Fendas & flâmulas

Um conto de Jádson Barros Neves
Ilustração: Marco Jacobsen
01/06/2003

Ao amigo Edmar Filho

“Sou restos de um menino que passou.
Sou rastos erradios num caminho
Que não segue, nem volta, que circunda
A escuridão como os braços de um moinho”.

(Paulo Mendes Campos, em “Infância”)

Dentro do silêncio, verde, o vento. No seu sono quieto, tilintavam os talheres pendurados na cozinha enluarada: apenas se tocavam, suaves, balançados pela brisa. De madrugada, esses ruídos haviam-no despertado levemente.

No começo da noite de sábado, sozinho na mínima sacada do apartamento, ele lembraria tudo.

À tarde do mesmo dia, tinha ido à casa da mãe. Lá, pela janela da sala, Vicente contemplava um céu de nuvens incendiadas, quando a mãe disse, sem ao menos erguer os olhos do bastidor: “Não volte amanhã sem Letícia”. A mãe bordava uma ave-do-paraíso, com as formas e as cores da fotografia recortada de uma revista. “A senhora podia pintar ou pedir para alguém pintar as figuras. Assim teríamos mais flâmulas para vender e eu poderia vendê-las mais barato”…

Não tinha dúvida de que o telefone chamara entre a meia-noite e as duas da madrugada. Havia a ébria lembrança do acender e apagar de luzes no apartamento, os passos silenciosos, e, em seguida, o ronco distante do motor de um carro que se afastava na noite.

Certa madrugada, bem no começo de tudo, acordou no momento em que a irmã conversava com alguém em voz quase murmurante, como se revelasse um segredo, explicando algo que incluía horas e cifrões, muito depois de terem silenciado os piados de pássaro agonizante do telefone celular. Passaram-se dias. Depois, Vicente ouvia o aparelho chamar também à tarde, quando a irmã estava acordando, e ele ainda fazia as tarefas do colégio na mesa da cozinha, e também à noite, quando já estava deitado para dormir.

Uma joaninha de plástico imantado colava o bilhete na porta da geladeira. “Amanhece em Paris”, e embaixo: “Contando de volta do primeiro equinócio, vinte e dois dias, é o dia”. Gostava da letra dela, meio esparramada. O “A” ovalado como a entrada de uma igreja. Fazia dias Letícia se comunicava com ele numa linguagem cifrada, difícil. Às vezes, explicava-lhe o sentido dos signos, e ele entendia a mensagem. Noutras, ela se calava, sem nada revelar. Vicente havia passado o dia pensando na primeira frase, até que conseguiu decifrá-la; a segunda talvez nunca compreendesse.

Lentamente, a noite aparecia no apartamento. Aos poucos, Vicente tornava-se uma figura solitária e escura, ainda de pé na minguada varanda.

Todo sábado, ele acordava cedo e ia à casa da mãe buscar as flâmulas para vender durante a semana. Enquanto almoçavam, ela havia perguntado por Letícia. “Deve estar por aí”, gaguejou. “Não me venha amanhã sem ela”, a mãe lhe ordenou.

Na volta para o apartamento, visitou hotéis à beira-mar, buscando notícias da irmã. Esteve também numa casa, numa rua afastada, de onde vira Letícia surgir certa tarde — havia o portão gradeado, o corredor calçado de tijolos, entre flores amarelas. Escutou barulho de música, pouco antes de aparecer uma mulher gorda e risonha. “Sua irmã não vem aqui faz dias. Melhor você procurar nos anúncios dos jornais.”

Ele era um rapaz muito branco, muito magro, e tinha o cabelo amarelo-dourado. De tão amarelo seu cabelo, imaginava que fosforescia no escuro. Na escola, quando passava, as pessoas olhava para ele. As meninas, entre curiosas e tímidas, às vezes se afastavam a sua passagem. A mãe lhe prometera uma bicicleta, assim ele evitaria os ônibus apinhados, mas, em vez disso, mais flâmulas para Vicente vender. “Logo teremos dinheiro para comprar uma loja de bicicletas”, ela lhe disse, num dia em que ele reclamara. Mas as flâmulas apenas o devolviam aos ônibus cheios, aos olhares entre assombrados e compassivos dos passageiros, enquanto ele percorria os corredores e anunciava, a plenos pulmões, flâmulas de corrupiões, de xexéus, de tucanos, de araras, de pegas com seu risco verde-elétrico, sacudindo os frágeis mastros, o tecido e seu corpo inteiro como um só artigo à venda.

Letícia não retornaria nessa noite. Sabia por causa da ausência dos cheiros, dos odores que pareciam nascer de algum lugar do corpo da irmã, não quando ela estava ou saía, porém quando chegava, atirava a bolsa no sofá, comia qualquer coisa andando pela sala e, mesmo depois que se banhava e sentava para assistir à tevê, os olores ainda pairavam no ar, como se viessem da sua carne. Então esses cheiros dormiam novamente, quietos com Letícia quieta na cama dormindo, mas logo retornavam com a sua nascença no apartamento. Quando ela saía, voltavam os outros odores de sempre — de mofo no carpete, de uma laranja que apodrecia na fruteira, de sapatos molhados, o cheiro de suor antigo no sofá.

Lanchou sentado à mesa da cozinha; tornou-se parte da semi-escuridão. Existia algo de diferente na quietude daquela hora, como se todo o barulho do bairro houvesse fugido para algum canto remoto da cidade. Viu o fogaréu desmaiado, longínquo, dos fogos-de-artifício que iluminavam silenciosamente o céu a oeste. Um pouco depois, estendido na cama, ouvia, atento, os ruídos de fora. Uma criança chorava em algum lugar.

Adormeceu ouvindo uma mulher que cantava. Foi despertado, com noite avançada, pelo calor e o estrondo de uma explosão de fogos-de-artifício. Da janela do quarto, viu os fogos que desciam do céu em minúsculos guarda-chuvas coloridos.

A primeira frase do bilhete: “Amanhece em Paris”. Ela devia ter saído cedo, madrugada ainda. No colégio, ele estudava os fusos horários. Chegava a comentar com a irmã o que tinha aprendido na escola. Ela o escutava, entristecida muitas vezes, sentada à mesa da cozinha.

Pelo bilhete, talvez ela tivesse saído logo depois da meia-noite. Paris ao amanhecer, pensava: gatos e névoa, velhinhas bem vestidas saindo para a aurora cinza ou púrpura sobre o Sena; aqui ele dormiria seu sono de pássaro, entre lençóis levantados suavemente por esses ventos esquecidos da madrugada.

 (Certa tarde, no meio da semana, encontrou Letícia saindo de um táxi na beira-mar. Viu-a parada olhando o carro dobrar a esquina. De dentro do carro, a cabeça grisalha e solitária voltou-se para ela, e ela respondeu com um breve aceno ao outro aceno que nascia acima da orelha da cabeça grisalha, de dentro do táxi. Por um momento, para o irmão, ela se transformava numa mulher madura e estranha, que usava uma blusa flamejante e uma saia vaporosa, imóvel na calçada, indiferente aos transeuntes e seus gracejos: de pé, os cabelos pintados de fulvo dançantes à brisa marinha, definitivamente só, perdida e voltada para o mar.)

Bem provável que a mãe soubesse. Fora Letícia quem mobiliara o apartamento, a casa e até dissera que iria comprar a bicicleta para ele. Mas a mãe não lhe revelara nada; nunca perguntara sobre o emprego da filha. Nas tardes de domingo, os três costumavam almoçar juntos. Depois, mãe e irmã se fechavam no quarto. Muitas vezes, sentado no umbral da porta da rua, ouvia rascunhos de conversas, de risadas das duas. Perto do anoitecer, retornava com Letícia ao apartamento. No dia seguinte, ele regressava para os livros, para o lanche solitário no pátio do colégio e, embora se sentisse isolado em todo lugar, quando era devolvido a si próprio no olhar curioso dos desconhecidos, voltava a sentir-se humano.

A outra frase — “Contando de volta do primeiro equinócio, vinte e dois dias, é o dia” — só entenderia quando fosse tarde demais para qualquer compreensão ou entendimento, e nos dias e semanas seguintes ficaria apenas a lembrança do bilhete boiando em sua memória. Mas, de tão bonita, a palavra equinócio lhe causava um derretimento de letras na boca; embora lhe doesse em algum lugar e não soubesse onde.

Desceu as escadas e ganhou o corredor escuro. Subiu a rua deserta e iluminada. Longe, muito longe, o Ruído, o Som. Era o único passageiro no ônibus que ia para o centro da cidade. Dormira muito, não sentia sono. Passava pouco das duas da madrugada. Perambulou pelos bares, já quase vazios, procurando Letícia.

Depois, fatigado de tanto caminhar, aquietou-se na calçada de uma lanchonete. Já era domingo. Logo amanheceria. Antes, no entanto, o céu acobreado se curvaria sobre o casario colonial. Ganhou uma rua estreita, calçada de paralelepípedos. As casas de paredes de azulejos portugueses quase se tocavam, de tão acanhadas eram as ruas. “Eram casas com varanda, onde à tarde dormiam gatos, como tigres, como gatos.” Uma boa frase para a lousa, com sujeito e predicado em ordem, para a aula de sintaxe, para impressionar as meninas. Às vezes, ele escrevia frases ou orações na lousa, que a professora de Português e Literatura chamava de poesia.

Quando o sol começava a raiar, entrou de volta em outro ônibus. Nascidas no vazio, no claro silêncio da manhã, as ruas. Quase ninguém para encará-lo: uns poucos rapazes bêbados, cantando; uma vendedora de flores amanhecidas. O frescor e a pureza da manhã estendiam-se ao longo dos gramados e jardins ensolarados. O ônibus circulou por um bairro de casas imaculadas, com alpendres de piso brilhante. Tinha passado por ali muitas vezes, quando ia para o centro.

Desceram os rapazes; minutos depois uma parada, e a moça das flores também se foi. A paisagem monótona, acinzentada pelo mangue distante, deixava-o enfadado. Podia imaginar, encolhido no banco, o que o cercava velozmente: barracas de vendedores de mariscos e peixes fritos, crianças e aleijados esmolando nas lombadas do asfalto. Depois haveria a curva serena, a pracinha com chafariz, a mercearia e, em seguida, o conjunto de prédios baixos.

Esperava encontrar Letícia quando voltasse. O que o aguardava, no entanto, era o mesmo vazio ruidoso do dia anterior. Nenhum cheiro dela pelo apartamento.

No varal da área de serviço, soprada pela leve brisa da manhã, uma calcinha vermelha solitária.

Separou as flâmulas sobre a cama.

Da área, ficou olhando a pequena alameda vazia que o separava do outro prédio. Numa janela a mulher apareceria, como todo domingo, como sempre aparecera. Na outra, o marido sem camisa, sentado.

A mulher surgiu passeando no quarto, vestida numa camiseta e espanando a poeira dos móveis. Era alta, de cabelos negros, muito negros e compridos, e Vicente gostava de contemplá-la. Uma tarde, tempos atrás, ela dera-lhe carona até o centro da cidade. Soube que a mulher era professora; o marido, jornalista. No caminho, perguntou se Vicente era albino. Ele disse que não, apenas havia nascido com a pele muito branca e o cabelo amarelo. “Dizem que saí de uma gravura”, respondeu, esboçando um sorriso. “E sua irmã, por que nasceu mais morena?” “Somos filhos de pais diferentes.” “Seu pai vem visitá-lo?” “Não, nunca o vi. Mamãe me disse que ele é holandês e que não vem porque mora muito longe.”

Equinócio. A palavra lembrava um domingo ensolarado, grávido de paz, um cavalo dourado pela luz. Deixaria as flâmulas onde estavam, semeadas sobre a cama. Quando Letícia retornasse, notaria que ele não estava mais no apartamento. Não! Talvez esperasse por ela, sentado na escada, descascando laranjas. A mãe dissera-lhe que não retornasse sem a irmã para o almoço de domingo. Se tivesse uma bicicleta, fugiria para as ruas arborizadas, de casas com grama fresquinha.

Dezesseis anos atrás, fora aberta a primeira fenda, quando a mãe e o pai holandês se amaram num quarto de hotel. Depois ele habitou nove meses um útero cansado. “Sua mãe é puta de turista”, revelaram-lhe ainda na infância e lhe gritaram isso a vida inteira. À medida que crescia, a distância entre ele e as outras pessoas também aumentava.

Passava dias sem dizer palavra, embora as palavras lhe fossem como formiga-açúcar e ele só pensasse nelas. Ouvia o silêncio das palavras; em tudo ouvia silêncio. Do silêncio nasceu outra fenda — que veio dos olhares curiosos sobre ele —, e chegaria uma época em que não conseguiria se comunicar com ninguém. Crescera menino, feito rapaz; crescia rapaz, feito homem. Quando homem: velho.

O domingo era feito de igreja e churrasco. Sentia o cheiro da carne assada, vindo de todo lugar. A mulher acabara de espanar os móveis. Do apartamento dela, soprava o vento que enfunava as cortinas do quarto para fora. Viu a mulher, num instante fugaz, abraçada ao marido.

O primeiro equinócio. Uma longa fenda de seis meses separava os equinócios de março a setembro. Havia então dias no ano quando as noites e os dias eram do mesmo tamanho. Como cavalos, correriam nesse intervalo de meses a chuva e o sol, a vida e a morte. Sentado no sofá, observava sem concentração a listra amarela da luz que se expandia no piso. Sentia-se refletido em todos os objetos da sala: na tela opaca da tevê, no trinco brilhante da porta, na madeira ensebada do braço do sofá.

O dinheiro que dava para a mãe, toda tarde de sábado, nunca retornava. Era a irmã quem comprava roupas para ele, sapatos, boné, sempre fingindo presenteá-lo. Assim: a irmã se trancava com a mãe no quarto, extraía da bolsa de couro o dinheiro e dava para a mãe. Depois as duas surgiam sorridentes na sala, onde ele tinha permanecido na fronteira da porta da frente, olhando do alto daquela casa de encosta de morro, com roseiras e hortaliças no quintal, a cidade embaixo, o mar esmeralda distante. Ao anoitecer, quando chegavam ao apartamento, ou na manhã seguinte, Letícia dava-lhe o dinheiro para os gastos da semana: os lanches na escola, passes de ônibus, picolés à tarde.

A manhã corria silenciosa. Existia apenas a mudança de luz para mais intensa; o ar ficava quente. Ele sentia fome e por isso soube que se aproximava o meio-dia. Pegou as flâmulas e colocou-as sobre a pia da cozinha. Separou as duas de seda, retangulares, próprias para serem penduradas em parede. Com um isqueiro, ateou fogo em todas as outras, uma a uma. As chamas começavam tímidas, azuis, depois iam consumindo o tecido, cada linha, cada nervura de bordado, e os pássaros contorcendo-se, quase gemendo, tudo virando cinza no granito da pia, depois empurrada para o ralo. Juntou os pequenos mastros e jogou-os no cesto de lixo. Dobrou as flâmulas de seda e deixou-as sobre a cama da irmã.

Depois, sentiu-se desorientado. Voltou para o sofá, com um livro de poemas que a professora de Português lhe dera. Então descobriu de onde a irmã tirara a palavra equinócio. E foi quase com um desesperado encantamento, um lampejo, que descobrira. No lado direito de uma página, suaves manchas vermelhas, com estrias semelhantes a riscos digitais. Podia imaginar Letícia no sofá, molhando o indicador e o polegar na língua ávida, roçando com os dedos a boca desenhada em batom escarlate, na volta que a mão fez para mudar a folha.

“Vi as mulheres azuis do equinócio
voarem como pássaros cegos; e os seus corpos
sem asas afogarem-se, devagar, nos lagos
vulcânicos. Os seus lábios vomitavam o fogo
que traziam de uma infância de magma
calcinado”.

Deitou-se e adormeceu. Sonhou com andorinhas ensombrecendo um entardecer. Quando acordou, passava da hora de ir até a casa da mãe. Anoitecia. “Não volte sem Letícia.” O recado fora áspero e definitivo. “Procure nos jornais”, dissera a mulher. Desceu à banca de revistas e comprou o jornal de domingo. Folheou os classificados, leu a seção de acompanhantes. Buscou o nome Letícia, mas não o encontrou. Havia Brígida, Tatiane, Michele, Roberta e tantos outros nomes: nenhuma, ou todas as mulheres que estavam ali, podiam ser a irmã.

A mãe e a irmã unidas por um vínculo antigo. Nas fotografias do álbum de família, a mãe, quando jovem, aparecia bonita, sempre sorridente. E aquele sorriso de outra época, esmaltado em branco, agora tinha a cor da nicotina e o azedume do conhaque no hálito. A mãe tinha um olhar cansado, manso para os outros; para ele, no entanto, a voz fora de pedra a vida inteira. As palavras, sempre as palavras como projéteis a machucá-lo.

Encheu a mochila de livros e cadernos. Banhou-se e esperou escurecer. Só então saiu para a alameda. Existiam poucos prédios iluminados, embora já estivesse bastante escuro. No jornal, havia poucos telefones com endereços, a maioria em bairros distantes. De um orelhão, telefonou para três celulares, o cartão telefônico exauriu-se, e o máximo que conseguiu foi a certeza de que as mulheres com as quais conversava usavam nomes falsos.

Buscaria primeiro no centro da cidade; depois, na beira-mar. Foi num ônibus vazio, a mochila pesada entre as pernas. Muitas vezes levantava à noite para ver os ônibus que passavam na alameda. Gostava da forma como eles rodavam numa rua escura, deslizando silenciosos e iluminados como um navio.

Domingo e apenas alguns bares abertos no centro. Ele enfiava o rosto um instante pela porta de entrada, e olhava para dentro. Poucos casais. Andou à deriva, até perto de meia-noite. Depois, os bares foram-se fechando um a um. Parado numa calçada, contemplou o clarão longínquo do Ruído, do Som. Talvez ela estivesse lá, dançando em meio à multidão. A música mal chegava, retalhos que ele até pensava virem de algum bar próximo.

Quando não havia mais onde procurar no centro, desceu para a beira-mar. Sentia-se aflito. De longe, divisou os hotéis: inconfundíveis, envidraçados, imaculados e de frente para o Atlântico. O ruído das ondas morrendo na areia deixou-o calmo por um instante. Passou por uma fileira de jangadas ancoradas: com as velas arriadas para trás, ficavam semelhantes a aves adormecidas.

A conversa que se repetiu foi a mesma e cansativa nos inúmeros hotéis que visitou: descrevia a irmã para os porteiros atentos, dizia que Letícia tinha um celular e, às vezes, como gostava de festa, as pessoas telefonavam, convidando-a, e então ela sumia para as festas, que muitas vezes aconteciam em hotéis, mas nunca tinha ficado tanto tempo fora.

A chuva repentina surpreendeu-o numa calçada, e ele refugiou-se sob a marquise de um hotel. Choveu durante muito tempo, depois parou de repente. Amanhecia, quando Vicente preferiu desistir de procurar a irmã. Pensou na escola, nas garotas ainda sonolentas, passando pelo portão.

Era a hora em que todos os recepcionistas dos hotéis da cidade mudavam de turno. E ele estava do outro lado da rua, de pé sobre o meio-fio, olhando a troca dos porteiros de um hotel, quando o carro surgiu vagarosamente do nada e parou diante da entrada. As luzes do saguão foram apagadas, e a claridade débil da manhã refletiu-se tímida nas vidraças. Então descobriu a irmã conversando com uma moça da recepção. Pôde observá-la uns minutos, vestida de preto, segurando uma maleta, com a bolsa de couro pendurada no ombro.

O carro rodou lentamente, e Letícia saiu apressada do hotel. Vicente tentou acenar para ela e chegou a pensar que o tivesse visto, no momento em que ela sorriu antes de chegar ao carro e baixando a cabeça para entrar. Imaginou que sorria para ele. Ela entrou no veículo de vidros escuros, que arrancou rumo ao poente da segunda-feira.

Ilustração: Marco Jacobsen

Quarta-feira de Cinzas, o vigésimo segundo dia, voltando desde o primeiro equinócio: Quarta-feira de Cinzas. Então era isso. Ele não voltaria ao apartamento, nem desceria as escadas enquanto Letícia estivesse subindo pelo elevador na Quarta-feira de Cinzas. Então uma grande fenda se abriu entre eles e nele; sentiu que já vivia na estação dos adultos; talvez já vivesse há muito tempo e nem soubesse.

Antes, tudo leve como flâmulas ao vento, como o cabelo das meninas levantado pela brisa na escola. Sentou-se na guia, de costas para o mar, e deixou a mochila cair a seus pés. Sentiu que o Ruído se apagara, e viu dois foliões fantasiados de piratas, ainda alegres, virando uma esquina. Não, não haveria escola nem garotas — era a segunda-feira de carnaval. Afastou com o pé a mochila para um lado e enfiou lentamente a cabeça entre as pernas gafanhotas e levantou as mãos e cruzou-as sobre a nuca, e então algo que sabia a alho e limão saiu-lhe dos olhos e caiu na poça de chuva a seus pés.

E quem de passagem ali o visse sentado, encolhido, talvez pensasse que bastariam apenas algumas folhas de papel, dessas que se despregam da terra, do nada, e que vêm por aí, pelo ar, dançantes, peregrinas, sopradas por esses ventos sem destino, e que se colassem a seu corpo, tomando o formato e o tamanho do corpo, e bastaria isso para que a pessoa imaginasse que Vicente era um homem semelhante e da cor de papel, sem serventia alguma, a não ser ficar andando pela cidade durante o dia e de noite dormindo numa calçada, encolhido sob papéis e abraçado às próprias pernas dobradas para frente, como um louva-a-deus marrom empalhado.

Jádson Barros Neves

Em 2001, o conto Fendas & flâmulas ficou em 1º lugar no Concurso Felippe D’Oliveira  e recebeu o prêmio Cidade de Fortaleza.

Rascunho