“Preciso contar pra vocês!”
“Conta…”
“Vocês nem vão acreditar…”
“O que aconteceu?”
“Eu fui lá tomar a coca; eu fui lá; aí, quando eu estou lá tomando, um cara, um sujeito novo ainda, todo peludão — o peito dele parecia um tapete, uma relva…”
“Rô…”
“O sujeito ficou ao meu lado, me olhando, me olhando assim, de ponta a ponta, dos pés à cabeça, e aí ele falou: ‘Oi, gata.’ ‘Oi’, eu falei. ‘Curtindo?’ ‘Eu estou, e você?’ ‘Adoidado’, ele falou; ‘pra ser melhor, só se eu tivesse a companhia de um gata como você.’”
“Nossa… E aí?….”
“Aí? Aí eu olhei para ele, encarei ele assim, bem de frente, e falei: ‘Está vendo esse crucifixo aqui, no meu peito?’ ‘Estou; é um barato; o crucifixo e o peito também.’”
“Santa mãe de Deus…”
“‘Você sabe por que eu uso ele, o crucifixo?’, eu perguntei. ‘Não’, ele respondeu. ‘Eu uso ele porque eu sou freira.’ ‘Freira? Legal essa!’, ele falou. ‘E eu, você sabe quem eu sou?’ ‘Não’, eu falei. ‘Eu sou o Papa!’, e ele deu uma risada. ‘Eu estou falando sério’, eu falei. ‘Eu também estou’, ele falou e deu outra risada. ‘Esse crucifixo’, eu falei, ‘é porque eu sou freira.’ ‘Por isso não’, ele falou: ‘olha aqui’, e virou as costas, mostrando uma enorme tatuagem. Uma tatuagem sabem de quê? Sabe, Mariona?”
“De quê?”
“Cristo; Cristo Crucificado.”
“Jesus”, disse Mariona, “isso já é sacrilégio!”
“E aí, aí ele falou: ‘Qual que vale mais? O seu Cristo, que a gente compra em qualquer camelô da esquina, ou o meu, que foi gravado com dor na minha carne?’”
“E essa, hem?”, disse Blandina. “E aí, o que você respondeu?”
“Eu respondi que os dois valiam a mesma coisa, que o importante era a fé.”
“É cada uma…”
“Mas o pior eu ainda não contei…”
“Então conta”, disse Blandina. “Você começou… Como dizia o Chacrinha: ajoelhou, tem de rezar.”
“O pior foi a hora que ele virou, e aí… Aí, sabem? aí eu vi que ele estava com uma bruta duma ereição.”
“Ereição, Irmã Romilda?”
“Então como que é?”
“Ereição?”
“Então fala como que é…”
“Ereção”, disse Mariona. “Não tem um pauzinho no meio.”
“Não? Você tem certeza que não tem um pauzinho no meio? Pois eu acho que tem. Tem sim. Só que não é um pauzinho: é um pauzão.”
“Rô!…”
“Isso é pecado, Irmã Romilda.”
“Pecado…”
“Pecamos por pensamentos, palavras e obras.”
“Sabe onde está o pecado, Mariona? Sabe? Sabe onde ele ficou? O pecado ficou lá naquela capelinha mofada e fedorenta.”
“Hum.”
“Sabia? O pecado ficou lá, naquela capelinha mofada e fedorenta, entre aqueles santos e velas. Ou será que você trouxe ele com você na sua mala? Trouxe? Na minha ele não veio. Ele veio na sua, por acaso, Blande?”
“Não sei. Eu quero é que você conte o resto da história, Rô…”
“O resto? O resto é só que o sujeito me perguntou se eu venho aqui amanhã.”
“E o que você respondeu?”
“Respondi que venho, uai.”
“Respondeu errado”, disse Mariona.
“Errado por quê?”
“Porque amanhã nós três estaremos longe daqui.”
“Eu não. Eu já te falei que eu não vou hoje.”
“Eu também não”, disse Blandina.
“Perder o último capítulo de Corações Apaixonados, quando a Leandra vai finalmente revelar quem é o verdadeiro pai do filho dela?”
“Amanhã passa de novo.”
“Eu sei, mas você acha que eu vou agüentar esperar até amanhã? Eu mal estou dando conta de esperar até a noite…”
“Pois fiquem sabendo que às oito e meia da noite, ou seja, às vinte e trinta, nós três estaremos dentro de um ônibus, em plena estrada: eu, Irmã Maria Imaculada; você, Irmã Romilda; e você, Irmã Blandina.”
“Você é uma chata, hem Imaculada?”
“Vocês precisam entender que isso não é porque eu quero.”
“É sim, Mariona; é porque você quer: você e sua muxibagem.”
“São ordens, ordens do Economato.”
“Imaculada: ‘Não mintais uns aos outros.’ Paulo, Colossenses, capítulo três, versículo nove.”
“Se o nariz da Mariona crescesse igual ao do Pinóquio… Não ia nem ter jeito da gente entrar nessa piscina…”
“Vocês estão sendo injustas comigo…”
“Injustas…”
“Além disso, a minha perna inchada anda doendo.”
“Essa sua perna inchada serve pra tudo, hem Mariona? Você não tem vergonha?”
“Ai, meu Deus…”, disse Blandina. “Quando eu penso que, ao chegar, eu vou ter de passar a limpo toda aquela escrita… Me dá uma preguiça… Dá vontade de ficar aqui, nessa piscina, para o resto da vida…”
“Dá mesmo…”, disse Romilda.
“A Congregação podia derrubar aquela capelinha e fazer uma piscina lá, né?”
“Que isso, Irmã Blandina? Como você ousa dizer uma coisa dessas? Aquela capela é histórica, minha filha; aquela capela é do século dezoito.”
“Eu sei, Imaculada, eu sei; estou cansada de saber isso. Só estou dizendo que… Que diferença faria se derrubassem uma capela? Há tantas capelas por aí…”
“Isso é uma heresia. Aquela capela é um tesouro.”
“Um tesouro e um ninho de morcegos.”
“Bom mesmo é se isso aqui fosse nosso”, disse Romilda, “só nosso e de mais ninguém. Aí a gente podia vir quantas vezes quisesse, sem ter de pagar nada. E, o melhor, a gente podia ficar aqui inteiramente sem roupa…”
“Rô…”
“A gente peladinha nessa água quente, já pensaram que delícia? Eu acho que eu ia até ter um orgasmo.”
“Irmã Romilda…”
“Pra ser sincera, a vontade que eu tenho nesse momento é de rancar esse maiô e…”
“Parece que o Peludão mexeu com os seus hormônios, hem Irmã?”
“Rancar e sair por aí, no meio dessas piscinas, dessa gente… O que será que aconteceria se eu fizesse isso, hem?”
“Não gosto nem de pensar…”, disse Blandina.
“Eu sei o que aconteceria: fotos em todos os jornais do País; entrevistas na televisão; capa da revista Playboy: ‘A freira mais sexy do Brasil’.”
“Esqueceu-se de que você é freira, Irmã Romilda?”
“Não; eu não acabei de falar na freira mais sexy do Brasil?”
“Esqueceu-se de que você é religiosa?”
“Você está me censurando, Mariona?”
“Um pouco de juízo não faz mal a ninguém.”
“Você está me censurando? Pois fique sabendo que eu sou livre para falar o que eu quiser, está bem? Foi Deus que me deu a liberdade.”
“Foi, foi Deus. Deus nos deu a liberdade; mas nos deu também os dez mandamentos. Lembra-se? E um deles, o sexto mandamento, diz: ‘Não pecar contra a castidade.’”
“‘Esqueceu-se de que você é freira’… Acontece Mariona, acontece que antes de ser freira eu sou mulher. Sabia? Eu não nasci freira: eu nasci mulher. Eu nasci fêmea. E fêmea com esses peitos aqui, esses peitos bonitos, e não essa tábua de passar roupa.”
“Pelo menos ela serve para passar roupa. E esses mamões aí, para quê que eles servem?”
“Está com inveja?”
“Para quê que eles servem?”
“A Blande sabe…”
“Eu? Eu não sei de nada.”
“Não? Olha como ela ficou vermelhinha…”
“Com esse sol e branca do jeito que eu sou, como você queria que eu ficasse?”
“Sei… Eu vou pensar no seu caso…”
“Tem dia que eu acho que a matéria venceu”, disse Mariona.
“Que matéria, Mariona? De que você está falando? A Mariona sai de repente com umas coisas sem pé nem cabeça…”
“Tem dia que eu acho que o espírito desapareceu da face da terra e que Deus, cansado de pelejar com o homem, retirou-se para os confins do firmamento.”
“Deus é pai, Imaculada.”
“Mas até os pais não se cansam do mau comportamento dos filhos? Que dirá Deus com relação ao homem, esse filho tão mau, tão ingrato, tão…”
“Certo, mas… Lembre-se de Lucas, capítulo onze, versículo treze: ‘Se pois, vós, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos’…”
“Ih, não…”, disse Romilda. “Vocês duas, ó: o Retiro Espiritual começa dia vinte de janeiro. Sabiam? Começa daqui a quinze dias ainda. Por enquanto estamos em férias e numa pousada. Sabiam?”
“Ah, Rô…”
“Ah, Rô? É a Rô que daqui a mais um mês estará na frente daqueles pirralhinhos lá da vila, entre bêbados, ladrões e traficantes, enquanto vocês duas estarão zanzando por aí, um dia num lugar, outro dia no outro; reuniões, encontros, capítulos, curso disso, curso daquilo, ou seja: não fazendo nada, só passeando, comendo e conversando fiado.”
“Rô, a noviça rebelde número dois…”
“Não vem não, hem Blande? Eu conto tudo, hem?”
“Então conta; conta. Conta, que eu também conto. Você acha que não? Eu conto sim. Conto, palavra por palavra, tudo o que você me disse aquele dia, sem esquecer as vírgulas, e, principalmente, os pontos de exclamação.”
“A que chegamos…”, disse Mariona; “a que chegamos… Santa mãe de Deus… Eu proponho uma coisa: vamos esquecer tudo, vamos passar um apagador, nos dar as mãos e, juntas, rezar uma ave-Maria e um pai-nosso, pedindo humildemente a Deus perdão pelos nossos pecados.”
“Rezar aqui agora, Mariona?”
“Por que não?”
“Rezar aqui agora, nessa piscina, com toda essa gente ao redor?”
“Toda hora é hora de rezar, todo lugar é lugar de oração: basta que a fé esteja viva e o coração contrito.”
“Eles vão achar que nós três somos malucas”, disse Romilda. “Ou então achar que nós três somos freiras”, e deu uma gargalhada.
“A Rô hoje está afiada…”
“É”, disse Mariona, “nós vamos ter muita coisa para discutir nesse retiro…”
“Vamos mesmo”, disse Romilda, “você tem razão.”
“Por falar nisso”, disse Blandina, “quem será que vai ser a cozinheira lá esse ano? Se for a Zulmira… Aquela crioula pode desistir, ela nunca vai aprender a cozinhar; eu não sei por que elas não mandaram ela embora ainda. Agora, se for a Tereza… Hum… Se for a Tereza… Já estou até sentindo o gostinho daquela musse de chocolate…”
“E os bolinhos de bacalhau?”, disse Romilda.
“E as panquecas? Me diga: as panquecas?…”
“A Irmã Blandina só pensa em comer…”, disse Mariona.
“E eu em ser comida”, disse Romilda, dando outra gargalhada.
“Rô, eu acho que você endoidou…”
“Brincadeira, gente, brincadeira… Vamos curtir, nós estamos em férias; vamos brincar, vamos cantar… Blande, como é mesmo a marchinha da Irmã Cidinha?…”
“‘Eu entrei pro convento pra fugir do casamento; eu entrei pro convento pra fugir do casamento.’”
“Então vamos lá, as três juntas: ‘Eu entrei pro convento pra fugir do casamento; eu entrei pro convento pra fugir do casamento.’”
“Vocês…”, disse Mariona. “Vocês não têm jeito…”
“Ai, vida…”, disse Romilda.
“Bem, minhas mui queridas… Faz-se hora de voltarmos para o hotel…”
“Faz-se mesmo”, disse Romilda.
“Eu ainda quero passar no shopping para comprar umas pilhas para o meu walkman.”
“E eu lavar os meus tênis”, disse Romilda. “Sabem como é, sempre fica um pouco de chulé.”