prize, com este O compromisso.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho