Fero cupido

Conto inédito de Adriana Armony
Ilustração: Bruno Schier
01/02/2013

Um homem que ignora o erotismo é tão estranho quanto um homem sem experiência interior.
(Georges Bataille)

E quando você ri, provocando o desejo, eu rio também. Estamos sentados, em frente à janela que dá para uma confusão verde, por onde se esgueiram os últimos raios da tarde. O Jardim Botânico é um bairro bem tranqüilo, você disse quando entrou, observando as paredes tão diferentes da nudez da casa dos seus pais no Méier: quadros de verdade, com pinceladas espessas, em vez de gravuras de brinde em molduras baratas. Eu examino o seu rosto enquanto digo:

— É muito difícil escapar do clichê, quando se trata de erotismo. Principalmente na literatura contemporânea. Talvez seja um problema dos autores, talvez dos leitores. O problema é que quase tudo já foi dito, as metáforas estão gastas.

— Claro.

— Veja este verso: “Estou sendo queimada, o fogo me transforma em cinzas”. Safo podia escrever isso, mas eu ou você não podemos. Nesse caso, a ambigüidade funciona melhor. A ambigüidade e o paradoxo. Sobretudo o paradoxo entre o humano e o divino.

Puxo o meu exemplar dos Lusíadas que espera aberto sobre a mesa:

— Aqui, por exemplo, quando Vênus pede ao “fero Cupido” que providencie uma ilha com ninfas para o prazer dos navegantes. O narrador diz que Cupido “os Deuses faz descer ao vil terreno/ E os humanos subir ao céu sereno”.

Você espicha o pescoço para conferir os versos. Abre o seu exemplar e encontra-os, a expressão aliviada. Tem o rosto e a idade feitos para dar prazer.

— Bonito. O paradoxo do erotismo.

— Exatamente. Vênus desde o início mostra que Eros é aquele que está entre o humano e o divino.

— Esse seria o erotismo sagrado, então?

É uma das suas manias: lê algo em algum lugar e quer logo aplicar o que aprendeu. Bom aluno, bom orientando. Bom garoto.

— Não seria bom usar o Bataille? — O seu sotaque é hesitante, não sabe se tenta pronunciar o nome à francesa ou se opta pelo orgulho nacional, típico dos próprios franceses. Você prossegue, recitando, os olhos ansiosos por aprovação. — O erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e o erotismo sagrado.

— Hmmm, pode ser.

— Peraí, vou pegar o Bataille — folheia as páginas amareladas com dedos morenos e compridos, mais delicados do que se esperaria da sua compleição física. — Não, não é isso, deixa eu ver…

Tua voz, adoro tua voz de barítono.

— Quer um café?

Eu levanto devagar, vou até a cozinha. Pela porta entreaberta, enquanto abasteço a cafeteira, vejo a sala pouco a pouco se enchendo de sombras. Você está de costas, procurando a citação correta, a cabeça levemente inclinada. Seu ombro direito segue o movimento da cabeça; a manga da camisa se amarrota contra o espaldar da cadeira, e você mal se vira quando eu pergunto, da porta: açúcar? Sim, por obséquio, você responde, com aquela formalidade deslocada que sempre me faz sorrir. Está de bermudas e tênis, mas veste terno e gravata nas palavras. Enquanto o cheiro do café se esgueira pela sala, eu tiro as sandálias e sinto o piso fresco sob os pés: é verão e o fim de tarde, em vez de trazer melancolia, soa como uma promessa.

— Achei! — você diz, os olhos transbordando alegria, quando chego equilibrando as minúsculas xícaras de metal. — “A transcendência do ser pode ser alcançada através da terceira forma de erotismo, o sagrado. Nesse caso a ação erótica é comparável ao sacrifício religioso: a morte ritualística quebra a descontinuidade por meio do retorno ao divino”.

Estendo-te a xicara de café; meu braço toca levemente o teu.

— Acho que você pode usar, sim — satisfeito, você anota alguma coisa no bloquinho ensebado. — Mas vamos avançar. Olha no seu fichamento: que outra passagem você gostaria de destacar?

Você olha para a página do livro, e parece ter um breve sobressalto: será que notou que estou descalça? Não teria nada demais, as tiras me apertando, o que poderia ser facilmente constatado pelos lanhos que marcam a pele fina dos pés.

— Vênus instila nas ninfas “secretas afeições” para trabalharem com mais vontade de contentar a quem se afeiçoarem. Será que é o erotismo dos corações?

O contraste entre sua maneira de falar a palavra “corações” e o corpo forte de garoto acostumado ao assédio feminino me atinge como um punhal. Aproximo a xícara dos lábios enquanto você continua.

— E também quando Cupido organiza a expedição para castigar os homens que amavam coisas que serviam para serem usadas, e não amadas por si mesmas!

O seu rosto se acende, é o romântico que se revela? A ingenuidade da idéia nem por isso é menos encantadora: não devemos usar as pessoas, as mulheres, é preciso amá-las por si mesmas, sem interesse… E então sua expressão muda, é impressionante como há vários rostos no teu rosto.

— E tem também a seqüência que se inicia na estrofe 32, que fala dos “amores mil desconcertados”: o amor “nefando” entre pessoas de diferente condição social.

— Na época, esse era um amor absolutamente condenável…

Você continua, implacável:

— O narrador diz que a culpa seria mais da mãe, Vênus, que do menino, que é o Cupido. O filho é o puro amor, e Vênus, o desejo sexual.

Eu te ofereço uma rosquinha de nata, que você recusa com um menear da cabeça.

— Pelo visto o desejo feminino sempre assombrou os homens… É só lembrar das bruxas da Idade Média — rio, e desta vez sou eu que procuro os teus olhos; mas, envergonhada da fraqueza, logo me recomponho. — São mitos, sexo e amor estão presentes nos dois, não quer dizer que o amor esteja associado ao homem e o sexo à mulher. Mas não é essa parte que eu gostaria de analisar, agora. Vamos até o ponto em que é apresentada a Ilha dos Amores, a partir da estrofe 52, em que a natureza transborda erotismo. Que trechos você destacou?

Você folheia o volume com atenção redobrada, os dedos eficientes, até encontrar os trechos.

— “Oiteiros erguidos com soberba graciosa”, “Num vale ameno, que os oiteiros fende”; e o mais óbvio: “Os fermosos limões ali cheirando/ Estão virgíneas tetas imitando”.

Também tenho o meu exemplar comigo. Estico o corpo na cadeira e leio os versos:

Abre a romã, mostrando a rubicunda cor,
com que tu, rubi, teu preço perdes
Entre os braços do ulmeiro está a jucunda
Vide, cuns cachos roxos e outros verdes;
E vós, se na vossa árvore fecunda,
Pêras piramidais, viver quiserdes,
Entregai-vos ao dano que cos bicos
Em vós fazem os pássaros inicos.

Uma lufada de vento vem da janela e me arrepia. Peras piramidais, bicos: são os seios, evidentemente. A natureza erotizada, lascivos beijos do vento. E a romã que se mostra, vermelha e aberta.

— A analogia é óbvia, né? — Você baixa os olhos, parece envergonhado. Os seus braços, dois troncos de cedro. No colo o celular acusa uma mensagem que seus dedos ágeis não se animam a responder.

— A natureza prepara a perseguição dos caçadores — engato rápido, com calculada indiferença. — Cria o ambiente metafórico para a virilidade que desponta a partir da estrofe 70. As ninfas, por sua vez, fogem, e, “sorrindo e gritos dando”, se deixam apanhar pelos caçadores. Aqui temos o jogo erótico do esconder e do mostrar. O vento solta o cabelo dourado de uma, leva a roupa íntima de outra: revelam as alvas carnes, súbito mostradas, que acendem o desejo. As ninfas se lançam nuas sobre o mato, dando aos olhos o que às mãos cobiçosas vão negando (os seios à mostra, as coxas abertas). Os homens se arremessam, ainda vestidos e calçados, para não gastar tempo (esfregando, lambendo), saltam na água como cães de caça em busca da presa (o férreo cano erguido, mordendo, chupando).

Reclino o corpo e o decote na tua direção. A analogia é óbvia, como você disse antes. Eu falo e falo, a boca cada vez mais próxima do teu rosto:

— Finalmente, aparece Leonardo, soldado cavaleiresco dado a amores desgostosos — não sabes, mas me faz gosto imaginar-te como Leonardo: um príncipe melancólico, mas cheio de desejo. — Corre atrás da bela Éfire, que se fazia mais de difícil do que as outras, dizendo: “ó formosura indigna de aspereza, pois desta vida te concedo a palma, espera um corpo de quem levas a alma!”.

Enquanto não te olho, percebo que minhas palavras saem atropeladas, mas continuo, irresistivelmente:

— Todas cansam de correr, menos sua amada. Ela corre, corre, para que ele não possa tocá-la, mas isso não diminui a felicidade de Leonardo, pelo contrário: ele quer ver de que modo sutil ela busca lhe escapar.

Sinto a tua respiração apressada; tens algo para dizer, agora. Por isso deixo que tomes da minha palavra:

— Mas o Leonardo convence a ninfa! Argumenta, tece mil considerações, implora. E é sob o poder do discurso dele que ela cede:

Volvendo o rosto, já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor
Que todo se desfaz em puro amor

Teu ar é de triunfo. Recostas no espaldar da cadeira, abres as pernas relaxadas como um paxá. Lembro-me dos versos de Maria Teresa Horta:

Ferozmente amor
com torpidez e raiva

Tenho vontade de tocar a pele rija do teu pescoço, sua vaga penugem; descer minha mão pelas tuas costas duras, delicadamente fazer-te ajoelhar.

Abre os meus lábios com a umidade da tua boca.

Você reclina os ombros largos em direção à mesa:

— Acho que o que faz a ninfa sucumbir é o jogo de palavras, porque ela só reduz o ritmo da fuga quando ouve estas palavras: “E tu me esperarás, se Amor te fere; e se me esperas, não há mais que espere”. Novamente a ambigüidade: a do verbo esperar. Pode ser aguardar ou ter esperança.

Invade minhas coxas, tua caça,

— Ou desejar — acrescento, a voz sumida.

as mãos explorando
o flanco exposto

— E por fim — digo, lentamente. — Por fim vem a conclusão do narrador sobre o amor: “Melhor é experimentá-lo que julgá-lo…”.

Lentamente rasga o caminho
Percorre minha loucura

— “… mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.”

Até nos tornarmos, meu amor,
O próprio fogo que nos consome.

Olho em cheio no teu rosto, sobre o qual alguma coisa se move, algo que se confunde com as sombras que penetram a sala. Então teu riso eclode no centro da mesa, generoso e cruel.

— Que grande sacana, esse Camões!

Sob meus pés descalços, sinto a frieza do piso. É tarde, e a janela é um quadrado negro de ilusão. Como o silêncio se confunde com a noite, vou até o interruptor e acendo a luz. Eu olho você e já não o reconheço. Um garoto estranho, feito de madeira, prolongamento da cadeira em que se senta, ocupou o seu lugar. Com minhas mãos bem cuidadas, pego rápido o resto gelado do café, com o qual apenas umedeço os lábios. Eu me levanto e começo a recolher as coisas.

— Você tomou as notas?

— Acho que tá na hora de ir, né? Já anoiteceu.

Não sei se por nervosismo ou por excesso de objetividade, você reúne os papéis apressadamente, sem me olhar. Talvez note de passagem meus pés, o esmalte me tingindo de sangue os dedos.

A caminho da saída, carregado de livros e papéis, você tropeça. Ou é apenas impressão minha? Torço a chave e espero que você se aproxime. Eu abro a porta e ofereço minhas bochechas ao toque áspero da sua pele.

Antes de atravessar a porta, um sorriso encantador parte em dois o seu rosto de cedro.

— Hoje vai ter ensaio na quadra da Mangueira. Não perco por nada deste mundo!

Quando você sai, estendo a mão para o interruptor e apago a luz. Na umidade esguia da sala, me sinto viva novamente. Rosto de cedro. Preciso anotar mais essa metáfora.

Adriana Armony

É escritora, doutora em Letras pela UFRJ e professora do Colégio Pedro II. Publicou os romances A fome de Nelson (2005), Judite no país do futuro (2008) e Estranhos no aquário (2012), e organizou, com Tatiana Salem Levy, a coletânea Primos (2010), da qual também participou com um conto.

Rascunho