Poemas de Ferreira Gullar

Leia os poemas "O som", "O que se foi", "Insônia", "Uma pedra é uma pedra", "Reencontro", "O jasmim", "A morte" e "O duplo "
Ilustração: Carolina Vigna-Marú
01/02/2010

O som

o som é da Terra
não há nenhuma música das esferas
como pensou Aristóteles
música barulho
o trepidar cristalino
da água
sob as folhas
é coisa terrestre
o cosmo é um vastíssimo silêncio
de bilhões e bilhões de séculos

nenhum ruído
as estrelas são imensas explosões mudas
um desatino

a matéria estelar
(em explosão)
é silêncio
e energia
Para outros ouvidos talvez
poderia ser o universo
uma insuportável barulheira
não para os nossos
terrenos
Viver na Terra é ouvir
entre outras vozes
o marulho do mar salgado e azul
ouvir a ventania as rasgar-se nos galhos
antes do temporal

só aqui
neste planeta é que
se pode ouvir teu límpido gorjeio,
passarinho,
pequenino cantor
da praça do Lido.

O que se foi

O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.
Se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.
Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.
Então por que me faz
o coração bater tão forte?

Insônia

É alta madrugada. A culpa
joga dama comigo
no entressono. Cismo
que ela me engana
mas não bispo o seu logro.
Ganho? Perco? Blefo?
Afinal, qual de nós rouba no jogo?

Uma pedra é uma pedra

uma pedra
(diz
o filósofo, existe
em si,
não para si
como nós)
uma pedra
é  uma pedra
matéria densa
sem qualquer luz
não pensa
ela é somente sua
materialidade
de cousa:
não ousa
enquanto o homem é uma
aflição
que repousa
num corpo
que ele
de certo modo
nega
pois que esse corpo morre
e se apaga
e assim
o homem tenta
livrar-se do fim
que o atormenta
e se inventa

Reencontro

Estou rodeado de mortes.
Defuntos caminham comigo na saída do cinema.
São muitos,
sinto a presença ativa das magnólias
queimando em seu próprio aroma.
Os mortos acomodam-se a meu lado
como numa fotografia.
Ajeitam o paletó, a gola da blusa
e parecem alegres.
São gente amiga
com saudade de mim
(suponho)
e que voltam de momentos intensamente vividos.
Tentam falar e falta-lhes a voz,
tentam abraçar-me
e os braços se diluem no abraço.
Fitam-me nos olhos cheios de afeto.
Ah quanto tempo perdemos,
quanta desnecessária discórdia,
penso pensar.
É isto que me parecem dizer seus pálidos rostos
neste entardecer de janeiro.

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

O jasmim

me invade as ventas
no limite do veneno

assim de muito perto
esse aroma rude é um oculto fogo verde
(quase fedor)
que me lesiona
as narinas
entre o orgasmo e a morte
mal pergunto
o que é isto um cheiro?
quem o faz?
a flor e eu?
um invento
milenar da flora?
quando? desde quando?
já estaria na massa das estrelas o cheiro da alfazema?
Nasce o perfume com as florestas
um silêncio a inventar-se nas plantas
vindo da terra escura
como caules, talos ramos folhas
o aroma
que se torna o arbusto jasmineiro.
Nos jardins dos prédios (na rua senador Eusébio,
por exemplo), nos matagais,
são usinas de aromas
a fabricar jasmim anis alfazema
(alguns cheiros são perversos
como o anis
que a muitos poetas endoidou
durante a belle époque;
já o da alfazema
dorme manso nas gavetas de roupas
em São Luís
e reacende o perdido)
Tudo isto para dizer que ontem à noite
arranquei flores de um jasmineiro
no Flamengo
e vim com elas
— um lampejo entre as mãos —
pela rua
sorvendo-lhe o aroma selvagem
enquanto foguetes Tomahawk  caíam sobre Bagdá.

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

A  morte

A morte não tem avenidas iluminadas
não tem caixas de som atordoantes
tráfego engarrafado
não tem praias
não tem bundas
não tem telefonemas que não vêm nunca
a morte
não tem culpas
nem remorsos
nem perdas
não tem
lembranças doídas de mortos
nem festas de aniversário

a morte
não tem falta de sentido
não tem vontade de morrer
não tem desejos
aflições
o vazio vazio da vida
a morte não tem falta de nada
não tem nada
é nada
a paz do nada

O duplo

Foi-se formando
a meu lado
um outro
que é mais Gullar do que eu
que se apossou do que vi
do que fiz
do que era meu
e pelo país
flutua
livre da morte
e do morto

pelas ruas da cidade
vejo-o passar
com meu rosto
mas sem o peso
do corpo
que sou eu
culpado e pouco

Ferreira Gullar
Nasceu em São Luís (MA), em setembro de 1930. É um dos principais poetas da literatura brasileira. Também se dedica à crônica e à crítica de artes plásticas. Em sua obra, destacam-se A luta corporal e Poema sujo. Os poemas aqui publicados pertencem ao livro inédito Em alguma parte alguma.
Ferreira Gullar

Nasceu em São Luís (MA), em setembro de 1930. É um dos principais poetas da literatura brasileira. Também se dedica à crônica e à crítica de artes plásticas. Em sua obra, destacam-se A luta corporal e Poema sujo. Os poemas aqui publicados pertencem ao livro inédito Em alguma parte alguma.

Rascunho