Gesso

Conto de Gibran Dipp
01/12/2004

Quando o médico colocou o gesso e disse que, agora, tudo estava bem, ela fez que sim com a cabeça e agradeceu sua eficiência, mas não falou (achou que o médico não entenderia, o plantão da clínica estava lotado, o médico ainda ajustou as muletas para a altura dela, a enfermeira impaciente com a ficha do próximo paciente na mão) que certas coisas quebram, se partem, e nada consegue juntá-las outra vez.

A mulher gorda caiu por cima da perna. Ela sabia. Desde o começo da aula ela implicou com a mulher gorda, dançando sem vergonha nenhuma da própria gordura, era o que parecia, querendo afrontar a todos com sua bizarrice. Quando a mulher gorda tropeçou nos próprios pés e caiu sobre sua perna, ela pensou que o pior tinha acontecido. Os colegas ajudaram a levantar a gorda, ela ficou estatelada no chão bem encerado do salão de biodança, chorando o fim do que parecia ser uma longa lista de indiscutíveis fins.

Depois a levantaram, depois que a gorda ficou olhando com cara de estúpida ela estatelada no chão, como se ela é que houvesse errado, como se ela é que não conseguisse liberar seus recalques, como se ela fosse a gorda; e a colocaram sentada em uma cadeira. Sentiu a roupa branca sobre o corpo suado, parecia um anjinho com aquela roupa, tinham dito. O que não sentiu, naquele momento, foi a certeza de que algo sério havia acontecido com sua perna. Algo que o gelo não conseguiu diminuir, algo que a educação de um colega dirigindo o carro para ela até sua casa e voltando de ônibus para a dele não conseguiu diminuir, algo que os travesseiros debaixo da perna e o antiinflamatório não conseguiram diminuir; o que ela sentiu depois de passar uma noite de cão, o filho dormira na namorada, ela não quis atrapalhar, ela não quis ligar para ninguém, muito menos para ele; o que ela sentiu sem conseguir imaginar uma maneira de esquecer foi que por mais que a perna latejasse e a gorda risse na sua cara nos intervalos de sono que conseguira ter durante a vigília, foi que ainda estava sozinha.

Quando acordou e viu seu estado, e viu que o filho deveria estar no colégio, o vestibular estava próximo, era o vestibular que o deixava tão nervoso, era por isso que mal conversavam; quando acordou e viu que chegaria atrasada ao trabalho, que talvez nem conseguisse chegar ao trabalho, e viu o quarto perfeitamente arrumado, como ensinara para a faxineira que ia uma vez por semana limpar o apartamento, ela percebeu que a perna doía com uma intensidade desconhecida, uma intensidade desarrumada. Ela conseguiu vestir a primeira roupa que encontrou, um esforço horrível, e descer mancando as escadas do prédio onde morava, achando que cada degrau seria o último. O táxi que chamara já a esperava na entrada. Fechou a porta do táxi e chorou baixinho.

Quantos pedaços haviam se partido sem ela perceber? Ele saberia dizer, ele é que tinha quebrado, antes da gorda. O celular do filho estava desligado.

Depois foi voltar para a casa, ele sempre a ajudou a descer as escadas rolantes no shopping quando iam ao cinema, ela sempre pensou que iria desabar no instante que o degrau crescia. Deitou na cama e observou o gesso na perna. Pensou em ligar para ele, utilizar alguma coisa, como o gesso na perna, para tentar restaurar aquilo que havia partido, e sentiu-se incapaz de falar qualquer coisa se ouvisse novamente a sua voz. Não sabia o que fazer: deveria ter falado para o médico, mesmo com a cara feia da enfermeira apressando a consulta, assim o médico teria rido na sua frente quando falasse, assim esqueceria aquilo de vez.

Já não queria voltar à aula nenhuma de biodança, já não queria se preocupar com a cortina bordada da janela, nem com o vestibular do filho; já deixara de se preocupar com quase tudo o que havia partido, mesmo que a faxineira viesse na semana seguinte para limpar o apartamento da mesma maneira como ela a ensinara, da mesma maneira há cinco anos, da mesma maneira, essa arrumação, como o restante do que ela esperava ter recuperado em sua vida depois que ele foi embora.

Deitada na cama perfeitamente arrumada, o gesso secando na perna, foi quando ela percebeu que aquela vez que dissera “eu nunca mais quero te ver” já não fazia sentido.

Gibran Dipp

Nasceu em 1975 em Porto Alegre, é publicitário e roteirista. Seu conto “No Ônibus” foi publicado no número 39 da The Barcelona Review – Espanha, “O Anel” foi um dos vencedores do IV Palco Habitasul – Revelação Literária na Feira do Livro de 2003, “Mizoguchi foi publicado no número 3 da Bestiário. O romance “Pontes na Cidade” foi um dos 6 pré-selecionados do 1° Prêmio Literário da CCMQ. Co-roteirista do longa “O Homem que Roubou o Mundo”, um dos vencedores do Prêmio Santander Cultural / Prefeitura de Porto Alegre.

Rascunho