As crianças já estavam prontas e esquecidas. Esperavam a sessão sentadas no assoalho frio. Começaria a qualquer momento. As luzes tinham sido apagadas, a respiração suspensa. Não sentiam as pernas formiguentas uma cruzada por cima da outra sobre fivelas e bordas de solas duras que deixavam marcas. Não sentiam. A sacola da merenda no vão desse triângulo que ficava entre as pernas, muito mais escuro que a sala. Um poço fundo formado com as pernas, breu, o que havia de mais verdadeiro de cada um enquanto nada por fora acontecia. Um poço fundo e vazio com a sacola da merenda esperando a sessão de cinema.
As tias fariam algo a qualquer momento para a projeção começar. Demoravam muito. Elas estavam nas bordas, nas áreas das paredes da sala imensa e sem luz nenhuma, as janelas fechadas. Não esbarrariam nem atrapalhariam a visão das crianças enfileiradas e paradas aguardando o filme. Uma agonia que mal se respirava, uma espera, as professoras não atravessariam. Suas vozes, ondas práticas, certeiras, eram parte do silêncio. As crianças esperavam caladas, engolindo a tristeza incomunicável do ainda-não-vi. Mal respiravam.
As sacolas de merenda naquele escuro perderam o cheiro de pão, de biscoito amolecido com geléia, guardanapo de pano úmido, não tinham mais o cheiro de garrafa plástica impregnada de limonada, suco de laranja, de uva. Banana com a casca escurecida, a ponta mole despregando. Tudo apagado naquela escuridão. Limpo. As sacolas com cheiro mais de pão que de qualquer outra coisa não cheiravam a mais nada. As sacolas no silêncio largaram também os nomes bordados, em xis, pelas mães: Maria Lucia, Luís Carlos, Yara, João. Guilherme. Ademir. Nomes coloridos, que indicavam a turma verde, azul, vermelha, cinza, do jardim de infância do grupo escolar. As cores, o cheiro, a fome, a turma, o nome, ninguém sabia. A projeção preencheria o vazio da espera, do empurra-empurra amolecido dos desejos, o vazio da própria presença das crianças. Ninguém lembrava de mais nada enquanto nada acontecia naquela escuridão.
As tias falavam algumas coisas circulando em torno do retângulo denso de cabeças paralisadas, cabeças voltadas para a tela completamente obscurecida. O coração da sala, que amortecia sem pulsos, concentrado na nuca de cada criança, estava dirigido para o ponto onde soluçava uma luz amarela e silenciosa, um barulho amarelo e silencioso, seco, sobre o qual as professoras faziam comentários sem tapar o silêncio das pernas cruzadas das crianças. Emperrava a máquina e por isso os bordados continuavam sem o cheiro dos nomes. As tias controlavam, falavam algumas coisas.
A três ou quatro fileiras da máquina do tempo, da luz, do silêncio, descansava uma mesa quase encostada em uma das paredes, apoio ou desvio, com suas pernas abertas. Túnel escuro, uma caixa que com os flashes daquela luz se podia ver, e sem os flashes depois porque fixei bem os olhos. A menina pegava da caixa as pulseiras, sobretudo as pulseiras, e colares de plástico e uns espelhinhos forrados de papelão, enfiava na sacola junto da merenda e ninguém via. Era para a festa, e ela mesmo assim fazia. Não podia, a máquina enganchara de vez, eu também queria.
Antes que as vozes das professoras acendessem as lâmpadas e janelas abertas, desistentes, eu já queria.