O texto que apresento aqui é um poema atribuído a Petrônio, autor do Satyricon. Ainda que pouco se saiba a respeito da vida desse célebre escritor romano, os especialistas de hoje inclinam-se por situá-lo no século I de nossa era, sob o principado de Nero, momento que, inclusive devido à decisiva colaboração desse imperador, representou um poderoso florescimento das artes, especialmente da literatura. (Nero era um entusiasmado cultivador da poesia, e seu governo foi marcado por festivais literários, polêmicas estéticas e vasta produção, em cujo seio destacam-se as figuras de Sêneca, Pérsio e Lucano.)
Independentemente de viver na época de Nero ou em outra, certamente Petrônio não está alheio às discussões literárias e filosóficas do início do Império. O Satyricon é uma narrativa repleta de personagens com veleidades poéticas ou com uma ligação profissional com a literatura: Eumolpo, por exemplo, é um poeta errante, Encólpio e Ascilto, jovens literatos que vagam pelas escolas de retórica e pelos jantares alheios e sobrevivem trambique aqui trapaça ali. A narrativa central é intercalada de contos menores e de versos de todos os tipos, desde o epigrama até a épica; os diálogos versam sobre questões como educação, poesia, pintura. Como se o Satyricon fosse uma grande e bem-humorada viagem pelos estilos, gêneros literários e obras clássicas, em suma, pela linguagem literária, percebem-se paralelos entre, de um lado, as situações cômicas em que se metem as personagens e, de outro, cenas típicas, tópoi da tradição poética antiga, e nesses paralelos a intenção polêmica é evidente. Citando, elogiando e subvertendo toda uma gama de vozes canônicas, como Virgílio e Horácio, parodiando a tradição menos prestigiada do romance erótico grego, e mesmo aludindo àqueles que foram (provavelmente) seus contemporâneos, como Sêneca e Lucano, o texto de Petrônio é também obra de crítica literária.
É justamente em função de uma conexão intertextual que este fragmento aparece citado num escoliasta tardio de Estácio (na Tebaida, 3, 661, vem, textualmente, Primus in orbe deos fecit timor). Diz o comentador: “Nega que os deuses sejam celebrados por uma outra razão que não o medo que sentem os mortais. Assim também Lucano: ‘temem o que moldaram’ (1, 486) e Petrônio, seguindo a este: ‘Primeiro no orbe os deuses fez o medo’.” Outro liame discursivo: é freqüente que se suponha em Petrônio uma simpatia pelas teorias de Epicuro, citado num dos poemas do Satyricon (132, 15) como “douto pai da verdade” (não obstante toda a passagem seja altamente ambígua). O pensador grego acreditava que os deuses não intervinham na vida humana. Lucrécio, poeta-filósofo romano, o grande divulgador do epicurismo em latim, fustiga a religião tradicional e critica o medo dos castigos divinos. A filiação ideológica do fragmento chama a atenção de Fulgêncio que, já avançando pelo século V, no seu Mitologias, cita o texto e o atribui a Petrônio. O poema também é conhecido pelo testemunho ainda posterior da Antologia Latina.
Tal como este, outros 62 fragmentos de Petrônio são reunidos por Ernout no final de sua edição da obra de Petrônio. São ao todo 18 trechos em prosa e 45 em verso; de proveniência variada, sua relação com o Satyricon não é clara. Alguns estudiosos sugerem que se insira um ou outro excerto na contextura da narrativa, como é o caso de Bourdelot, que defende ser o nosso fragmento 27 pertencente ao capítulo 106 do Satyricon, passagem em que personagens conversam sobre a opinião de que há intervenções divinas no mundo humano e a crença em prodígios mandados em sonhos, vistas pelo narrador como superstição.
A narrativa petroniana nos chegou incompleta, cheia de lacunas. O texto latino que possuímos hoje, como aparece nas edições críticas, é produto da manipulação da filologia, é uma reconstrução baseada numa certa leitura de pedaços de texto encontrados em manuscritos diferentes de épocas diferentes. Tudo em Petrônio é fragmento. Essas 63 ruínas coletadas por Ernout, os fragmentos “propriamente ditos”, são algumas vezes até mesmo textos de atribuição duvidosa, ou são só os farrapos que ninguém conseguiu costurar ao resto de modo convincente.
Nos silêncios entre as páginas perdidas da obra de Petrônio vão se imaginando leituras e se nutrindo fantasias. Depois de a filologia do Renascimento ter ordenado o Satyricon aproximadamente na forma como ele é aceito hoje, uma surpresa: em 1692 Nodot publica seu Pétrone latin et français, iniciando a divulgação do que ele anunciava ter encontrado num códice de Belgrado: novos excertos de Petrônio, preenchendo as lacunas dos manuscritos conhecidos até então. A descoberta logo se revelou uma ficção de Nodot, unanimente recusada pelos especialistas. Mas os suplementos de Nodot tornaram-se tão populares, que foram acolhidos em todas as traduções francesas até a de Ernout (1923), que as ignora altivamente, limitando-se a comentar rapidamente o que chama de “fraude”. Que foi muito bem sucedida. Todas as traduções brasileiras do Satyricon já publicadas incluem os textos de Nodot, e fazem-no sem comentário algum. As passagens redigidas por Nodot aparam as asperezas de um texto que não tinha começo nem fim. Acrescenta-se, por exemplo, uma introdução um tanto canhestra (“Já há tanto tempo prometi a vocês narrar as coisas que me aconteceram […]” — Nodot via Leminski) ao fragmento de abertura considerado original, um abrupto: “Mas acaso os declamadores são perturbados por um tipo diferente de Fúrias?”
O Satyricon é um texto livre, que convida à intimidade. Todos sentem-se à vontade para mexer, como o próprio Leminski, que além de, ao que parece inconscientemente, receber Nodot, também omite dois longos poemas que nos vieram da tradição antiga, fundamentais para se compreenderem os jogos metaliterários da obra petroniana. E se justifica: seriam partes “tediosas”. De gustibus non disputandum.
Daí o bater de olhos neste fragmento ter me inspirado essas coisas, por ser fragmento, e por tudo me dizer, por alegorias, que a história da literatura é uma conversa sobre fragmentos de autoria duvidosa. E eu também fiquei à vontade para mexer e, omitindo o Satyricon, dizer só uma dúzia mais um de versos de Petrônio (?), 16 na versão em português (mas são decassílabos, são mais curtos!) escrita exatamente do jeito que eu pude fazer. Tomei o texto estabelecido por Ernout. Remeti à flexibilidade ritmica do original (que opera com diferentes variantes de hexâmetro datílico) através de mudanças nos acentos do decassílabo. (De fato predomina o decassílabo heróico, assim como predomina no original a cesura no meio do terceiro pé.) Vi-me um pouco em apuros com os versos 3-6 (a partir de Mox Phoebus ad ortus), por causa de uma frase cheia de disjunções e com verbos só no particípio, que talvez tenha deixado excessivamente clara em português. Em palmitibus plenis Bacchum uincire, o texto fará referência ao belo costume de coroar (“uincire” é também “cingir, rodear”) as estátuas de Baco com ramos de videiras. Desdobrei o “tabernas” do verso 11 em duas palavras, “casebres, lojas”, procurando a ambigüidade da palavra latina. E fiz outras invencionices menores que o leitor perceberá.
Primus in orbe deos fecit timor, ardua caelo
fulmina cum caderent discussaque moenia flammis
atque ictus flagraret Athos. Mox Phoebus ad ortus
lustrata deuectus humo lunaeque senectus
et reparatus honos, hinc signa effusa per orbem
et permutatis disiunctus mensibus annus.
Profecit uitium iamque error iussit inanis
agricolas primos Cereri dare messis honores,
palmitibus plenis Bacchum uincire, Palemque
pastorum gaudere manu. Natat obrutus omnis
Neptunus demersus aqua, Pallasque tabernas
uindicat. Et uoti reus et qui uendidit orbem,
iam sibi quisque deos auido certamine fingit.
Primeiro no orbe os deuses fez o medo:
do céu caíam raios rebentando
muros, e o Atos, atingido, queimava.
Mais: Febo voltando ao nascente, vista
a terra inteira; a lua minguando
e recuperando seu posto, os astros
espalhados pelo orbe e dividido
o ano pela passagem dos meses.
Prosperou o vício, e o erro já manda
a Ceres dar vãs honras na colheita,
a Baco vincular videiras plenas,
a Pales imputar gozo no pasto.
Netuno na água está afundado, todo,
e Palas reclama casebres, lojas.
Mesmo o perjuro e o que o orbe vendeu:
cada um com gana seus deuses molda.