Quando o médico colocou o gesso e disse que, agora, tudo estava bem, ela fez que sim com a cabeça e agradeceu sua eficiência, mas não falou (achou que o médico não entenderia, o plantão da clínica estava lotado, o médico ainda ajustou as muletas para a altura dela, a enfermeira impaciente com a ficha do próximo paciente na mão) que certas coisas quebram, se partem, e nada consegue juntá-las outra vez.
A mulher gorda caiu por cima da perna. Ela sabia. Desde o começo da aula ela implicou com a mulher gorda, dançando sem vergonha nenhuma da própria gordura, era o que parecia, querendo afrontar a todos com sua bizarrice. Quando a mulher gorda tropeçou nos próprios pés e caiu sobre sua perna, ela pensou que o pior tinha acontecido. Os colegas ajudaram a levantar a gorda, ela ficou estatelada no chão bem encerado do salão de biodança, chorando o fim do que parecia ser uma longa lista de indiscutíveis fins.
Depois a levantaram, depois que a gorda ficou olhando com cara de estúpida ela estatelada no chão, como se ela é que houvesse errado, como se ela é que não conseguisse liberar seus recalques, como se ela fosse a gorda; e a colocaram sentada em uma cadeira. Sentiu a roupa branca sobre o corpo suado, parecia um anjinho com aquela roupa, tinham dito. O que não sentiu, naquele momento, foi a certeza de que algo sério havia acontecido com sua perna. Algo que o gelo não conseguiu diminuir, algo que a educação de um colega dirigindo o carro para ela até sua casa e voltando de ônibus para a dele não conseguiu diminuir, algo que os travesseiros debaixo da perna e o antiinflamatório não conseguiram diminuir; o que ela sentiu depois de passar uma noite de cão, o filho dormira na namorada, ela não quis atrapalhar, ela não quis ligar para ninguém, muito menos para ele; o que ela sentiu sem conseguir imaginar uma maneira de esquecer foi que por mais que a perna latejasse e a gorda risse na sua cara nos intervalos de sono que conseguira ter durante a vigília, foi que ainda estava sozinha.
Quando acordou e viu seu estado, e viu que o filho deveria estar no colégio, o vestibular estava próximo, era o vestibular que o deixava tão nervoso, era por isso que mal conversavam; quando acordou e viu que chegaria atrasada ao trabalho, que talvez nem conseguisse chegar ao trabalho, e viu o quarto perfeitamente arrumado, como ensinara para a faxineira que ia uma vez por semana limpar o apartamento, ela percebeu que a perna doía com uma intensidade desconhecida, uma intensidade desarrumada. Ela conseguiu vestir a primeira roupa que encontrou, um esforço horrível, e descer mancando as escadas do prédio onde morava, achando que cada degrau seria o último. O táxi que chamara já a esperava na entrada. Fechou a porta do táxi e chorou baixinho.
Quantos pedaços haviam se partido sem ela perceber? Ele saberia dizer, ele é que tinha quebrado, antes da gorda. O celular do filho estava desligado.
Depois foi voltar para a casa, ele sempre a ajudou a descer as escadas rolantes no shopping quando iam ao cinema, ela sempre pensou que iria desabar no instante que o degrau crescia. Deitou na cama e observou o gesso na perna. Pensou em ligar para ele, utilizar alguma coisa, como o gesso na perna, para tentar restaurar aquilo que havia partido, e sentiu-se incapaz de falar qualquer coisa se ouvisse novamente a sua voz. Não sabia o que fazer: deveria ter falado para o médico, mesmo com a cara feia da enfermeira apressando a consulta, assim o médico teria rido na sua frente quando falasse, assim esqueceria aquilo de vez.
Já não queria voltar à aula nenhuma de biodança, já não queria se preocupar com a cortina bordada da janela, nem com o vestibular do filho; já deixara de se preocupar com quase tudo o que havia partido, mesmo que a faxineira viesse na semana seguinte para limpar o apartamento da mesma maneira como ela a ensinara, da mesma maneira há cinco anos, da mesma maneira, essa arrumação, como o restante do que ela esperava ter recuperado em sua vida depois que ele foi embora.
Deitada na cama perfeitamente arrumada, o gesso secando na perna, foi quando ela percebeu que aquela vez que dissera “eu nunca mais quero te ver” já não fazia sentido.