Fora de linha

Crônica de Nilson Monteiro
Nilson Monteiro, autor de “Curitiba vista por um pé vermelho”
01/08/2006

Nova, causou correria, disputa, às vezes brigas, pescoções entre marmanjos. Também entre mulheres, menos freqüentemente. Aqui e ali. Passou pelas mãos de negros, brancos, alemães, japoneses, brasileiros, jovens musculosos, veteranos com alguma barriguinha e cabelos grisalhos, não escolhia companhia. Mesmo assim, cansou daquela cor anêmica, branquela, cicatrizes pelo corpo, rainha da noite, vista até de longe. Pediu a estilistas, dito especialistas, uma nova tez, quem sabe mais castanha, um brilho diferente. Rodou mundo. Conheceu amantes. Alguns até a acariciavam, idolatravam, beijavam até. Ficava de bico inchado. Perdeu a identidade, perdeu o nome, só lhe chamavam pelo número.

Confessara, entre elas, que cansara de ser hostilizada, socos na cara, chutes, agarrões, apanhava mais que mulher de malandro. Mas será que eram todos malandros, mascarados, travestidos? Cansou das mesmas casas, fossos, subterrâneos e degraus. Saiu e voltou. Voltou e saiu. Porradas, chutes, socos, pancadas, será que ninguém se importava com a velocidade que vivia pra lá e pra cá, sob riscos? Era a vida, repetiam.

Danada, desviou, traiu, enganou, tomou outro rumo, enviesou, safada, pipocou. Acusavam: ela é cheia de ar, superior, vez ou outra vazia; às vezes rastejara, em outras, voara. Bem que gostaria de ter freqüentado a grã-finagem, quem sabe outros salões, de tênis, outras luzes, algo mais leve, outra cútis, sentindo-se maior ou menor, que importa?

Sim, cansara, reconhecia. Cansara de berros, gritos, apitos, urros coletivos, barulhos estranhos, alguns avessos à civilidade. Preferiria, quem sabe, o silêncio das ruínas, o Coliseu vazio. Cansada, passou boa parte da vida em vestiários lúgubres, as lâmpadas tomates rodeados de moscas. Boa parte solitária, sem socos, pontapés, carícias, sem mãos correndo céleres por seu corpo todo inflado. Quase morta, quase oca, quase ausente dos músculos, da arte, da multidão, dos olhos e dos lábios, quase distante da vida, quase quase.

Acabou rolando em chãos carecas, para poucos. Os tapetes quase aveludados, um verde quase vivo, viraram lembrança? E ficou ainda mais periférica, pelos fundos, o corpo cada vez mais em pelancas, uma cor parda, depois ainda mais descorada, longe daquela pele branquela cantada em prosa e verso especialmente pelos mais conservadores, preconceituosos até. Velha, nas franjas da cidade, foi dezenas de vezes cruelmente ameaçada: fura, fura esta merda, mete a faca, fura o bucho, ela não serve pra nada.

Nunca entendera, Maria das Dores, o mundo assim tão redondo. E tão bicudo. Encostou-se, só, só de dor, só de dor maior, nos fundos do xale, bordado feito rede, muito maior que seu corpo, quietinha. Murcha.

Nilson Monteiro

Nasceu em Presidente Bernardes (SP). É jornalista em Curitiba. Autor de Curitiba vista por um pé vermelho, Simples e Pequena casa de jornal, entre outros.

Rascunho