Garçom

Conto de Mário Araújo
Ilustração: Ramon Muniz
01/12/2004

Waldir saiu da cozinha do restaurante com um espeto fincado no centro de um prato, estacionou logo na primeira mesa: Queijinho assado, senhora? Não, obrigada. A mulher, loura visivelmente tingida, com o cabelo cortado em camadas, um anel escandaloso no dedo, uns peitos presunçosos. Parecia estar forçando a barra com o homem ao seu lado. Cavalheiro? Não, amigo, obrigado.

Sentiu suas pernas tremerem, e um calor no rosto.

No outro restaurante ele era o homem da maminha. Não era picanha nem baby-beef, mas já era alguma coisa. Na Espeto’s Grill, porém, fora incumbido do queijo assado, e assim passava seus dias, a ouvir nãos das pessoas.

Circulou entre as mesas, hesitante. Havia uma mesa com três mulheres que conversavam e riam alto, a cada instante cabelos eram jogados para trás, e retornavam, escorregando pelos ombros, em cascata. Fumavam as três. Seios em profusão. O maître já esticava um olho e ele teve que se encher de coragem e continuar com seu trabalho. Decidiu investir nas três ao mesmo tempo: Queijinho assado, senhoritas? Acompanhou com um sorriso, meio de lado, como um quadro meio torto na parede.

A primeira apenas balançou a cabeça, enquanto batia a cinza do cigarro, tudo no mesmo ritmo. A segunda disse, não, obrigada, e até que se esforçou para retribuir o sorriso, mas só conseguiu soerguer um pouco o músculo da face esquerda. A terceira continuou falando com as outras e só ao cabo de alguns segundos encontrou uma pausa nas palavras, que lhe permitiu sinalizar um não com a mesma mão que segurava o cigarro.

Waldir retirou-se, com os ombros ainda mais estreitos que o normal, o rosto em chamas, uma vergonha de si, como se fosse seu o cheiro acre que emanava do queijo.

Assim que se afastou, viu o colega da picanha aterrissar ao lado da mesa e demorar-se em talhar grossas fatias, que escorregavam do espeto para os pratos de cada uma. Chamava-se Jair o colega e morava numa rua perpendicular à sua, no mesmo bairro de São José dos Pinhais. Ouviam os latidos dos mesmos cachorros, a noite inteira. Eram próximos e, ao mesmo tempo, distantes.

Um queijinho para os senhores? — na mesa com dois homens de terno e gravata. Não, amigo, obrigado. Então, outra mesa, aliás, várias mesas justapostas formando uma única, longa, interminável. Confidenciou a cada um — uns vinte: um queijinho assado para o amigo? E ouviu respostas negativas de todos, menos de um, que parecia ser vegetariano e provavelmente só entrara na churrascaria para acompanhar o grupo.

Circulou por entre as mesas. Percebeu que aquele garoto mais uma vez entrara no recinto. Aquele, moreninho. Toda santa noite entrava para pedir esmolas aos fregueses, perturbava a paz. Bastou um olhar e dois passos ameaçadores para enxotar o pedinte, que dessa vez nem argumentou, fome, um trocado, um pedaço, meus irmãos, minha mãe doente. Deu no pé rapidinho.

Tinha que revisitar as mesas já visitadas. Podia ser que alguém tivesse mudado de idéia. Mas nunca mudavam.

Na segunda vez, a loura tingida estava ainda mais entretida na conversa e limitou-se a sacudir a cabeça para um lado e para o outro. Cavalheiro? Não, obrigado, disse o homem entretido com a costela. Esperou que colega do mignon terminasse de exibir-se com o facão enorme e afiado, e dirigiu-se para a mesa com as mulheres, que agora eram quatro. Começou pela recém-chegada que, sabe-se lá, não poderia influenciar as outras com seu paladar diferenciado. Mas ela foi logo atirando um não, obrigada, e ele quis morrer de vergonha por estar tentando aliciar a mais jovem na frente das outras.

Na terceira vez, tomando o cuidado de esquivar-se dos olhares do maître, experimentou pular a mesa onde estavam as quatro mulheres, passando da anterior direto para a seguinte, na esperança de que pudesse, mais do que despertar nelas o apetite pelo queijo assado, fazer com que notassem a sua falta (dele, Waldir), sentissem a sua ausência, implorassem pela sua presença. Mas isso não aconteceu.

De madrugada, no ônibus de volta para casa, ia pensando. Ia tentando compreender os diferentes tipos de alimentos e estabelecer uma hierarquia entre eles, segundo sua própria visão das coisas e do mundo.

Pensou no carneiro. O que era um carneiro? Qual era o seu significado? Veio-lhe à mente a pacificidade desse animal, a Bíblia, o cordeiro levado ao matadouro sem abrir a boca, a mudez da ovelha diante do seu tosquiador, sem reclamar mesmo quando exposta à humilhação e ao sofrimento. Chegou a se emocionar com a lembrança de passagens bíblicas, que lera havia não muito, mas, no final das contas, concluiu que não lhe dava grande prazer pensar em ser um carneiro. Ou cordeiro, ou ovelha, o que fosse. O carneiro é um bicho que caminha passivo para a morte, sem protestar e com lágrimas nos olhos. O cara do carneiro era o Percival, um sujeito que, por acaso, era bem pacato mesmo e morava no Umbará, lá nos cafundós.

Em seguida, pensou no porco, a quem o que não falta é ânimo para espernear diante do seu calvário. Mas a verdade é que, analisando a imagem do porco na sociedade, ele não passa de uma criatura chiliquenta e histérica e o seu destino acaba sendo igual ao do carneiro. Ou seja: grandes merdas se ele faz escândalo antes de morrer porque acaba morrendo do mesmo jeito.

Pensou então no frango, que é branco e morre com o pescoço torcido. Ele também se desespera ao pressentir que vai morrer, mas seu correr em busca de salvação soa um tanto ridículo, talvez porque o andar soberbo e o pescoço sempre espetado não combinem com aquelas pernas fininhas. É um bicho que causa uma certa raiva por seu jeito afetado, pedante, mas, depois, acaba inspirando dó, sobretudo quando lhe arrancam as penas e se revela sua pele arrepiada, prova de um pavor permanente vivido, e que continua mesmo após a morte.

Mas o mais baixo de todos nessa hierarquia que ele, Waldir, ia construindo enquanto o ônibus avançava depressa na madrugada de pouco tráfego é, sem dúvida, o queijo assado. O queijo assado, aliás, não é nem mesmo um ser. De modo que, mesmo antes de ser assado, já não está vivo, ou seja, antes de morrer, já está morto.

Mas o queijo provém do leite e isso lhe dá uma qualidade animal, sem dúvida, embora lhe falte o sangue. E, mais do que isso: tem uma característica feminina, maternal — Waldir pensou na sua mãe e depois na mulher, com os três filhos. Enquanto a carne de gado, sobretudo as mais nobres com a picanha e o filé mignon, são fortes e masculinas, o queijo assado é feminino, maternal. A carne sugere potência, virilidade, com o sangue pingando e o sal grosso castigando suas entranhas, sem piedade.

Ia falar com o patrão para que instituísse um revezamento entre os garçons. Ou seja, cada garçom serviria um tipo diferente de comida a cada dia. Um dia seria o queijo assado, outro dia a maminha, no outro o coração de frango. Afinal, aquela não era uma churrascaria de rodízio? Então que mal haveria em fazer um rodízio de pratos entre aqueles que os serviam? Ia dar essa sugestão ao patrão no dia seguinte mesmo, logo no início do expediente.

Ele não tinha porque negar, afinal, os negócios iam bem, de vento em popa, dava para notar pelo tanto que trabalhavam, ele e os colegas. Ele nem tanto, é verdade, mas não porque não quisesse. Aliás, ao propor a idéia do rodízio ia mostrar ao patrão o quanto tinha disposição para o trabalho. Aliás, ao propor essa idéia ia mostrar idéias era o que tinha dentro da cabeça. O Jair trabalhava mais do que ele, pois servia a picanha, mas isso não era o que ele queria, ele queria que todos trabalhassem igual. Não se tratava de exigir a picanha só para si, ainda que soubesse que é a carne superior, mais distinta, sobretudo mais do que o queijo, que nem carne é. Por isso a idéia era tão boa, tiro e queda, ninguém sairia prejudicado. O Jair estava sempre no mesmo ônibus, mas eles nunca conversavam. Era só opa, opa, boa noite, boa noite. Ele estava dois bancos mais à frente. Waldir ficou imaginando se o Jair iria gostar da idéia de não servir só a picanha. Achou que não haveria maiores problemas. Mas, também, se não gostasse, quem mandava era o patrão.

E Waldir seguiu pensando, pensando, enquanto o ônibus avançava depressa na madrugada de pouco tráfego, até adormecer com a cabeça apoiada na vidraça da janela, e então sonhando, sonhando, até o ônibus parar no ponto final, a poucos quarteirões de onde moravam ele e seu colega-vizinho.

Mario Araújo

Nasceu em Curitiba (PR), em 1963. É autor dos livros de contos A hora extrema e Restos.

Rascunho