O alacrão
Acordar
é um ritual que se faz com os pés descalços
os olhos sonolentos e semi-abertos
mijar no escuro
com a familiaridade de quem conhece a distância entre o vaso e o corpo
essa felicidade de repetir os gestos
dia após dia
o café à mesa
a firmeza de quem não se sabe funâmbula na via
até o dia em que percebe um alacrão
cego e forasteiro o bicho é espelho
perambula sob a lâmpada de leitura
ouço antes de ver
uma mancha vermelha cruzando o chão
palpos e ferrões em castanhola
contorce-se sobre o batente
ele mede o meu tempo
mas como pisar a terra, agora,
tendo em vista a vida no alçapão?
Nem âncora nem cabo de aço seguram o passo
na madrugada sonolenta do ser
há sempre risco de ferrão
veneno infiltrando a pele daquela que sou e não sou
à espreita de mim
só me reconheço em lampejos
[Ribeirão Preto, março 2019]
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Três da tarde em Reykjavík
enquanto os mortais
aceleram urânio
a borboleta
por um dia imortal
elabora seu voo ciclâmen
[Haroldo de Campos, 1984: Anno 1, Era de Orwell]
enquanto os mortais
arquitetam destruir a terra
ou deter o aquecimento global
corvos entoam seu canto
curvam-se num voo duplo
negras as asas negros os bicos
cruzam em par o ciclâmen do céu
são três da tarde em Reykjavík
chega repentina a madrugada
um só som rasga o sono da gata
teu respiro profundo
são seis da tarde em Reykjavík
enquanto praguejo contra os prazos
o amor cresce com a massa do pão
farinha nos dedos leite açafrão
é uma herança-
feitiço
teu gesto materno
partir e voltar
toda manhã
no escuro
no gelo
novelo
[Reykjavík, dezembro 2019]
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No entanto, há o vento
o que sobra de ontem?
uma língua de neve em forma de pássaro
um desenho da infância
se espraia sobre o telhado da casa
a língua do ontem
a memória do gelo
nos resquícios, leio voos —
aprendi a domar desertos
no entanto, há o vento —
algo que me escapa
[Reykjavík, fevereiro 2020]