Poemas de Fabíola Mazzini

Leia os peomas "Maria", "Adriano Felipe Mendes, o Tecko", "Dona Líria" e "Alice"
Fabíola Mazzini, autora de “Rotina dos ossos”
02/04/2021

Maria

quando o teto esburaca
estrelas de mentira
eu vou morar ao largo do quarto
minha cabeça arrebentada pende como um terço
nos hematomas salpicados de luz
vejo deus morto, sou menina de pé quebrado
vivo o conto da carochinha, mas sem fita
sou uma baratinha tonta, ele diz
simples ser infeliz

…..

Adriano Felipe Mendes, o Tecko

só escapou porque era o do meio
fácil de esquecer
nunca lhe brotaram as palavras
nunca cores, nem recheio
seus tigres mansos bebiam leite
não havia novidade de sua lavra
nenhum deleite digno de nota
não gemia no sexo
prestava atenção nos segundos
seus sentimentos moribundos
lambiam as botas, se banhavam
nas poças rasas da mente servil
mas, na hora de matar, sabia a pontaria
onde lhe mandavam, finalizava
e esperava a recompensa do cão
a língua besta de fora

…..

Dona Líria

Ela tem um olhar de pessoa tantas vezes morta
Acrescento a isso as mãos incertas
De quem meteu a cara nos muros
De quem quase perdeu a perna no pau-de-arara
De quem conhece as noites definitivas
Mas, de vez em quando, abre um livro
O ar reteso, como uma escafandrista ou clériga
E volta a ter nome
Volta a ir com os rios, uma aventura maior que a de Crusoé
O livro lhe come o medo, o vácuo do relógio cuco, a náusea do mundo
Faz esquecer a inveja da colega de quarto que tem filhos e coque e vontade de viver
O livro a salva do pesadelo recorrente: pisar na estação justo na hora em que o trem parte
Devolve a mulher rebelde, que fazia barricadas e não pãezinhos açucarados
Devolve o chão de terra e castanheiras, o apartamento vendido por falta de grana
Traz o filho, de outro país, os amores, de outros braços, como qualquer cartomante eficaz
O livro lhe devolve a criança que os irmãos chamavam de louca
Por passar os dias imitando avião, a arte de oferecer a vida
Onde ela é reles, átona

…..

Alice

Alice de Battenberg morreu surda.
Seu túmulo tem um estandarte
Jogado às traças. Sabia-se que era estranha.
Seu sexo recebeu eletrochoque.
Foi por indicação de Freud, aos 22.
Os ovários, radiografados tantas vezes
tantas. Qualquer uma ficaria tantã.
Ela dizia que variava, mas era sã.
Tinha um marido, cinco filhos.
Sozinha viveu no sanatório e na Grécia.
Sozinha esteve na Segunda Guerra.
Sozinha escondeu um monte de judeus.
Seu túmulo tem um estandarte
Jogado às traças.

Fabíola Mazzini

Nasceu em Vitória (ES). É servidora pública. Tem poemas publicados na internet, em revistas, jornais e coletâneas. Seu livro Rotina dos ossos ganhou o 1º lugar em concurso da Secult-ES em 2018.

Rascunho